Num dia, os sintomas assemelham-se a uma má constipação, no seguinte, os doentes já não conseguem sair da cama. É uma guerra para comer e para tomar os medicamentos – até que, a dado momento, muitos perdem por completo a noção do tempo. Sondra Crosby, médica no Boston Medical Center, tratou das primeiras pessoas infetadas com Covid-19 naquela região dos EUA e por isso reconheceu de imediato os sintomas quando ela própria adoeceu. Durante cinco dias, sentiu-se numa névoa confusa e era incapaz de se lembrar das coisas mais simples, desde ligar o telefone a dizer qual era a sua morada. Depois, começou mesmo a alucinar, vendo lagartos a trepar pela parede e a sentir um odor “repugnante” a répteis . Só muito mais tarde, percebeu que tinha tido delírios – o termo médico para uma desorientação repentina e severa.
Não foi de todo caso único. Os médicos que tratam pessoas hospitalizadas com Covid-19 garantem que um grande número experimenta situações como esta e que a condição afeta sobretudo os mais velhos. Publicado em agosto, um estudo feito em França concluía que 65 por cento das pessoas gravemente doentes depois de infetadas com o SARS CoV-2 tinham vivido episódios de delírio. Pouco tempo depois, dados apresentados num congresso médico da especialidade, no Tennessee, relatavam que os casos se repetiram em cerca de 55 por cento dos doentes em todo o mundo. Os valores deixaram a comunidade médica em alerta porque são muito mais elevados do que os normalmente verificados em pessoas gravemente doentes: por regra, não ultrapassam os 33 por cento.
Stress e outras vulnerabilidades
Estudos feitos na última década já levantaram um bocadinho o véu sobre esta doença. Por exemplo, investigações a longo prazo revelaram mesmo que um único episódio de delírio pode aumentar o risco de desenvolvimento de demência anos mais tarde. Mas as ligações entre as duas condições são difíceis de deslindar porque obrigam a seguir doentes durante anos para se obterem resultados – daí que os surtos verificados agora se apresentem como uma oportunidade única para a ciência, com uma série de investigadores de todo o mundo a lançar estudos vários sobre os impactos neuro cognitivos da Covid-19. “Diria mesmo que o interesse crescente pelos mecanismos da demência será dos poucos impactos positivos da Covid-19″, anui Sharon Inouye, geriatra do Marcus Institute for Aging and Harvard Medical School em Boston, que estuda a doença há mais de 30 anos.
Citada pela Nature, a especialista recorda que, quando começou a trabalhar, a maioria das pessoas – pessoal médico inclusive – simplesmente encolhia os ombros quando se deparava com casos daqueles. “Percebi logo que seria uma batalha difícil durante toda a minha carreira”.
Mas não baixou os braços. A sua investigação inicial demonstrou logo que o delírio se desenvolve quando convergem uma série de fatores de stress. Depois, outras vulnerabilidades pré-existentes – como quem diz, doenças crónicas – podem agravar o quadro clínico e causar fenómenos súbitos. “Sabemos que o delírio ocorre facilmente quando o cérebro é incapaz de compensar uma situação stressante”, explica também à Nature Tino Emanuele Poloni, neurologista da Fundação Golgi Cenci, em Itália, especificando que há, por norma, uma inflamação e um desequilíbrio nos neurotransmissores – como a dopamina ( importante nos movimentos do corpo e envolvida ainda nos mecanismos de motivação e recompensa) ou a acetilcolina ( que desempenha um papel nos movimentos musculares, bem como na memória e na aprendizagem).
Três hipóteses em cima da mesa
Também é verdade que a crescente experiência clínica de Inouye, a médica de Boston, lhe ensinou que, independentemente do que precipita o delírio, cerca de 70% das pessoas com sintomas recuperam por completo. O problema são os outros 30 por cento, que acabam por viver uma espiral descendente durante meses, até a sua cognição ficar claramente comprometida. De acordo com um outro estudo da Universidade de Vanderbilt, quanto mais tempo uma pessoa delirar maior é o seu risco de subsequente défice cognitivo. Mas, já se sabe, o contrário também é verdade: os sintomas de demência, aumentam as hipóteses de desenvolvimento de delírios. Os cientistas só não concordam se a ligação é forte entre aqueles que teriam, de qualquer forma, desenvolvido demência ou se um episódio de delírio aumenta o risco de declínio cognitivo mesmo em indivíduos sem predisposição a tal.
Agora, há três hipóteses de explicação em cima da mesa. Uma sustenta que a acumulação de lixo celular tóxico no cérebro poderia causar delírios a curto prazo e levar a danos a longo prazo. Sabemos que o corpo normalmente limpa o que já não precisa, através da corrente sanguínea e do sistema linfático. Ora, a suspeita é que, havendo danos nos vasos, depois de um episódio agudo, os danos podem persistir e levar à demência. Outra hipótese de investigação aponta o dedo à inflamação, que tantas vezes perturba as pessoas hospitalizadas por infeções, dificuldades respiratórias e doenças cardiovasculares. Quando é persistente, a inflamação pode desencadear um episódio agudo de delírio, e causar a deterioração dos neurónios e células associadas, levando a danos cognitivos. A terceira ideia, essa, é o que se considera uma hipótese-limite, que é a de saber se alguém com demência, mesmo na fase inicial, tem menos ligações entre os neurónios – uma perda que retira as reservas neurológicas essenciais para ajudar o doente a lidar com a inflamação, empurrando-o para um quadro de delírio e, depois, para uma demência mais avançada.
Para tentar encontrar estas e outras respostas, está já previsto um estudo internacional para medir a prevalência do delírio em pessoas com COVID-19 nas Unidades de Cuidados Intensivos, bem como identificar fatores para prever resultados a longo prazo. Na Alemanha e no Reino Unido, uma outra investigação tenta avaliar como o delírio afeta a função cerebral de quem esteve infetado com Covid-19 meses depois. Há ainda quem procure uma alternativa aos sedativos normalmente usados, como por exemplo as benzodiazepinas, conhecidos por aumentarem esses episódios. Com tanto ainda por descobrir, Natalie Tronson, neuropsicóloga da Universidade de Michigan, nos EUA, é contundente: “tudo isto pode parecer um pouco assustador, mas o que esperamos é que esclareça ainda qual o risco acrescido consoante a genética e o estilo de vida de cada um”.