As suspeitas da associação entre as vacinas da AstraZeneca e da Johnson & Johnson a casos muito raros de formação de coágulos sanguíneos, assim como os atrasos na sua entrega, terá levado a Comissão Europeia a admitir não renovar os contratos de fornecimento com ambas as farmacêuticas, avançou o jornal italiano La Stampa, citando uma fonte do Ministério da Saúde italiano.
Esta decisão seria sinónimo do reforço da aposta nas vacinas à base da tecnologia mRNA, como a da Pfizer/BioNTech e a da Moderna, já que as da AstraZeneca e da Johnson & Johnson utilizam vetores virais (adenovírus).
Oficialmente, um porta-voz da Comissão Europeia já veio dizer que todas as opções estão em aberto e recusou comentar “questões contratuais”. Contudo, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, acaba de anunciar que a Pfizer/BioNTech vai fornecer 50 milhões de doses extras, que deverão começar a chegar já este mês e estar entregues até junho. Inicialmente, a encomenda estava agendada para o último trimestre do ano.
Estamos a entrar em negociações com a Pfizer/BioNtech para um terceiro contrato, que prevê a entrega de 1,8 mil milhões de doses extras no período de 2022 e 2023
Ursula von der Leyen, PRESIDENTE DA COMISSÃO EUROPEIA
“Estamos a entrar em negociações com a Pfizer/BioNtech para um terceiro contrato, que prevê a entrega de 1,8 mil milhões de doses extras no período de 2022 e 2023. E vai envolver não só a produção da vacina, mas também de componentes essenciais”, adiantou, ainda, Ursula von der Leyen, esta quarta-feira, dia em que a União Europeia somou 100 milhões de doses administradas.
Fábricas de anticorpos
A vacina da Pfizer/BioNTech, assim como a da Moderna, baseia-se na técnica de imunização mais inovadora, que recorre ao RNA mensageiro (mRNA), um autêntico tradutor de informação genética em proteína.

As vacinas tradicionais contêm uma versão atenuada do vírus, ou seja, o agente patogénico já não é capaz de causar doença, mas ainda consegue provocar uma reação imunológica – é o caso das vacinas do sarampo, tuberculose ou papeira.
Outra técnica comum é a injeção de componentes do vírus, como na gripe ou na poliomielite, em que apenas são inoculadas proteínas da superfície do vírus, suficientes para gerar a criação de defesas no organismo.
No caso das vacinas de mRNA, elas induzem o sistema imunitário a fabricar defesas, sem ser necessário inocular o vírus, ainda que enfraquecido, nem as suas proteínas. Neste caso, será o próprio organismo a produzir proteínas específicas do vírus, que desencadeiam uma reação imunitária.
“É como se estivéssemos a pôr um software de proteção no corpo humano, sem ser necessário provocar doença”, ilustra o investigador do departamento de Química da Universidade de Aveiro, Pedro Fontes Oliveira. Tal como se o mRNA fosse a lista de ingredientes escrita pelo ADN que, depois, é levada até às células que os fabricam. Aqui, os ingredientes são proteínas.
Nas vacinas contra o SARS-CoV-2, a informação inserida laboratorialmente em moléculas de mRNA contém o código para ensinar o organismo a produzir uma das proteínas do vírus, a proteína spike, que compõe os espigões que servem de chave para o coronavírus entrar nas células do corpo humano. Individualmente, a proteína spike não é prejudicial ao organismo, mas, devido à sua especificidade, é suficiente para ser detetada como intrusa.
Quando a vacina é administrada, o mRNA precisa de estar envolvido numa cápsula lipídica para conseguir entrar nas células. Depois de entrar, essa membrana degrada-se e as “fábricas de proteínas”, os ribossomas, leem o que está escrito no mRNA e começam a produzir a proteína spike. Quando ela é detetada pelo organismo, são gerados anticorpos, que alertam o sistema imunitário para eliminar a ameaça. “Os anticorpos guardam na memória a informação de que, quando aquelas proteínas spike forem detetadas, isoladamente ou agregadas a outras células, são para combater”, explica Pedro Fontes Oliveira.
Revolução em curso
“Revolucionárias.” A presidente do Instituto de Medicina Molecular (iMM), da Universidade de Lisboa, Carmo Fonseca, não poupa nas palavras no momento de classificar as potencialidades das terapias baseadas em RNA.
“Quase todas as doenças genéticas derivam de informação original danificada que passa do ADN para o RNA, mas agora é possível corrigir esses erros ao nível do RNA, sem ser necessário alterar a linha germinal do indivíduo”, ou seja, sem alterar de forma permanente o ADN. Desta forma, as modificações ficam circunscritas à pessoa que recebeu o tratamento e não serão herdadas pelos seus descendentes.
Quase todas as doenças genéticas derivam de informação original danificada que passa do ADN para o RNA, mas agora é possível corrigir esses erros ao nível do RNA, sem ser necessário alterar a linha germinal do indivíduo
CARMO FONSECA, presidente do Instituto de Medicina Molecular
A rapidez com que as vacinas de mRNA podem ser desenvolvidas, uma vez que não são utilizados organismos vivos nem são necessárias culturas de células geneticamente modificadas, é uma das suas principais vantagens. O RNA pode ser facilmente replicado em laboratório e, por isso, há muito que estas vacinas eram apontadas como possíveis soluções perante uma pandemia.
A também presidente da RNA Society sublinha, ainda, que perante mutações do vírus “será muito fácil adaptar a vacina” e voltar a garantir uma imunização eficaz. Além disso, “o sistema imunitário responde de forma mais forte quando é injetado RNA do que quando são administradas proteínas do vírus”, compara Carmo Fonseca, o que pode resultar numa maior proteção. A vacina da Pfizer/BioNtech tem uma eficácia de 95% e a da Moderna de 94%.