Muitas das pessoas que tiveram Covid-19 questionam-se agora quando conseguirão e poderão retomar a atividade física e a prática de exercício. Como aponta a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Cristina Gavina, o cansaço é uma das queixas mais frequentes depois da Covid, “que persiste durante o tempo, provocando muito condicionamento físico”. Desta forma, nem sempre o regresso ao exercício físico é ditado apenas pela vontade do doente, podendo estar relacionado com a capacidade física do corpo conseguir ou não atingir determinados níveis de esforço.
Um estudo, publicado no British Medical Journal (BMJ) por um grupo de especialistas das áreas da medicina do desporto, reabilitação e cuidados de saúde primária, analisou quais os doentes que devem recorrer a exames e consultas médicas antes de praticar exercício e quais os que podem retomar mais rapidamente a atividade física.
Para este segundo grupo, onde se encontram os doentes sintomáticos, com um longo período de inatividade, mas que não apresentam sinais de Covid-19 pós-aguda prolongada com sequelas pulmonares, cardíacas ou psicológicas, os autores propõem ainda um modelo de regresso à prática de exercício físico, baseado na auto-avaliação de resistência ao esforço, com ajuda da chamada Escala de Borg.
Segundo os autores do estudo, a presença de sequelas pulmonares, cardíacas e psicológicas são determinantes na forma como se retoma a atividade física. Os doentes que eram saudáveis antes da infeção e não apresentam sinais de sequelas podem retomar a atividade, sete dias após o desaparecimento de sintomas, enquanto que as pessoas que manifestam sintomas cardíacos, psicológicos e pulmonares prolongados, para lá da infeção, devem ser submetidas a controlos antes de voltar a uma vida mais ativa. A opinião é também partilhada pelos três especialistas que falaram com a VISÃO.
“É muito importante que estas pessoas procurem um médico, seja o de família ou o assistente, para perceber se há outro motivo de preocupação, antes de voltarem a praticar exercício”, afirma Cristina Gavina. O pneumologista e dirigente da Fundação Portuguesa do Pulmão, Luís Rocha, acrescenta que “é precisa alguma observação, relativamente à intolerância ao esforço, neste retomar de atividade”, enquanto que o cardiologista de intervenção Rui Teles considera que, essencialmente, existem três grandes perfis de doentes.
Em qual dos três perfis se insere?
- Sem sintomas prolongados
No primeiro grupo encontram-se as pessoas que não tinham nenhuma patologia cardiovascular, nem antes, nem durante, nem depois do período de infeção por SARS-CoV-2. “Estes doentes não têm nenhuma limitação em retomar a atividade física, a não ser o bom senso”, refere Rui Teles, acrescentando que podem fazer uma revisão laboratorial para medir a tensão arterial, confirmar que os fatores de risco, como a diabetes e o colesterol, não estão presentes e, eventualmente, realizar uma prova de esforço para a avaliação da capacidade funcional. “Isto é sempre aconselhável, como forma de simular o que será o exercício e dar confiança aos pacientes para retomarem a atividade física”, afirma o médico.
- Sintomas de cansaço muito arrastados no tempo
No segundo grupo estão as pessoas que não tinham nenhuma patologia cardiovascular, mas, no decorrer da infeção, tiveram complicações deste foro. “Essas precisam de ser avaliadas com algum cuidado”, assegura Rui Teles. Por vezes, a existência de sequelas pode manifestar-se através de queixas de cansaço ao longo de muito tempo, aperto no peito ou palpitações, lê-se no estudo do BMJ.
Sequelas como a miocardite (inflamação do miocárdio pelo vírus) ou problemas tromboembólicos, se não forem identificados através de exames, antes de retomar o exercício físico, podem conduzir ao desenvolvimento de “embolias pulmonares, lesões cardíacas e até mortes súbitas”, afirma Luís Rocha, fazendo eco da tese defendida pelos autores do estudo. Cristina Gavina afirma mesmo que, “na existência de miocardite, há uma contra-indicação de fazer exercício físico de alta intensidade durante seis meses”.
Apesar de, tanto Cristina Gavina como Rui Teles, defenderem que a miocardite é uma sequela muito rara, o mesmo não sucede com as complicações tromboembólicas. “Surgem mesmo em pessoas com 30 ou 40 anos que faziam desporto e desenvolveram trombofleibites, devido à formação de coágulos, por exemplo, nas pernas”, afirma Rui Teles. Estes doentes beneficiam de uma avaliação “para perceberem se estão numa fase com coagulação excessiva e se têm de tomar anticoagulantes”.
- Doenças pulmonares ou cardíacas crónicas prévias à Covid
Por fim, o terceiro grupo de doentes consiste nas pessoas que apanharam Covid e já apresentavam doenças crónicas respiratórias ou cardíacas anteriores à infeção. Rui Teles e Luís Rocha não têm dúvidas que estes doentes saem da doença muito pior do que entraram e que é importante procurarem, numa primeira fase, uma opinião médica especializada.
Cardiologista e pneumologista concordam que a pandemia aumentou o sedentarismo e, consequentemente, o risco de estes doentes aumentarem de peso, terem a tensão arterial mais descontrolada e o colesterol mais alto. Nestes casos, Luis Rocha considera que “o grande objetivo é recuperar a tolerância ao esforço, o aumento da funcionalidade motora, a melhoria da qualidade de vida e a auto-eficácia, seguindo um programa multidisplinar com a possibilidade de haver acesso a telefisioterapia”.
Rui Teles defende que tem de ser feita uma avaliação “através de análises com marcadores de sobrecarga cardíaca e uma prova de esforço cardiorespiratória para perceber se o cansaço provém da incapacidade respiratória, devido a sequelas como fibroses que dificultam as trocas gasosas, e/ou da incapacidade cardiovascular”.
Aprender a auto-avaliar a resistência ao esforço
O estudo publicado no BMJ propõem ainda um modelo divido em cinco fases, para quem está pronto a voltar a praticar exercício físico, após a Covid-19. De forma a perceber quando se deve passar de uma fase para a seguinte, os autores propõem o recurso à Escala de Borg, que mede qual é a perceção de cansaço que as pessoas têm com o exercício que fazem. “Quando não há contra-indicaçao para a prática de exercício, após a Covid-19, este tem de ser adequado à capacidade de esforço da pessoa no momento, algo que a escala de Borg pode ajudar a perceber”, explica Cristina Gavina.
A vice presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia refere ainda que a capacidade de cada doente dependerá do seu condicionamento físico. “Quanto mais descondicionados estivermos, e esta doença provoca grande descondicionamento fisico, mais difícil será o exercício e a perceção de cansaço passará a ser mais alta para níveis de atividade mais baixos”.
Luis Rocha, à semelhança do que defendem os autores do aritgo publicado no BMJ, afirma que sete a 14 dias após a fase aguda da doença, recomenda-se que as pessoas, que estiveram doentes em casa, retomem alguma atividade física. “Não devem começar nunca de forma extenuante, mas sim gradual”. O dirigente da Fundação Portuguesa do Pulmão aconselha caminhadas diárias de 30 minutos, até ao limite da capacidade de cada pessoa, “sem forçar e estando alerta aos sintomas, auto-monotorizando-se”.
Cristina Gavina acrescenta que a frequência cardíaca é o barómetro para aquilo que fazemos, devendo ser evitado o exercício que leve a frequências cardíacas muito altas. “Normalmente, a zona de treino calcula-se como 80% de 220 menos a nossa idade [ou seja, uma pessoa de 30 anos terá a sua zona de treino a 80% de 190 =152]. Se as pessoas fizerem dentro dessa amplitude, estão a fazer exercício aeróbico, protegidas de excessos que podem condicionar sobrecarga cardíaca”.
Luís Rocha refere ainda que existem programas de reabilitação, especificamente respiratória, que aumentam os volumes pulmonares, a expansibilidade torácica, o fortalecimento muscular e ajudam na expulsão de secreções respiratórias. Mas o exercício inspiratório e expiratório, que ajuda no reforço muscular e pode ser praticado com um expirómetro, à venda nas farmácias comuns, nem sempre é suficiente e, caso existam sequelas como fibrose pulmonar, “é preciso um programa de reabilitação mais pormenorizado e a longo prazo”, alerta o pneumologista.
Quanto ao benefício que o exercício pode ter na recuperação da própria doença, a longo prazo, Rui Teles não arrisca e defende: “ainda sabemos pouco sobre as sequelas a médio e longo prazo desta doença, para afirmar o que vai acontecer no futuro”.