Um estudo levado a cabo pela Free Now, uma empresa de serviços de mobilidade que opera em várias cidades europeias, focado em perceber os efeitos sociais da pandemia nos seus clientes verificou um medo acrescido dos participantes em sair de casa. De acordo com o inquérito realizado na Alemanha, Áustria, Espanha, França, Irlanda, Itália, Polónia, Portugal, Reino Unido e Roménia, a nova tendência parece ser o FOGO, ou fear of going out.
Há muito que pela Internet corre a sigla FOMO – Fear Of Missing Out -que corresponde ao receio de perdermos um qualquer evento ou acontecimento que esteja ou venha a acontecer. Patrick McGinnis, autor do livro “Fear of Missing Out: Practical Decision-Making in a World of Overwhelming Choice”, acredita que o termo ganhou amplitude depois do 11 de setembro quando o mundo viu as torres gémeas cair depois de um atentado que mudou não apenas os EUA, mas toda a realidade internacional. Na época “sentimos que a vida nunca voltaria ao normal e viveríamos permanente num estado de medo”, recordou no Today Show McGinnis. “Quando a vida voltou ao normal… queríamos fazer tudo o tempo todo”, acrescentou o autor, explicando o significado por trás do termo viral.
De acordo com o testemunho de Jill Stoddard, doutorada em psicologia clínica e autora do livro “Be Might” sobre ansiedade, ao mesmo órgão de comunicação, o FOMO assume-se como uma forma de ansiedade. Hoje, e perante a pandemia mundial, o comportamento humano mudou, assim como a sua mentalidade e, com isso, mudaram também os medos. A juntar-se ao fear of missing out, traduzido para medo de perder, surge agora o FOGO, que, embora se assuma também como uma expressão de ansiedade, representa um medo muito diferente: o medo de sair de casa.
Durante cerca de dois anos, sair à rua era uma missão: era preciso manter a distância de segurança, não esquecer a máscara e desinfetar as mãos com frequência. O mundo passou a ser visto, durante grande parte do tempo, a partir de janelas e ecrãs de telemóvel e televisão. O “lado de fora” era um sítio perigoso, a rua um local de receio onde tudo e todos poderiam cair nas garras de um vírus que viajava escondido ao olhar. A normalidade pareceu, durante muito tempo, uma realidade distante, mas mesmo hoje, com o aligeirar das restrições em muitos países, incluindo Portugal, o receio ainda se deixa sentir e há quem continue a ver a rua como um campo de batalha. FOGO é a sigla dada a esse medo.
Com a Covid-19, a ansiedade ganhou uma outra força: quem já a tinha sentiu-a piorar, noutros casos o diagnóstico surgiu pela primeira vez. Ainda que muitos especialistas e o próprio governo incentivem a um regresso gradual à vida levada antes da pandemia, muitas pessoas escolhem permanecer em casa, isoladas, com receio de que o vírus esteja ainda à espreita e que, apesar de todas as recomendações em contrário, não seja seguro estar na rua e em espaços públicos.
O relatório elaborado pela FREE NOW e que contou com as respostas de mais de 6 mil utilizadores não só indica que este será um sentimento predominante na grande maioria dos países nos quais foi feito o inquérito, como evidencia que, em Portugal, 62% da população terá esse medo, seja frequente ou não, uma percentagem dois pontos percentuais acima da média europeia, com 45% a admitir ter, inclusive, cancelado planos devido à ansiedade causada pela socialização.
“36% dos portugueses aponta como a situação mais stressante as pessoas que fingem ter voltado tudo ao normal, enquanto 33% identifica o facto das pessoas não manterem a distância de segurança e 32% refere que o pior são as viagens em transportes públicos”, explica um comunicado da empresa.
Ainda assim, ter FOGO não significa que não exista o desejo de sair e recuperar o tempo perdido atrás de máscaras e portas fechadas. De facto, 68% dos portugueses, uma percentagem seis pontos percentuais acima da média europeia, quer voltar a realizar atividades sociais e regressar aos tempos das viagens e das reuniões com a família e amigos sem restrições. Apenas 25% dos portugueses “querem socializar menos agora do que antes da pandemia” e 36% “confessa ter mais vontade de socializar agora do que antes”.
Os países que se revelaram mais afetados pelo FOGO foram a Irlanda e o Reino Unido e os menos afetados a Áustria e a França, embora, ainda assim, a população que se sente restringida por este medo continue a corresponder à maioria.
FOGO, FOMO e o futuro
Na era pós pandemia a ansiedade foi crescendo nas duas formas: FOGO E FOMO. Enquanto o receio de sair à rua prevalece e chega mesmo a crescer com o alívio das restrições, também aumenta a vontade de sair, socializar e redescobrir a vida que foi posta em pausa durante a pandemia.
O momento atual vê-se dividido por uma “sociedade de duas velocidades” como explica McGinnis. “Uma grande percentagem das pessoas ainda é cautelosa e observadora, e (outras) estão a viver como se nada tivesse acontecido”, acrescenta o autor. São duas realidades que entram em confronto, o que nem sempre significa que uma pessoa não possa sentir ambos os medos. O resultado? Uma prisão entre a ansiedade de querer fazer e ansiedade de não poder.
Susana Pereira tem 47 anos e vive nessa dualidade. Sempre gostou “muito de ficar em casa”, mas a pandemia isolou-a, fez desse “afastamento” um “hábito”. As medidas, as restrições, foram-se interiorizando “à medida que a pandemia se agravava” e o “o contacto físico como tocar ou abraçar” tornou-se fruto proibido que devia ser evitado. Durante algum tempo Susana agia de acordo com o recomendado, e embora hoje as recomendações tenham mudado, o seu comportamento permanece.
Num dia “normal”, e desde que siga “todos os cuidados”, Susana sente-se bem, mas a rotina deve manter-se de acordo com o planeado e dentro dos formatos que a própria estabeleceu. É inevitável, no entanto, um sentimento de nervosismo sempre que sai. Quem sabe o que pode reservar o dia? “Deixa-me um pouco nervosa o facto de algum acontecimento que implique lidar com pessoas possa ocorrer no meu dia a dia de forma inesperada e isso possa implicar uma fuga da minha normalidade já de si muito formatada por todos os cuidados que tenho” admite.
A vontade de sair existe, mas o receio não permite que Susana o faça: “Tenho vontade de ir a um restaurante ou a um café, mas desde o início da pandemia que nunca mais fui nem jantar nem tomar um café fora”. Socializar sem distanciamento ou máscara “nem se quer é uma hipótese, talvez apenas se todos estivessem testados” e mesmo assim, admite, “tinha receio, não iria ser prazeroso por isso, evito-o”.
O receio, admite, diminui ligeiramente desde as vacinas, mas não deixa de estar lá e fazer-se sentir a cada hora do seu dia perfeitamente programado. “Como me protejo e estou vacinada não tenho muito receio, no entanto, não posso deixar de notar que tudo no dia a dia se reveste de alguma ansiedade que se pode considerar exagerada e isso foi algo que a pandemia me trouxe”, explica. E enquanto para uns a pandemia já pouco ou nada é tema de conversa, passando de ameaça a um acontecimento do passado, para Susana a pandemia não só ainda é tópico do presente como é também do futuro. “O meu maior medo é que a pandemia nunca mais acabe e esta nova forma de viver se torne num modo de vida e que estes eternos cuidados nunca mais se dissipem”.
Joana Costa, de 20 anos, é estudante universitária e, como Susana, viveu a pandemia e sentiu receio. Hoje em dia, no entanto, um medo outrora restritivo tornou-se numa vontade de ver, fazer e conhecer tudo. No começo, admite, sentiu-se “assustada” e “admirada” quando via “muita gente junta” pelo que tentava não se “juntar muito e usar sempre máscara”. “Mas com o passar do tempo, esse medo foi passando…acho que é normal e comum a todos”, diz a jovem. Hoje a vontade é a de “voltar à vida que tinha e aproveitar ainda mais porque sinto que deixei muita coisa por fazer”. Com o alívio das restrições, as prioridades mudaram e as suas preocupações também: “hoje quando vejo uma esplanada cheia já nem penso no Covid, sinceramente”, admite.
Um mesmo acontecimento mudou vidas de diferentes formas e Susana e Joana vêm representar realidades que, embora opostas, não deixam de ter uma origem comum. O que isso trará a longo prazo continua por determinar, mas, segundo McGinnis e Stoddard, alguns aspetos da mentalidade da quarentena vão permanecer nos anos que ainda estão por vir. Tal como o FOMO, que é falado há já muito tempo, o FOGO também não irá desparecer de um dia para o outro. Stoddard acredita, no entanto, que o receio de estar fora de casa irá acabar por se dissipar à medida que, pouco a pouco, regressamos à normalidade e vamos retomando as nossas vidas. Já o fear of missing out ainda dará muito que falar até porque, segundo a autora, teremos “uma explosão épica de FOMO” assim que as pessoas se sentirem seguras para sair de casa. “Eu acho que vai destruir o FOGO e toda a gente vai andar por aí viver a sua melhor vida porque agora apreciamos as coisas de uma forma diferente”, explica.