O tema ocupou parte dos trabalhos na Assembleia da República esta semana e foi mais uma vez afastado de cena. À interpelação de Bloco de Esquerda e PCP, que insistem na necessidade de levantar as patentes das vacinas contra a Covid-19, a ministra da Saúde, Marta Temido, argumentou que a medida não resolve o atual problema de escassez com que o mundo se debate.
“O processo de produção de vacinas está pulverizado por vários continentes”, afirmou a ministra durante uma audição na comissão eventual para o acompanhamento da aplicação das medidas de resposta à pandemia da doença Covid-19 e do processo de recuperação económica e social, acrescentando que “não seria por quebrar as patentes que resolveríamos o problema”. Segundo explicou, apesar de existirem vários países europeus a fabricarem as vacinas, um dos grandes entraves diz respeito “ao processo de produção de matérias-primas”; considerando que, neste âmbito, “há poucas alternativas”, já que a capacidade industrial está, atualmente, concentrada em “dois ou três sítios” no mundo. “Se pedirmos o levantamento da patente, depois mandamos fazer as vacinas onde? É que o problema persiste!”
Foi há duas semanas que Bloco de Esquerda entregou na Assembleia da República um projeto de resolução no sentido de recomendar ao Governo que defenda junto da União Europeia o levantamento das patentes das vacinas contra a Covid-19. Uma questão que não é nova, dado que foi a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) que, no início do mês, o voltou a defender publicamente.
Uma política “autodestrutiva”?
Num artigo de opinião publicado no diário britânico The Guardian, o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom Ghebreyesus, veio a público manifestar-se a favor da medida para permitir a sua produção em países pobres de forma a colmatar as lacunas sentidas em vários pontos do globo. “Estamos a viver um momento excepcional na História e devemos estar à altura do desafio”, sublinhou Ghebreyesus, recordando que “existem flexibilidades nas regulamentações comerciais para emergências” e que isso se deve aplicar no caso de “uma pandemia global que forçou muitas sociedades a fecharem, causando tantos danos”.
No mesmo artigo, o responsável argumenta que os fabricantes receberão sempre algum reembolso: “A renúncia temporária de patentes não significa que os inovadores ficam de fora. Como durante a crise do VIH ou numa guerra, as empresas receberão direitos pelos produtos que fabricam”.
O discurso aponta claramente o dedo às farmacêuticas e aos governos dos Estados Unidos da América, Reino Unido e Europa, que se opõem veementemente à proposta, com ou sem compensação, servindo-se do argumento da Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas de que cortar os retornos das empresas é um desincentivo à inovação. E Tedros Adhanom Ghebreyesus insiste que “quer se trate de partilha de doses, transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário, como incentiva a própria iniciativa Covid-19 Technology Access Pool [C-TAP] da OMS, ou renunciando aos direitos de propriedade intelectual, precisamos ultrapassar todos obstáculos”.
Como frisou ainda o responsável da OMS, das 225 milhões de doses de vacinas administradas até agora, “a grande maioria foi nuns quantos países ricos e produtores de vacinas, enquanto os países de baixo e médio rendimento observam e esperam” – rematando que esta abordagem pode servir “interesse políticos de curto prazo”, mas é “autodestrutiva” e levará a uma “recuperação prolongada”. Mais: “Qualquer oportunidade de derrotar este vírus deve ser agarrada com as duas mãos.”
Tal e qual há vinte anos…?
Contas feitas, avança a BBC, no momento atual, são perto de 75% as doses das vacinas contra a Covid-19 aplicadas em dez países mais desenvolvidos, enquanto em outros 130 países, onde vivem mais de 2,5 mil milhões de pessoas, praticamente nenhuma vacina foi recebida.
Tudo a fazer lembrar o que aconteceu em 1998, quando os casos de VIH se multiplicavam avassaladoramente em África e vários governos do continente pediam a retirada de patentes de empresas farmacêuticas para obter os medicamentos que poderiam evitar a sida e as mortes devido à síndrome. Disponíveis nos países desenvolvidos desde 1996, os medicamentos antirretrovirais mais caros demoraram 10 anos a chegar aos países em desenvolvimento a um preço acessível para todos. Em 2007, durante o governo de Lula, o Brasil acabou por declarar que a patente do Efivirenz, utilizado para o tratamento da doença, era de interesse público e que iria impor o seu licenciamento – alegando que o valor cobrado pelo laboratório americano Merck Sharp & Dohme era maior do que o praticado em outros países.
Agora, são cada vez mais os países mais pobres a pedir à Organização Mundial do Comércio (o órgão que rege os acordos de direitos de propriedade intelectual ligados ao comércio) que estabeleça uma suspensão desses direitos para que se possa produzir de forma acessível vacinas contra o SARS-CoV-2.
Pedido sem resposta
A proposta apresentada já oficialmente pela África do Sul e Índia, e apoiada por dezenas de países em desenvolvimento, não foi bem acolhida por países como o Reino Unido, Estados Unidos e boa parte dos outros países europeus, com o argumento de que “essas patentes seriam necessárias para incentivar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos”.
O procedimento é conhecido: as patentes protegem a propriedade intelectual de um produto para que não possa ser copiado – e na indústria farmacêutica, quando um medicamento é descoberto e desenvolvido, isso serve igualmente para que mais ninguém o possa fabricar sem a sua autorização. Isso permite-lhes, depois, controlar a produção e o preço, o que, por sua vez, pode levar a valores de custo mais altos e medicamentos inacessíveis aos mais pobres.
A proposta agora defendida pela OMS, conhecida pela sigla C-TAP (Acesso Conjunto a Tecnologias contra a Covid-19, em tradução livre), é um mecanismo global criado especificamente para, voluntariamente, se partilhar conhecimento, dados e propriedade intelectual de tecnologias em saúde para lutar contra a doença. Foi criado pela OMS em junho de 2020 e tem cerca de 40 países entre os seus signatários. Mas como referiu já também Raquel González, chefe de relações externas da organização Médicos Sem Fronteiras, citada pela BBC, nenhuma tecnologia foi partilhada até agora. “A iniciativa permitiria um aumento da produção, principalmente em países em desenvolvimento, mas não teve resposta da indústria farmacêutica”.
O argumento dos países ricos
Para os países ricos, a questão é outra – e insistem que a suspensão de patentes “obstruirá a inovação científica” por “desencorajar investidores privados” de se envolverem nesse segmento. “A propriedade intelectual é uma parte fundamental do nosso setor”, disse Pascal Soriot, CEO da AstraZeneca, logo em maio, no momento em que se discutia a criação da C-TAP. “Se não se proteger a propriedade intelectual, não há incentivo à inovação”.
Um argumento que recebeu de imediato as mais diversas críticas, já que as farmacêuticas têm recebido dinheiro de recursos públicos para o desenvolvimento das tão cobiçadas vacinas – num relatório publicado na The Lancet em fevereiro ficava claro que os produtores de vacinas receberam cerca de 8,5 mil milhões de euros de fundos públicos ou sem fins lucrativos para financiar as suas vacinas. E o número, insiste-se ainda no documento, será apenas parte do montante, já que muitos dos dados sobre esses projetos não são públicos.
Para muitos, a solução continua assente em mais acordos bilaterais – como aqueles que a Novavax e a AstraZeneca-Oxford fizeram com o Instituto Serum da Índia e a Johnson & Johnson com a Aspen Pharmacare na África do Sul – de forma a estes produzirem as suas vacinas. Ainda assim, Rory Horner, responsável do Instituto de Desenvolvimento Global da Universidade de Manchester, que também não defende a suspensão das patentes, põe o dedo numa outra ferida: “O facto de as vacinas serem distribuídas de forma tão desigual não é resultado da capacidade de fabrico, mas sim do facto de alguns países terem comprado mais do que as suas necessidades”. Outro especialista no assunto, Gavin Yamey, da Universidade Duke, citado também pela BBC, concorda: “Esta é uma pandemia global e precisamos de uma resposta global que inclua a vacinação em todo o planeta”, pelo que defende que é preciso muito mais do que o que há agora em cima da mesa para resolver este “apartheid da vacina”.