O tratamento das microbolhas tem vindo a ser desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de vários anos e junta-se agora a outros tantos – cirurgia, quimioterapia, radioterapia e até ablação – dedicados também à remoção de diferentes tipos de tumores. A única diferença? “Não é invasivo. Não é ionizante. Não é térmico”, explica o site oficial da Histosonics, promotora da nova terapia não invasiva de ultrassom conhecida por histotripsia.
Há muito tempo que a comunidade médica se tem debruçado sobre as potencialidades das ondas ultrassom e das próprias microbolhas de gás. Várias pesquisas têm sido desenvolvidas numa tentativa de perceber como as microbolhas, cuja dimensão é significativamente mais reduzida em comparação com a de uma célula cancerosa, podem ser utilizadas no tratamento do cancro.
De facto, as microbolhas não são novidade no mundo da medicina e têm sido utilizadas como um método de transporte direto de medicamentos quimioterapêuticos até às células invasoras ou cancerígenas. Este método traz consigo algumas vantagens, como a redução de alguns dos efeitos colaterais da medicação ou a possibilidade de administrar grandes quantidades dessa mesma medicação sem danificar o tecido saudável que rodeia o tumor. Ainda assim, alguns problemas parecem persistir e continua a fazer-se sentir a problemática da resistência que muitas vezes os cancros desenvolvem aos medicamentos.
A histotripsia não só ultrapassa este obstáculo como, contrariamente aos outros tipos de terapia, não se deixa acompanhar pela maioria dos efeitos secundários tipicamente associados aos tratamentos de cancro, nomeadamente mal-estar ou perda de cabelo. Este método “usa ondas sonoras pulsadas para induzir “nuvens de bolhas” de gases naturalmente presentes no tecido alvo. Essas nuvens de bolhas formam-se e colapsam em microssegundos, criando forças mecânicas fortes o suficiente para destruir tecidos em níveis celulares e subcelulares num método não invasivo e não térmico”, explica a Histosonics no seu site.
Por outras palavras, são utilizadas ondas ultrassom, direcionadas para o tumor a partir da parte de fora do organismo, para ativar bolsas de gás microscópicas presentes no tecido humano, inclusive nos tumores, que se encontram normalmente adormecidas, mas que, por efeito das ondas ultrassom, são ativadas e forçadas a expandir, a vibrar e, finalmente, a explodir. Uma vez que existem milhares de microbolhas e, por isso, várias explosões a acontecer ao mesmo tempo, muita energia é gerada, o que causa a quebra do tecido canceroso, depois eliminado do corpo como um resíduo.
A capacidade de o ultrassom destruir tecido humano é conhecida há muito tempo. No entanto, a adaptação das suas potencialidades para o tratamento de cancro só mais recentemente foi explorada por ter sido mais demorado o processo de perceber como limitar o seu impacto apenas à zona cancerígena, evitando que danificasse tecido saudável. Em teoria, o tratamento parece promissor, mas são os resultados experimentais que permitem perceber se será ou não eficaz e a boa notícia é que, até agora, o tratamento parece estar a resultar.
Resultados promissores
Vários estudos têm procurado explorar as potencialidades desta técnica no tratamento do cancro e os resultados têm sido promissores. Um dos estudos, publicado em 2016 na Nature Nanotechnology, provou a eficácia das microbolhas na eliminação dos resíduos cancerígenos que muitas vezes permanecem no pós-operatório e levam a “recaídas letais e metástases (extensão do tumor a outras zonas)”, como é explicado no estudo. “A nanocirurgia PNB (microbolhas) aumentou a probabilidade de sobrevivência até duas vezes em comparação com a cirurgia padrão. Os nossos resultados mostram que a cirurgia e a nanocirurgia guiadas por PNB podem detetar e remover DRM (tumor residual) de forma rápida e precisa em procedimentos intraoperatórios simples”, conclui o estudo.
“Em muitos casos, o cancro está numa parte do corpo na qual os médicos têm medo de remover mais do que pensam”, diz ao The Guardian Joe Kiani, chefe executivo e fundador da Masimo, uma empresa que desenvolve a tecnologia necessária para este tipo de tratamento. “E quando deixamos um pouco para trás: metástase. A recorrência e as metástases são as principais causas de morte”, explica.
Na altura, a tecnologia foi testada em ratos, mas hoje o conhecimento mais vasto e aprofundado da área permitiu avançar com testes em humanos e os resultados não desiludiram. Um estudo publicado pelo Radiological Society of North America, em 2020, aplicou a 28 portadores de carcinoma hepatocelular, ou cancro de fígado, o método descrito, concluindo que a destruição de tecido cancerígeno através da explosão de microbolhas não só é “viável e com um excelente perfil de segurança” como não é causadora de “nenhuma alteração nos sinais vitais ou na função hepática (funcionamento do fígado)”.
A Histosonics está agora a desenvolver um estudo mais amplo que tem contado com a colaboração de doentes de vários continentes e ao qual deram o nome #HOPE4LIVER (#ESPERANÇAPARAOFÍGADO). Segundo um comunicado da empresa, o estudo foi “projetado para avaliar a segurança e a eficácia da tecnologia da plataforma da empresa, que usa a nova ciência da histotripsia, uma forma de ultrassom terapêutico focado para destruir mecanicamente tumores hepáticos primários e metastáticos direcionados, sem incisões invasivas ou agulhas que entram no corpo do doente”.
Inicialmente, o tratamento experimental estava aberto apenas a doentes dos EUA, mas rapidamente abriu fronteiras a outros países, nomeadamente do continente europeu. O primeiro doente foi tratado com sucesso em fevereiro do ano passado, no Hospital Geral de Tampa, Flórida.
Desde então, vários outros portadores de cancro de fígado foram aceites para participar no ensaio clínico em Espanha, Itália, Reino Unido e Alemanha, com uma taxa de sucesso muito elevada. Embora o estudo ainda esteja a decorrer, os doentes têm tido “um bom desempenho durante e após o procedimento”, como explica o radiologista, diretor da Clínica Universitária de Radiologia e Medicina Nuclear e investigador principal do site #HOPE4LIVER em Magdeburg, Alemanaha, mas todos eles continuarão a ser seguidos pelo menos um ano após a operação para perceber se se mantêm estáveis.
Antes de ser aprovado e disponibilizado a todos os doentes de cancro que ofereçam o conjunto certo de características, o tratamento ainda terá de passar por mais uma fase, com o fim dos testes previsto para 2026.
Neste momento, o tratamento está a ser testado apenas em portadores de cancro de fígado pela baixa taxa de sobrevivência de cinco anos apresentada por este tipo de cancro. No entanto, acredita-se que a tecnologia também terá potencial para tratar outros órgãos, incluindo os rins, pâncreas, mama, próstata e até cérebro.
Os prós e contras
O estudo ainda não inclui uma descrição concreta dos possíveis efeitos secundários deste tipo de tratamento até porque, tendo o ensaio clínico começado há pouco tempo, ainda não podem ser contabilizadas quaisquer consequências a longo prazo que possam existir. “Às vezes, a segurança e a eficácia da abordagem ou uso experimental podem não ser totalmente conhecidos no momento do estudo”, como é explicado.
“Alguns estudos podem oferecer aos participantes a perspetiva de receber benefícios médicos diretos, enquanto outros não. A maioria dos ensaios envolve algum risco de dano ou lesão ao participante, embora possa não ser maior do que os riscos relacionados com os cuidados médicos de rotina ou à progressão da doença”, escrevem os autores nas “considerações para participação”.
Apesar de existir o fator do desconhecido, muitos benefícios foram comprovados. Um deles recai sobre o facto de a intervenção não ser invasiva, em contraste com muitos dos outros tratamentos de cancro que implicam um grande esforço de recuperação por parte do doente.
O tratamento por ablação convencional, por exemplo, recorre a uma agulha inserida no abdómen do doente, que segue para o tumor. Uma vez no tecido cancerígeno, a energia de microondas aquece as moléculas de água dentro do tumor, destruindo-o. Os detritos criados tornam-se, depois, tecido cicatricial. Embora seja considerado um tratamento seguro, há um pequeno risco de que os vasos sanguíneos próximos possam ser danificados pelo calor.
Essa parte de tecido saudável que fica danificado é exatamente um dos principais riscos que o tratamento de microbolhas procura evitar, assim como outros “danos provocados pelo calor de modalidades térmicas e incisões ou agulhas de tratamentos tradicionais”, como explica o site da Histosonics.
A empresa é responsável por desenvolver o aparelho que torna possível este tipo de tratamento. Edison foi o nome dado pela equipa à plataforma responsável por fornecer a “energia sonora pulsada para o corpo” necessária à ativação das microbolhas de gás. Este instrumento funciona como uma espécie de braço que não só vai emitindo as ondas ultrassom como vai monitorizando toda a operação num ecrã, oferecendo uma experiência de “tratamento em tempo real”.
Seguir a operação através de imagem também não é novidade, mas nem todos os tratamentos a oferecem. A visualização contínua permite um “tratamento personalizado” tanto antes como durante a operação, o que abre também espaço a que possam ser feitos ajustes, se necessário, tendo em conta as especificidades de cada doente ou qualquer imprevisto que possa surgir.
O presidente e CEO da HistoSonics, Mike Blue , já assegurou, em comunicado, que “os resultados clínicos iniciais e em andamento são promissores” e vêm oferecer “vantagens para doentes e médicos que não existem hoje”. O objetivo da empresa, realça, é “trabalhar com a FDA (agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) para tornar a tecnologia acessível o mais rápido possível”.