“Fique em casa.” “Fique em casa.” É impossível ficar imune ao alerta que soa da carrinha dos bombeiros estacionada junto à zona de passeio. A meta, já se sabe, é zelar pela saúde pública em estado de emergência. As pessoas aceleram o passo, compreendem a razão pela qual estão a ser “mandadas” para casa. Grandes males exigem medidas à altura e não dá para facilitar. Acatar, cumprir, isto há-de terminar. E agora, a pergunta que muitos farão a si mesmos: “Como posso ficar em casa se quando lá entro me sinto à beira de entrar em colapso, ou ter um burnout familiar?”
“A vida é difícil”, começa por dizer o psiquiatra americano Scott Peck num dos seus livros. “É complicado”, assinalam os utilizadores de aplicações de encontros, no estado atual do seu perfil. Na fase de mitigação do novo coronavírus, é caso para dizer: “É enlouquecedor.” Por exemplo, achar que “para pior já basta assim” e, a cada novo bloco de notícias, dar-se conta de que, afinal, pode sempre portas, seja por estar sozinho sem lá ter os seus ou, não menos assustador, estar 24/7 com eles e sentir-se um entre “companheiros de cela”.
Para não ‘crashar’ nem entrar em desespero quando tudo se afigura incerto, crítico e propício a alimentar angústias e discussões virulentas e vãs, há que tentar “o caminho menos percorrido” (título do livro de Scott Peck), ou seja, criar soluções à medida para manter a calma e uma atmosfera de normalidade. Conheça algumas delas.
- Cumpra rotinas e rituais
Levantar-se a horas certas, tomar banho, vestir-se, comer, meditar, trabalhar (ou teletrabalhar), interagir com as crianças, lavar a loiça e partilhar tarefas domésticas (as crianças gostam de ser incluídas, mesmo que possam sinalizar o contrário) ajuda todos a saber a quantas andam até à hora de ir para a cama. Os rituais ao serão e na hora de adormecer têm uma razão de existir: atuam como âncoras e devolvem um sentimento de segurança e ordem. Cultivá-los é bom, em alturas como a que estamos a viver, melhor ainda, adaptando-os ao tempo e condições disponíveis: ouvir o podcast, ver a série favorita na televisão ou em streaming, trocar mensagens ou pequenos telefonemas, ler algumas páginas de um livro, contar uma história, tomar um chá, fazer uma oração ou desfrutar de um mantra, o limite é a sua imaginação e preferências. Por mais desafiador que tenha sido o dia, guarde algum tempo para as trocas de mimos com a pessoa que adormece e acorda ao seu lado.
- Mantenha o contacto, mesmo à distância
O isolamento social tem um efeito silencioso e perturbador. Um das recomendações da diretora executiva da Unicef, Henrietta H Fore, passa por pequenos ajustes de conduta para minimizar essa sensação: “Faça videochamadas a familiares, amigos e colegas. “Expresse como se sente e pergunte o mesmo aos outros.” Escolher fazê-lo tem um efeito tranquilizante e reduz a barreira invisível gerada pela sensação de estar só. Em situações excepcionais, medidas excepcionais: chorar ou mostrar vulnerabilidade é libertador e regula as emoções e, contrariamente ao que se pensa, não tem nada a ver com fraqueza nem deve ser motivo de vergonha. Pedir ajuda menos ainda, especialmente em situações de crise e de catástrofe, seja a pessoas próximas ou a profissionais de saúde mental, que disponibilizam apoio psicológico à distância e alguns de forma gratuita.
- Defina limites e clarifique expetativas
Ficar em casa não é sinónimo de estar disponível a qualquer hora para pais, filhos, colegas de trabalho, amigos ou parceiros. Descubra a dose certa de atenção a dedicar a cada um e faça-lhes chegar sinais amarelos ou vermelhos se a interferência não for oportuna. Não estamos de férias: partilhar território por tempo indeterminado e evitar cenários apocalípticos em casa pode implicar definir horas e espaços que funcionem temporariamente como “zonas de abrigo”, devidamente assinaladas se for preciso, com uma nota do tipo “não incomodar”. No começo estranha-se, depois entranha-se (a questão dos limites adaptados à realidade do “fechados em casa”). Esperar que as coisas funcionem todas de feição, sem falhas, sem flutuações no rendimento nem alterações no comportamento é uma crença irrealista. Não vai ser como gostariam. As operações de desinfeção continuas, as quebras de concentração, a dispersão, as reações bruscas ou atípicas vão acontecer a todos. Vão sentir na pele o esforço de aprender a lidar com situações adversas sem manual de instruções. No final do dia, um lema budista pode ajudar: “Fiz o que pude.” Melhor ainda, “fizémos”.
- Dieta informativa e nas redes sociais
Navegar na internet, ver televisão, ouvir rádio e trocar impressões com terceiros sem ouvir sobre a COVID-19 constitui um desafio que pode ser superior ao do “bucket challenge” (ainda se lembra disto?). Porquê? Por mais tentadoras que sejam, podem revelar-se indigestas: das teorias da conspiração às especulações sobre o melhor remédio para se proteger, passando pelas teorias da negação (“é só uma gripezinha”) e as que induzem o pânico (“é o fim do mundo”), filtre e rejeite “fastfood” informativo. Limite o tempo de permanência online, mesmo que seja só para não perder horas de sono. Reduza interações que considere excessivas ou tóxicas nas redes sociais. Opte por fontes de informação credíveis e pense por si, sem se deixar enredar em debates estéreis. A exemplaridade conta: de nada adianta partilhar videos e mensagens sobre cuidados a ter para se proteger a si e aos outros se não os aplicar também.
- Evite discussões
Estar confinado sem o desejar por longos períodos de tempo aumenta o risco de ansiedade, depressão e abuso de substâncias. Bastam alguns dias fechado com alguém para uma conversa inócua se converter numa via para escoar tensão acumulada. Mostram-no estudos realizados com pessoas que trabalham em missões, isoladas do mundo. Que o diga o cosmonauta soviético Valentine Lebedev: após quase meio ano a bordo da estação espacial Mir, admitiu aos media que 30% do seu tempo no espaço foi gasto a gerir conflitos. Quando os dias se sucedem sem saber como pagar as contas tendo o negócio parado, tendo ficado sem emprego ou a cuidar de familiares infetados, é altamente provável que salte a tampa a alguém e isso afete todos. Comportamento gera comportamento, revelam os estudos de psicologia social: entrar em escalada só vai agudizar uma situação de fragilidade. Afastar-se do outro antes que se atinja a gota de água durante um quarto de hora, pelo menos, é a chave para não agir a quente e arrepender-se depois. Em caso de conflito, adoptar o lema “cada macaco no seu galho” pode funcionar até a cabeça esfriar.
- Combata o tédio aprendendo com ele
Negar ou lutar contra o desconforto é uma ilusão que sai cara. Deixar de ir à discoteca, ao bar, ao ginásio, ao cabeleireiro, à manicure, a atividades ao ar livre com grupos de amigos, a jogos no casino, restaurantes e espetáculos ou escapadinhas de fim de semana é dose. Porém, é também algo a que pode sobreviver, havendo abertura mental para se permitir fazer algo diferente. No início pode ser não fazer mesmo nada e aceitar os sentimentos de privação. Respeite os “tempos mortos”: em algum momento, a febre de interagir e partilhar – e de mostrar-se incansável na adesão a iniciativas virtuais – vai baixar. Estar bem com esse estado de vazio, ausência e inquietude, faz parte. Se, no silêncio que acabará por se fazer sentir dentro de si, surgir o impulso de fazer algo novo – desenhar, fazer playlist com músicas que reflitam o seu estado de espírito, dançar na sala, só ou com companhia – crie espaço para isso no seu dia. Pode surpreender-se com a rapidez com que deixa de sentir a chamada síndrome de abstinência e descobrir talentos que desconhecia ter e, até, partilhá-los, à distância de um clique.
- Testar, testar, testar
O método de tentativa e erro e a flexibilidade aplicam-se à vida em geral e à dinâmica familiar e pessoal, em particular: se hoje limpar a casa toda, amanhã pode aligeirar nesse campo (ou delegar se for o caso). Se o que fez para resolver um problema correu mal hoje, pode experimentar fazer diferente amanhã (e admitir isso aos outros humanos que passam pelo mesmo). Fazer o exercício físico possível sem a presença dos colegas e do professor do ginásio, com moderação e cuidados acrescidos (ter lesões nesta fase está fora de questão) é um teste que merece ser feito: arranjar alguns minutos para libertar toxinas e produzir endorfinas, traz bem-estar e potencia o “insight” (boas ideias surgem a “meditar” em movimento, mesmo que seja dentro de casa). E, mesmo que se tenha convencido de que não tem jeito para certas coisas, porque não inspecionar áreas da residência que acumulam cotão e tesouros? Ou desfazer-se de tralha e limpar dados que ocupam espaço no telefone ou fazer um vision board ou bricolage para inaugurar o horário de verão com a família? Envolver-se em projetos solidários que acrescentam valor aos seus dias e podem mudar vidas é igualmente uma experiência “cá dentro”.
- Comunhão e bom senso
Todos diferentes, todos iguais: introvertidos, extrovertidos, líderes, mediadores… as diferenças que nos separam, de personalidade e outras, não impedem que sejamos gregários, cada um à sua maneira. Conviver sem atritos no confinamento – que trará mais dificuldades a uns que a outros – pode passar por organizar alguns serões temáticos, com o acordo e participação de todos: uma noite (ou parte do dia) para a gastronomia, outra para os jogos de tabuleiro ou leitura de histórias, outra livre. Marque encontro com amigos (zoom, skype, facetime, whatsapp, house party) para conversar, dizer disparates e divertir-se. Deixe cair as “bocas” dos outros que antes lhe faziam mossa e expresse carinho ou afeto a alguém, apesar de tudo o que vos separa. Aprecie o que tem e, no final de cada dia, cultive o hábito de enumerar uma ou mais coisas pelas quais se considera grato(a). É em fases de condicionamento que se toma consciência do quanto se pode aprender com os outros e experimentar o amor de formas inéditas.