Depois de um período de férias e celebrações, em que celebraramos cercados de amigos e família, comida e bebida, existe a necessidade de recuperação do nosso corpo. Será que o nosso fígado descansa e se recupera o suficiente depois de ter recebido uma carga pesada?

O fígado é um órgão considerado crucial para vários processos fisiológicos no nosso organismo. Este auxília a digestão e no metabolismo de macronutrientes, armazenamento de vitaminas e minerais, suporte do sistema imunitário, entre outras atividades detox importantes para que o corpo funcione bem. Daí ser importante sabermos cuidar do nosso fígado e mantê-lo saudável.
No livro “Conversas com o Fígado – Conhecer, Prevenir e Cuidar”, da autoria de José Velosa, médico especializado em Gastrenterologia e Hepatologia e atual presidente da Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM), explicasse como se pode ter uma relação saudável com o fígado e como podemos mantê-lo saudável.
COMO SEI SE O MEU FÍGADO ESTÁ SAUDÁVEL?
Não é uma pergunta comum. Felizmente! Porque é mais fácil afirmar que um órgão está doente do que ter a certeza de que está sadio. Tão‑pouco se espera que semelhante questão ocorra numa consulta especializada, na ausência de qualquer sintoma ou de alguma análise laboratorial alterada. As doenças do fígado são geralmente assintomáticas, o que faz com que não chamem a atenção, pelo que podem permanecer ignoradas até muito tarde. Na ausência de sintomas, a ocorrência de uma doença hepática pode ser detetada numa das seguintes circunstâncias: presença de uma doença hepática familiar; palpação abdominal revelando fígado de consistência aumentada; análise hepática alterada; análises gerais com alterações sugestivas de cirrose (por exemplo, contagem de plaquetas persistentemente baixas); e ecografia hepatobiliar evidenciando alterações compatíveis com doença hepática crónica. Nestas circunstâncias, pressupõe‑se que no rastreio de doença hepática – não havendo sinal de hepatopatia, trata‑se efetivamente de um rastreio – deve ser colhida uma história clínica orientada para a doença hepática aguda e crónica, incluindo hepatopatias hereditárias (por exemplo, hemocromatose), requisitadas análises gerais, compreendendo hemograma, plaquetas e TP, análises hepáticas, incluindo rastreio das infeções pelos vírus das hepatites B e C; e exame ecográfico hepatobiliar. Convém acentuar que os testes genéticos não têm justificação no rastreio da doença hepática, salvo em situações muito especiais.
Ao contrário do que as pessoas pensam, raramente a dor no hipocôndrio (quadrante superior direito do abdómen) é da responsabilidade do fígado. O fígado, propriamente dito, não dói, exceto em condições que envolvam a cápsula: lesão tumoral expansiva e inflamação da cápsula (peri‑hepatite). Mais frequentemente, a dor no lado direito do abdómen é de origem intestinal, nomeadamente de cólon irritável, embora a dor referida ao hipocôndrio direito possa ter origem nas vias biliares. A vesícula é, com frequência, sede de dor, habitualmente aguda (cólica), quando um cálculo da vesícula migra para fora do leito vesicular. A dor é muito típica: surge subitamente, aumenta gradualmente, fixa‑se com frequência no epigastro e mantém‑se em planalto, até desaparecer gradualmente. Esta cólica (dor num órgão oco formado por fibras musculares lisas) corresponde à obstrução do canal cístico (canal que faz a ligação entre a vesícula biliar e o canal colédoco), mas pode muito bem ser a cólica da obstrução do colédoco, que ocorre quando o cálculo vence o obstáculo do cístico e passa para o colédoco – as características são semelhantes. A irradiação da dor para o lado direito do dorso e da região escapular (omoplata) pode ocorrer nas duas situações, mas o aparecimento de arrepios de frio (calafrios), febre e, se a obstrução persistir, urina escura e icterícia – um quadro que se designa de colangite aguda – é sugestivo de obstrução do colédoco. Com efeito, a obstrução causa proliferação de bactérias nas vias biliares, podendo a infeção ascender aos canais biliares do fígado (vias biliares intra‑hepáticas). Esta migração dos cálculos para fora da vesícula configura uma situação potencialmente grave, principalmente quando se associa a pancreatite aguda (inflamação do pâncreas) ou quando a obstrução se mantém. Neste caso, a infeção pode subir para o fígado e dar origem à receada infeção intra‑hepática, com formação de abcessos. No passado, a solução para esta complicação da litíase passava por uma melindrosa intervenção cirúrgica, mas atualmente pode ser resolvida rapidamente através de uma endoscopia especial [colangio‑pancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE)], com extração da pedra. Este exame, embora relativamente rápido e seguro na mão de especialistas experimentados, não é completamente isento de riscos, especialmente em doentes com cirrose, de modo que deve ser cuidadosamente ponderada a altura ideal para a sua execução. Porquanto, na maioria dos casos, o cálculo migra espontaneamente para o duodeno, sem mais complicações.
Presumo que, neste ponto, estão a interrogar‑se: Então, tendo cálculos na vesícula, o melhor é remover eletivamente a vesícula, em vez de ficar placidamente à espera das complicações? O raciocínio não é desprovido de lógica, não fosse o caso de a migração dos cálculos da vesícula e, mutatis mutandi, das complicações ser relativamente rara. Menos de 10% dos doentes virão a ter complicações (cólica biliar, colangite aguda, icterícia ou pancreatite aguda) dos cálculos da vesícula, pelo que, excetuando algumas situações particulares, não se recomenda retirar a vesícula. Contudo, esta posição não é consensual, entendendo alguns médicos, sobretudo cirurgiões, que é preferível proceder à colecistectomia. Argumentam que o risco vai aumentando com o avançar da idade, que as pessoas vivem cada vez mais anos e que a remoção da vesícula por laparotomia (cirurgia dos “furinhos”) é uma intervenção com baixo risco e bem tolerada. Curiosamente, não existem estudos alargados, recentes, que tenham analisado estas questões, sendo as decisões baseadas em estudos realizados em meados do século xx, quando ainda não estavam disponíveis todos os recursos atuais. É, no entanto, claro para quem trabalha nos hospitais, especialmente nas enfermarias de Gastrenterologia, que, para uma percentagem elevada de casos, a história, infelizmente, não termina com a colecistectomia: cerca de 15‑20 anos depois, os doentes apresentam tendência elevada para a formação de novos cálculos no colédoco e recidiva das mesmas complicações. Tão‑pouco existe a possibilidade de prevenir esta ocorrência, pois faltam regimes alimentares ou medicamentos capazes de tornar a bílis fluida e menos litogénica.
Vive‑se bem sem vesícula? Sim! Poucos indivíduos têm sintomas resultantes da ausência da vesícula, excetuando, num caso ou noutro, tendência para diarreia, alguma dispepsia, e pouco mais. O que confunde o doente é a persistência de sintomas dispépticos pós‑colecistectomia, quando a remoção da vesícula se destinava precisamente a tratar esses sintomas. Era, com efeito, uma verdadeira dispepsia! Por outro lado, a remoção da vesícula pode exacerbar o refluxo duodenogástrico, com passagem para o estômago de conteúdo biliar e pancreático que, além de originar gastrite, pode também precipitar refluxo gastroesofágico alcalino.
Ainda no âmbito do rastreio de doença hepática, o apuramento dos comportamentos de risco constitui uma peça‑chave. As pessoas que consomem drogas injetáveis têm um risco de cerca de 80% de ter hepatite C crónica. Por outro lado, os filhos de mães portadoras de vírus da hepatite B, mesmo vacinados, têm algum risco, ainda que diminuto, de estarem infetados; os indivíduos que tomam determinados medicamentos (especialmente antibióticos e anti‑inflamatórios) podem desenvolver lesão hepática, que só as análises hepáticas podem revelar. Fora do contexto das doenças hereditárias, os descendentes de portadores de doença hepática autoimune apresentam um risco acrescido de virem a desenvolver uma doença similar. Para não falar nas doenças de outros órgãos ou sistemas (por exemplo, lúpus, artrite, etc.) que estão associadas a determinadas hepatopatias.
Uma doente de 18 anos apresentou‑se com elevação das transaminases. Tinha o anticorpo antinuclear (ANA) positivo – marcador do lúpus eritematoso disseminado. Como a doença hepática crónica é excecional no lúpus e como, pelo contrário, a presença de ANA é frequente na hepatite autoimune, este diagnóstico foi assumido e confirmado pela positividade para o anticorpo antimúsculo liso e alterações histológicas sugestivas na biopsia hepática.
Como penso ter ficado claro, a história clínica (anamnese) é fundamental para investigar a presença ou, mais genericamente, avaliar o risco de desenvolvimento de uma doença hepática. É preciso saber perguntar e é preciso saber ouvir! Mas também é preciso saber olhar, olhar com atenção para o mínimo detalhe. O britânico Arthur Conan Doyle (1859‑1930), criador de Sherlock Holmes, o mais célebre detetive de toda a história da literatura, era médico. É proverbial o seu olho vivo, que não deixava escapar qualquer pormenor… não fosse ele especializado em Oftalmologia! O seu sentido pedagógico, diria clínico, era notável. Usava o seu infalível método dedutivo, à boa maneira médica, no seu “instruendo” (e colega)… nem mais, nem menos, o seu “caro” Dr. Watson.