Apesar de não ser uma medida de proteção que condicione a vida, como o confinamento em casa, poder sair à rua sem ter de usar máscara é, talvez, um dos momentos mais esperados pelos portugueses na cronologia da pandemia. Do outro lado do Atlântico já há quem possa fazê-lo, desde que o centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos da América (EUA), a principal agência federal de saúde pública do país, atualizou as normas quanto às pessoas totalmente vacinadas.
Num vislumbre daquilo que será o regresso à realidade pré-pandémica, os norte-americanos totalmente vacinados já podem andar sem máscara no interior e ao ar livre,segundo Rochelle Walensky, diretora do CDC.
O epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Manuel Carmo Gomes alerta para o facto de este relaxamento estar a gerar uma grande confusão nos EUA, porque, por exemplo, ao entrar nas lojas, “as pessoas não usam máscara e dizem que estão completamente vacinadas”, ainda que não exista nenhuma forma de prová-lo, tendo os empregados de acreditar apenas na palavra de cada um.
“Tenho receio que caiamos numa situação como aquela em que se encontram os Estados Unidos, que é uma enorme confusão. Não gostaria que fossemos por esse caminho nem de ver essa confusão instalada aqui em Portugal”, defende o epidemiologista.
Tenho receio que caiamos numa situação como aquela em que se encontram os Estados Unidos, que é uma enorme confusão. Não gostaria que fossemos por esse caminho nem de ver essa confusão instalada aqui em Portugal
manuel carmo gomes – epidemiologista
Apesar de defender que “cientificamente não existe razão para um vacinado usar máscara, porque a infeção com capacidade de transmissão, de pessoas vacinadas, é diminuta”, Pedro Simas, virologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) concorda que uma estratégia semelhante à dos EUA pode causar alguma confusão e “talvez seja mais indicado quando se começar a relaxar o uso das máscaras, gradualmente, que se faça para toda a gente ao mesmo tempo”.
Os vacinados podem deixar de usar máscara?
As opiniões dividem-se, mas convergem num ponto: ou o relaxamento é para todos ou não é para ninguém. Se a medida terá de ser para toda a população ao mesmo tempo, então a decisão caberá às autoridades de saúde.
O secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, garantiu no sábado, 15 de maio, que Portugal não está a equacionar a dispensa do uso de máscara por parte de pessoas vacinadas, devido à falta de robustez científica para avançar com essa medida. “Tomámos a decisão de, mesmo após vacinação, manter a máscara, manter distanciamento e, portanto, manter as diretrizes da Direção-Geral da Saúde (DGS)”, afirmou Lacerda Sales.
Neste momento, com 13% da população totalmente vacinada, segundo Carmo Gomes e Simas, as direções da DGS são para cumprir. Ainda assim, ambos referem que um grupo onde se encontrem apenas pessoas totalmente vacinadas não corre perigo se não usar máscara, esteja dentro de casa ou ao ar livre. Carmo Gomes alerta, no entanto, que “em todas as outras situações tem de se continuar a usar máscara”.
Até podemos chegar a uma altura em que não seja necessário exigir o uso de máscaras em jardins públicos e praias, mas aí é mesmo muito importante que seja mantida a distância social de segurança
celso cunha – especialista em biologia molecular
Celso Cunha, especialista em Biologia Molecular do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, refere que o abandono da máscara só fará sentido enquadrado num contexto de outras medidas que sejam tomadas dentro do desconfinamento progressivo que estamos a viver. “Até podemos chegar a uma altura em que não seja necessário exigir o uso de máscaras em jardins públicos e praias, mas aí é mesmo muito importante que seja mantida a distância social de segurança, porque esse é o primeiro fator que ajuda a conter o vírus”, frisa o especialista.
Largar a máscara aos 70% de vacinados?
A máscara foi de extrema importância, Simas não tem dúvidas, da mesma forma que, tal como Celso Cunha, não duvida que passará pelo mesmo processo de desconfinamento gradual de outras medidas (confinamento, recolher obrigatório ou as regras impostas a comércio e restaurantes), mas pensa que “não será obrigatório usar máscara nas vias públicas quando tivermos 60% da população vacinada com uma dose, por exemplo”.
Penso que não será obrigatório usar máscara nas vias públicas quando tivermos 60% da população vacinada com uma dose
pedro simas – virologista
Já Manuel Carmo Gomes defende que tudo depende como estará a incidência da doença no país, nessa altura. “Se a incidência for aquela que há neste momento, mesmo com 70% das pessoas vacinadas, a resposta é não podemos deixar de usar máscara”. Carmo Gomes explica que dar orientações de tipo geral como esta torna-se complicado “quando sabemos que há situações concretas de pessoas fragilizadas e bolsas de pessoas que não foram vacinadas”.
Para o epidemiologista, o abandono da máscara só poderá ocorrer entre sete a 14 dias após 75% ou mais da população ter sido inoculada com ambas as doses da vacina, e só se se verificar uma incidência da doença bastante baixa. “Eu jogaria pelo seguro, aguardaria que a cobertura vacinal fosse bem mais alta e começássemos a ver, por dia 10, 15, 20 casos no máximo”.
Além do país se encontrar ainda longe de tal incidência, é também importante não confundir os mais de 75% vacinados de que Carmo Gomes fala (cidadãos com duas doses de vacina) com os 70% de portugueses que, de acordo com o coordenador da task force para a vacinação, Henrique Gouveia e Melo, deverão estar vacinados até agosto, com a primeira dose de vacina.
Eu jogaria pelo seguro, aguardaria que a cobertura vacinal fosse bem mais alta e começássemos a ver, por dia 10, 15, 20 casos no máximo
manuel carmo gomes – epidemiologista
Pedro Simas refere, no entanto, que, apesar de a imunidade total ser conferida após a toma do programa vacinal completo (duas doses de vacina), a estratégia de aumentar o espaçamento entre doses de vacinas, adotada em dezembro pelo Reino Unido, veio mostrar que apenas uma dose já protege de forma robusta a população contra a doença severa, internamento e morte, 14 dias após toma.
Por esta razão, o virologista defende que uma primeira dose de vacina já confere um grau de proteção importante à população e poderá permitir um “desconfinamento” progressivo do uso da máscara, “quando chegarmos a 60% da população vacinada com uma dose”.
Ainda assim, e apesar de concordar veementemente que as vacinas aprovadas protegem contra a doença grave, Celso Cunha considera que ainda “estamos a ver se a imunidade que as pessoas adquiririam é longa, forte e igual em todos os grupos etários” e que não se devem desvalorizar as pessoas que, mesmo após a vacina, podem ser infetadas, ficar assintomáticas e transmitir a infeção a outros sem o saber. “Se o alívio da máscara em espaços ao ar livre até pode começar a ser recomendado, para já, em espaços fechados não recomendaria um alívio tão rápido”, afirma.
Desconfinamento da máscara possível a partir de julho?
Julho traz promessas de esperança, pois é o mês apontado como aquele em que 70% de portugueses já deverão ter recebido a primeira dose de vacina. “Quando atingirmos 60% de pessoas vacinadas com a primeira dose, vejo uma grande dificuldade em justificar o uso de máscara nas vias públicas, porque vamos ter poucas infeções e, mesmo que não sejam muito poucas, desde que não tenhamos internamentos e mortes, isso é que é mais importante”, afirma Pedro Simas, salvaguardando que a máscara foi uma medida essencial e não poderá ser abandonada de repente. “Agora, começa a ser possível pensar em desconfinar a máscara, mas a decisão terá sempre de partir da Direção Geral da Saúde”.
Celso Cunha avança que é muito difícil definir uma data para o abandono das máscaras e que, apesar de a resposta “mais simples” ser afirmar que acontecerá mal se atinja a imunidade de grupo, com 60% a 70% das pessoas vacinadas, esta percentagem ainda carece de confirmação. “Sabemos que para diferentes vírus e diferentes agentes patogénicos a imunidade de grupo depende de vários fatores além do nosso sistema imunitário, teremos de esperar para ver”, aconselha.
Celso Cunha preocupa-se sobretudo com o momento em que as pessoas começarão a perder imunidade, baixando a imunidade de grupo. “Podemos começar a ter surtos um bocadinho aqui e um bocadinho ali”. Mas Pedro Simas explica que, quando nos referimos a imunidade de grupo, não podemos pensar que o vírus desaparece completamente da comunidade. O virologista refere que ficará antes endémico, criando imunidade naturalmente, ao contactar com pessoas, infetando-as sem causar doença grave.
A carta mais preocupante, que pode alterar o jogo, é, segundo Pedro Simas e Celso Cunha, o aparecimento de uma variante que ponha em causa a eficácia das vacinas na proteção contra doença severa e morte, “algo que até agora ainda não aconteceu e não se prevê que aconteça, conhecendo a história dos outros coronavírus respiratórios”, nas palavras de Simas.
Celso Cunha sublinha também a importância de não pensar apenas à escala local, quando vivemos num mundo global. “Se não conseguirmos chegar a 70% da população mundial vacinada, não vamos ter imunidade de grupo enquanto as pessoas continuarem a viajar de um lado para o outro”.
Oespecialista considera, no entanto, que, por agora, “vamos ter um verão relativamente sossegado”, pois o ritmo de vacinação vai continuar e, “apesar dos turistas e outros fatores de risco, não deverá haver um grande peso sobre o serviço nacional de saúde”.