Quase dois anos após o início da pandemia, a comunidade científica começava a ser capaz de sistematizar algum conhecimento importante, relativamente ao SARS-CoV-2, à capacidade de este ser combatido pelas vacinas e à duração da imunidade conferida pelas mesmas.
No entanto, novo ano variante nova. Às portas de 2022, a Ómicron veio baralhar as contas, trazendo novas mutações, contágios mais velozes ainda que com formas de doença menos graves e uma maior capacidade de evadir os chamados anticorpos neutralizantes, que impedem o vírus de infetar-nos.
Segundo dois estudos, pré-publicados em dezembro de 2021 e janeiro deste ano, e ainda a aguardar revisão pelos pares, a proteção conferida por duas doses de uma vacina de mRNA, contra doença sintomática causada pela Ómicron, cai para menos de 40% apenas alguns meses após a toma da segunda dose.
Porém, o primeiro estudo revela que, duas semanas após a toma da terceira dose de reforço, a eficácia da proteção vacinal encontra-se entre os 60 a 70% de proteção, enquanto que o segundo estudo observou que a proteção contra doença grave parece forte.
As dúvidas permanecem agora sobre se e como a proteção conferida pela infeção ou pela terceira dose de reforço contra a Ómicron decaírá ao longo do tempo. “Se a dose de reforço não robustecer o suficiente a nossa proteção contra a doença, então aí poderá fazer sentido uma vacina que seja especificamente dirigida a esta variante e, eventualmente, a outras variantes no futuro”, defende o investigador principal do Instituto de Medicina Molecular, Miguel Prudêncio.
Apesar de não nos podermos esquecer que as vacinas foram desenvolvidas com base na variante ancestral de SARS-CoV-2, Miguel Prudêncio sublinha a importância da chamada imunidade celular. Ou seja, além de possuir anticorpos neutralizantes, o nosso sistema imunitário está munido de células de memória B e T, menos suscetíveis às mutações que possam surgir em novas variantes do vírus.
Ainda assim, e apesar da memória celular, não é garantido que, com o passar do tempo e as sucessivas mutações do vírus, este não mude tanto ao ponto da memória celular não poder recordá-lo. Apesar de este fenómeno não acontecer com algumas infeções, tal não se aplica aquelas provocadas pelos coronavírus responsáveis por 20% a 25% das constipações normais que temos todos os invernos, da mesma “família” do SARS-CoV-2.
“As pessoas em geral são reinfetadas entre dois a cinco anos depois de terem uma infeção. Isso acontece não porque ao fim de X tempo o nosso sistema imunitário não consiga reconhecer os coronavírus, mas porque estes vão mudando lentamente”, explica o epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Manuel Carmo Gomes.
Portanto, quando os coronavírus nos reinfetam, o nosso sistema imunitário já não os reconhece, porque eles já mudaram. Os anticorpos que foram desenvolvidos na altura da primeira infeção não desapareceram, o vírus é que mudou.
Como funcionam os anticorpos?
As células B e T do sistema imunitário são, portanto, uma espécie de memória que o nosso corpo armazena para, quando o número de anticorpos neutralizantes decai, poder estar apto a reconhecer e combater os intrusos. Estas memórias podem ser adquiridas tanto pela infeção como pela vacinação.
As células B “são as primeiras a responder”, explica à revista Nature Ali Ellebedy, imunologista da Escola de Medicina da Universidade de Washington, nos Estados Unidos da América. Durante a primeira exposição a um patogénio, as células B que são ativadas dividem-se rapidamente e diferenciam-se em células plasmáticas que produzem proteínas chamadas anticorpos. Estes são os anticorpos neutralizantes, que neutralizam o vírus à chegada, impedindo-o de nos infetar.
“Os anticorpos são super importantes para impedir a infeção e são muito mais sensíveis a alterações na proteína spike, porque, se ela se alterar, a capacidade de estes neutralizarem uma variante diminui consideravelmente, como está a acontecer com a Omicron”, afirma Prudêncio.
Mas o que importa realmente, e que nos protege contra as formas mais graves de doença, é se o corpo produz células B de memória, que podem combater o agente patogénico no caso de ele reaparecer.
Essas células, geralmente, desenvolvem-se dentro dos chamados centros germinativos, que servem como uma espécie de campo de treino de células B. No decorrer de alguns meses, apenas as células capazes de produzir os melhores anticorpos se transformam em células B de memória. É “quase um processo de seleção”, diz Ali Ellebedy à Nature.
Diminuição do nível de anticorpos é normal
A diminuição do número de anticorpos neutralizantes, ao longo do tempo, é normal, asseguram os especialistas. Resta agora saber a velocidade a que tal acontece, no que respeita a variante Ómicron, e se o decaimento é igual para quem foi infetado e quem foi vacinado com a dose de reforço.
Um estudo publicado na revista Cell, em julho de 2021, verificou que os níveis de anticorpos de pessoas infetadas em abril de 2020 caíram rapidamente nos primeiros dois a três meses após a infeção, mas que, cerca de quatro meses mais tarde, a curva começou a achatar.
A resposta imune após a vacinação é semelhante, porém tem uma diferença significativa. Como explica Carmo Gomes, quando se é infetado por SARS-CoV-2, o corpo “desenvolve uma resposta imunitária contra várias proteínas do vírus, as quais muito dificilmente sofrem mutações todas ao mesmo tempo, se não era outro vírus”.
Já no caso das vacinas, o corpo entra em contacto apenas com a proteína spike e se os níveis de decaimento da proteção também estabilizarão é algo que não está ainda claro.
O poder da memória celular
A imunidade não vem só dos anticorpos e a memória celular já demonstrou ser o Ás na manga contra um futuro pandémico incerto. Um estudo publicado na revista Science chegou à conclusão, inclusive, que a resposta das células B de memória melhora com o tempo, pelo menos a curto prazo. Seis meses após a vacinação, os indivíduos do estudo apresentavam números elevados de células B de memória que responderam não apenas ao SARS-CoV-2 original, mas também a três outras variantes de preocupação
Além das células B, o papel das células T é fundamental. Estas, indica Miguel Prudêncio, têm a capacidade de reconhecer uma célula infetada pelo vírus e eliminá-la. “Essa imunidade é mais duradora que os anticorpos e mais robusta às mutações, porque, enquanto as mutações podem ter algum impacto na eficácia neutralizante dos anticorpos, as células T identificam vários aminoácidos das proteínas dos vírus, tendo estes mais dificuldade em fugir à sua resposta”.
Quando reexpostas a um vírus, ou perante uma dose de reforço, estas células entram em ação. “Em 24 hora podemos ter um aumento de dez vezes no número de células T de memória. Embora isso provavelmente não seja suficientemente rápido para ter efeitos sobre a infeção, pode evitar a hospitalização”, revela Shane Crotty, imunologista do Instituto de Imunologia La Jolla, na California, à revista Nature.
Algumas pessoas podem ter células T de memória de infeções anteriores por outros coronavírus que não o SARS-COV-2, mas que poderão reconhecê-lo, ajudando a combater a infeção. A revista Nature dá conta de um estudo, por exemplo, que descobriu que os profissionais de saúde que foram expostos ao SARS-CoV-2, mas nunca deram positivo, apresentavam ainda assim sinais subtis de resposta à infeção.
Os investigadores levantam a hipótese de que as células T reativas cruzadas travariam a infeção antes que ela se instalasse, porém a ideia é ainda muito controversa e o fenómeno raro.
Porém, quando falamos da mesma doença, neste caso a Covid-19, e apenas de variantes diferentes, vários estudos revelaram que as pessoas que haviam sido vacinadas ou infetadas com SARS-CoV-2 acabaram por ter aproximadamente a mesma resposta de células T tanto à variante Ómicron como à variante Delta, apesar do grande número de mutações presente na primeira.
Doses de reforço para sempre?
A pergunta de um milhão permanece. Afinal, quanto dura a proteção da vacina? A resposta é complexa e Miguel Prudêncio defende mesmo que “quanto mais tarde se tiver esta resposta melhor, porque quer dizer que enquanto ela não existir, as vacinas estão a fazer efeito”.
O investigador explica que não há nada que se possa medir e nos diga exatamente quando, ou se, as vacinas deixarão completamente de nos proteger. “Os anticorpos, por si só, não são preditores da proteção. Temos ainda a imunidade celular, construída graças às células de memória T”, afirma o especialista. Ou seja, a imunidade contra a infeção até pode diminuir nos meses após termos sido vacinados, mas o treino que as vacinas dão ao sistema imunológico para prevenir doença grave e morte continua a ser muito forte.
Ainda assim, dados do Reino Unido sugerem que a proteção conferida pela dose de reforço pode diminuir rapidamente. Três doses da vacina Pfizer–BioNTech conferem 70% de proteção inicialmente, mas após 10 semanas, a proteção contra a infeção decai para 45%. Além disso, relatórios recentes de Israel sugerem que o reforço com uma quarta dose não parece elevar a proteção de forma eficaz.
A resposta ao problema poderá passar, mais do que vacinar toda a população com doses de reforço ad aeternum, criar uma vacina de segunda geração que apresentem um salto qualitativo em termos de tolerância, resistência a variantes, facilidade de uso, durabilidade e mecanismos corporais invocados.