Conta-me a tua pior história. Conte-me a sua pior história. Contem-me a vossa pior história. Pedi-vos 5, 6 linhas, de forma objetiva. Deram-me bem mais e não fui capaz de cortar palavras. Não há atalhos nestas coisas. Este texto não é meu. Somos todos nós, desde há mais de um ano.
Cama 42, doente do sexo masculino, entre 75 e 80 anos. Faleceu serenamente. Quando eu e a enfermeira fomos proceder ao processo da múmia, vimos que havia uma carta da filha do senhor em cima da mesa de cabeceira, que possivelmente teria sido entregue uns dias antes. Resolvemos ler a carta ao senhor. Em nós as lágrimas rolaram. Jamais vou esquecer.
Doente da cama 39, salvo erro, ou da 40. No penúltimo dia de vida, à hora de jantar, tentei de forma maternal convencê-lo a comer. Negou, bastante revoltado. Falei com ele calmamente e consegui dar-lhe um arroz doce com a medicação oral. Fiquei feliz por ter conseguido. Muito mais calmo, despedi-me dele desejando uma boa noite. Pediu com educação que desligasse a TV e a luz. Senti que ficou tranquilo. No dia seguinte, durante a higiene, faleceu. Marcou-me profundamente.
Doente da cama 18. Creio ter sido a primeira morte nesta faixa etária. 28 anos. Sexo masculino. Paquistanês. Desceu da UCI para a nossa enfermaria. Senti e assisti, durante os cuidados prestados, à enorme aflição e dificuldade respiratória – era tão ruidosa, que me deixou devastada. Faleceu na saída de vela. Segundo soubemos, tinha 3 filhos e esposa, estavam a começar uma vida nova no nosso país.
Todas as mortes são tristes e marcantes, mas estas, pelo fator idade, que podiam ser meus filhos, não me saem da cabeça.
(Gracinda Silva, Assistente Operacional, 60 anos)
Comecei a trabalhar em serviços COVID em no final de 2020. Pouco depois, soube que os meus tios se tinham infetado com COVID 19 e acompanhei o agravamento clínico progressivo da minha tia, desde a ida ao Serviço de Urgência, internamento e posterior transferência para a unidade de cuidados intensivos, onde esteve durante três semanas, entubada e ventilada. Felizmente, já está em recuperação… mas foi sufocante ter alguém tão querido para mim internado no hospital onde trabalho e ter que transmitir a toda a família alguma calma e serenidade, quando na realidade passavam por mim diariamente dezenas de mortes e outros tantos com evolução clínica semelhante. Dei por mim frequentemente a pensar na expressão “onde é que eu já vi este filme?”. E pareceu mesmo um filme, muitas vezes de terror, é certo, mas com muita aprendizagem e espírito de entreajuda por parte de todos os profissionais com quem trabalhei (talvez este seja o segredo da nossa resiliência durante esta fase!). Estes últimos meses foram os mais difíceis e desafiantes a nível profissional; emocionalmente deixarão marcas duradouras.
(Cláudia Janeiro, Médica, 31 anos)
Lembro-me claramente de um casal de idosos, juntos há mais de 60 anos. O marido internado num serviço, a mulher no outro. Todos os dias, sem exceção, o senhor procurava notícias da companheira. O olhar cansado não conseguia esconder a saudade, a tristeza, o medo, a ansiedade e a angústia. Infelizmente, o estado de saúde dela agravou-se bastante. Preparámos uma visita breve. Foi comovente ver aquele senhor, fragilizado, numa cadeira de rodas junto à cama, a segurar a mão do seu grande amor, da pessoa com quem escolheu partilhar a vida. No dia seguinte, a senhora faleceu. Ao receber a notícia, o senhor disse em pranto “Ela foi a mulher da minha vida. Fui muito feliz com a minha esposa, nunca me vou esquecer dos momentos que compartilhei com ela.”.
(Nádia Gomes, Assistente Operacional, 41 anos)
Num dia muito atribulado, sob pressão para arranjar vagas que não existiam, entre trocas de camas e transferências de doentes e toda a burocracia existente, entrei num quarto para tratar de um doente que se encontrava em fase terminal. Este senhor tinha apenas 58 anos. Com ele, estavam dois familiares que vinham para lhe dizer um último adeus. Quando me aproximei, reparei que este doente, que era calmo, ficou inquieto com a abordagem dos seus familiares. Sem conseguir perceber porquê, tentei confortá-lo, mas sem sucesso. As visitas, ao presenciar tal situação, ficaram também elas próprias desamparadas, desoladas, ao tentar falar com ele sem obter uma reposta. Tentei confortá-las, fazendo com que se lembrassem dos melhores momentos com ele, o que os levou a contarem-me algumas histórias de vida. Já exausta do turno stressante e atarefado que estava a ter, não consegui esconder as emoções – graças ao EPI, consegui disfarçar uma lágrima que estava a conter. Saímos do quarto e esta família não conseguia esconder o sentimento de perda. Depois de me desinfetar, precisei de parar, respirar e interiorizar o que tinha acontecido. Tenho a certeza que este senhor agora ilumina a sua família que tanto sofreu com a sua partida.
(Sílvia Carvalho, Assistente Operacional, 28 anos)
Comunicar a morte de um familiar é sempre algo doloroso. Em tempos de pandemia essa dor assume um exponencial inimaginável. Se nos é difícil informar telefonicamente que o seu familiar faleceu, pior é ter de o fazer a quem está internado e debilitado. Recentemente, uma doente perdeu o seu cônjuge, igualmente infetado e internado com Covid, o companheiro de 50 anos. Soubemos da notícia através dos filhos emigrados. Impossibilitados de comunicar o sucedido à mãe presencialmente, pediram que se realizasse uma videochamada. Como se repara um momento destes? Deixei-a almoçar, dei-lhe um calmante. Pedi-lhe que se sentasse confortavelmente. Sentei-me ao seu lado, a auxiliar do outro lado. Estava feliz porque iria ver os filhos. Fiz a videochamada. Chorou de emoção assim que os viu. Depois de saber como estavam perguntou “E o pai?”. Do outro lado, um compasso, uns olhos congestionados, e uma resposta trémula “Olha, mãe, temos uma má notícia para te dar.”. Ela percebeu, chorou, gritou, agarrou-se a mim e à auxiliar. Do outro lado, o choro compulsivo e a tentativa de acalmar a mãe que pedia aos filhos que a viessem buscar e que a deixassem ver o amor da sua vida. As lágrimas corriam-me pela face, por detrás daquela máscara e daquela viseira. Como substituir o abraço de um filho naquele momento? Como fazer sentir o aconchego da família que não sou? Como ajudar a aceitar a partida sem poder sequer despedir-se? Como fazê-la sentir-se amada e acompanhada sem nunca ter feito parte do amor deles?
(Filipa Santos, Enfermeira, 32 anos)
Começávamos a ter os primeiros casos de infeção. Depois de semanas a treinar circuitos, vestir e despir EPIs. Ainda recordo quando nos ensinaram: vamos entrar em pandemia, a segurança dos profissionais de saúde é prioritária, nunca acorram a um doente suspeito sem a devida proteção. Confesso que, na altura, achei tudo um pouco “dramático”… E então aconteceu. Mais um turno de urgência: doente admitida na triagem por dispneia. Evolui rapidamente para paragem cardiorrespiratória e entra pela sala de reanimação. O 1º impulso foi iniciar imediatamente manobras de reanimação. Mas de repente, soaram campainhas…faltava o EPI. Não esqueço nunca mais a angústia: ver a doente inerte, enquanto toda a equipa se equipava num frenesim… e aqueles minutos pareceram horas. Lá entrámos finalmente e felizmente, conseguimos reanimar a sucesso, que soube mais tarde, vir a ter alta do hospital.
(Catarina Pereira, Médica, 48 anos)
“Maria” agravou a sua situação clínica em mais um turno complicado na área dedicada de internamento a Covid-19. Após observação médica opta-se pela transferência para uma Unidade Cuidados Intensivos (UCI). Como sempre fiz aconselho a realizar uma chamada telefónica avisando que será transferida e não poderá levar o telemóvel consigo (método disfarçado para uma possível despedida, última chamada, última recordação familiar). Após a chamada responde-me: “enfermeiro já pode guardar o meu telemóvel, independentemente de tudo diga ao meu marido que eu sou chata por gostar dele. Diga-lhe que não perdeu os óculos, eu escondi-os porque não lhe ficavam bem e gostava que ele comprasse outros novos. Diga-lhe que estão dentro da lata dos chás. Já não me importo que os use, a minha opinião tem hora marcada. Sempre o amei.” Faleceu 24h após na UCI.
(Carlos Carmo, Enfermeiro, 27 anos)
Estas histórias têm estado guardadas. Estamos todos saturados da pandemia, de números, de restrições. Queremos voltar ao velho normal. Estamos sedentos de dias de Sol, de esplanadas, de jardins, de praia. Cinemas, teatros, exposições. Restaurantes, Bares, Ginásios, Lojas. Queremos tudo, e tudo de uma vez, com a urgência de quem tem sede. Mas a realidade existe e obriga-nos a olhar para trás – há algo que sobressai: não queremos mais histórias tristes.