Rui Pedro Galão, especialista em doenças infeciosas, é um dos autores do estudo que sugere que imunidade através de anticorpos pode desaparecer em poucos meses. O estudo, realizado por investigadores da universidade britânica King’s College London, analisou a resposta imunológica de cerca de 90 pessoas infetadas e concluiu que muitas destas perdiam os anticorpos pouco tempo depois. À VISÃO, Rui Galão explica o desenvolvimento deste estudo e as suas implicações no futuro.
Em que consiste esta investigação?

Foto: D.R.
Uma das linhas de defesa que o nosso organismo tem para combater infeções virais é a produção de anticorpos. No caso da Covid-19 não estava ainda bem definida a dinâmica desta resposta imunitária. O que descobrimos neste estudo contribui para fazer, de certa forma, uma cronologia da vida destes anticorpos e ajudar a responder a perguntas como: quando, no decurso da infeção, começam a ser produzidos os anticorpos? São estes anticorpos capazes de neutralizar o vírus? Se sim, ficam para sempre ou desaparecem ao fim de alguns meses? A resposta a estas perguntas é igual para toda a gente ou há variações de acordo com a severidade da doença?
Para este estudo acompanhámos um grupo de pessoas que testaram positivo para o vírus SARS-CoV-2 e que vieram a manifestar a doença a diferentes níveis, desde indivíduos assintomáticos a pacientes que, infelizmente, vieram a falecer. Durante meses recolhemos amostras de sangue para determinar a quantidade de anticorpos circulantes e avaliar a capacidade destes anticorpos de conferirem imunidade a uma nova infeção.
O que descobrimos foi que pessoas que tenham recuperado da Covid-19 podem perder a sua imunidade ao fim de alguns meses, particularmente se tiveram apenas um manifestação leve da doença. Ainda que a maioria dos infetados seja capaz de produzir uma quantidade razoável de anticorpos no pico da infeção, este nível começa rapidamente a descer. Por norma, quanto mais alta for a quantidade de anticorpos produzidos como resposta a este vírus (tipicamente em doentes com manifestações mais severas), mais tempo os anticorpos ficam no sangue. Nos casos mais leves, apenas uma pequena proporção de indivíduos retém a mesma potência cerca de 3 meses mais tarde. Em alguns casos é mesmo impossível detetar os anticorpos nesta altura.
Como surgiu a oportunidade de realizar este estudo? Qual o seu papel nele?
Este estudo foi o resultado de uma colaboração muito próxima entre King’s College London (KCL) e o St Thomas Hospital, que é um dos hospitais de referência para doenças respiratórias no Reino Unido. Durante o pico da epidemia em Londres, eu co-liderei uma equipa do KCL que foi secundada para o St Thomas com o propósito de ajudar os nossos colegas clínicos a desenvolver, validar e implementar diferentes métodos de diagnóstico e, ao mesmo tempo, criar um banco de amostras serológicas representativas dos pacientes que foram admitidos no hospital. Este banco tem agora milhares de amostras, o que nos permitiu identificar uma série de indivíduos que foram acompanhados durante meses, e assim possibilitar-nos a oportunidade de caracterizar a sua resposta imune de maneira tão detalhada.
Este estudo veio comprovar que os anticorpos podem desaparecer depois de alguns meses. O que isto significa para o desenvolvimento de uma vacina?
Significa principalmente duas coisas. Primeiro que devemos identificar e selecionar vacinas que promovam uma forte resposta imune, que leve à produção de uma considerável quantidade de anticorpos capazes de neutralizar o vírus. Isto permitirá manter a imunidade a uma nova infeção durante um período de tempo mais largo. Em segundo lugar, parece agora muito provável que as vacinas que venham a ser produzidas não terão a capacidade de conferir imunidade para o resto da vida. Isto quer dizer que será necessário tomar múltiplas doses da vacina com uma periodicidade ainda por determinar, mas talvez anual, de forma similar à vacina da gripe.
Neste caso, uma amostra com cerca de 90 pessoas é suficiente para comprovar a veracidade deste estudo?
Como deve calcular, a nossa opinião é que este número de indivíduos e amostras recolhidas são suficientes para suportar as conclusões a que chegamos neste estudo. Obviamente que, como qualquer outro estudo, este poderia ser melhorado com a análise de um maior número de pessoas. No entanto, em algum momento temos de decidir se estamos satisfeitos e confiantes na quantidade e qualidade das nossas observações. Para mais, neste caso específico, estando a nossa equipa numa posição privilegiada para fazer este estudo, era do interesse não só da comunidade científica mas também do publico em geral que este estudo estivesse disponível para escrutínio o quanto antes.
O estudo nega completamente a imunidade de grupo ou apenas a considera uma meta complicada de atingir?
Este estudo vem juntar-se a vários outros que apresentam fortes evidências sugerindo que será extremamente improvável que venha a ser possível atingir imunidade de grupo. A imunidade é muito transigente na larga faixa de indivíduos que não chegam a desenvolver as manifestações mais graves da doença, e isso é incompatível com o conceito de imunidade de grupo relativamente a este vírus.
O que este estudo significa para as pessoas que testaram positivo no teste dos anticorpos? Que cuidados devem continuar a ter?
Um teste positivo significa que, no momento em que fez o teste, um dado indivíduo tem anticorpos contra o vírus – isto não quer necessariamente dizer que esta pessoa esteja imune porque existem alguns anticorpos não têm a capacidade de neutralizar o vírus – mas a evidência é que esse é normalmente o caso. O que o nosso estudo vem demonstrar é que estes anticorpos vão desaparecer com o passar do tempo, e uma pessoa que tenha testado positivo num dia, é provável que venha a testar negativo ao fim de alguns meses. Sem anticorpos, esta pessoa está suscetível a uma nova infeção.
Isto não quer dizer que volte tudo ao principio em termos imunitários. Algumas células têm como função manter a memória da primeira infeção, e ao “verem” o vírus novamente vão promover uma rápida produção de novos anticorpos. Em principio, isto irá diminuir a possibilidade de desenvolver as formas mais graves da doença. Dito isto, devo realçar que não podemos prever o efeito a longo prazo de repetidas infeções com o vírus, mas é possível que venham a provocar sequelas permanentes a nível pulmonar.
Ainda que se venha a confirmar que o nosso organismo tenha uma boa probabilidade de responder a uma segunda infeção com este vírus, isto não irá evitar a sua transmissão a outros durante o período de tempo em que organismo monta a resposta imune. Assim sendo, eu sou da opinião que, mesmo que tenham testado positivo para anticorpos, estas pessoas devem manter os mesmos cuidados que todos os outros que nunca foram expostos ao vírus. Quanto mais não seja porque não sabem quando deixarão de estar imunes. É importante que se protejam a si mesmos e assim protejam todos os que os rodeiam.
Acredita que o desenvolvimento de uma vacina será suficiente para conseguirmos conviver com a Covid-19?
Parece agora bastante evidente que a Covid-19 vai passar a fazer parte das nossas vidas, mas acredito que quando uma vacina estiver disponível vamos ser capazes de regressar a um estilo de vida similar ao que tínhamos antes. Talvez não venha a ser exatamente igual, é possível que tenhamos de manter alguns dos cuidados especialmente com pessoas em grupos de risco, e os sistemas de saúde terão de se adaptar a uma nova realidade, mas certamente vamos conseguir conviver com a Covid-19.
Qual é o próximo passo da sua equipa e desta investigação?
Um dos próximos passos é determinar qual é a quantidade de anticorpos neutralizantes suficientes para conferir proteção a uma nova infeção. Isto é particularmente importante para melhor interpretar e avaliar a eficácia das vacinas que estão a ser desenvolvidas e testadas. Com a chegada do Inverno, chegam também as infeções com outros coronavírus sazonais que normalmente apenas causam constipações e sintomas gripais genéricos. É importante determinar se anticorpos contra estes vírus, que são da mesma família do SARS-CoV-2, vão ter algum impacto (positivo ou negativo) na forma a Covid-19 se manifesta. Esse é outro dos projetos para o qual nos estamos agora a preparar.