Sim, reconheçamos, é excessivo, alarmista, contra alguma evidência científica até. Mas quem quer correr riscos desnecessários ou pôr em perigo a saúde dos outros quando dentro dessa categoria por vezes abstrata – os Outros – estão os que mais amamos, aqueles com quem trabalhamos, os vizinhos e desconhecidos que percorrem idênticos caminhos diários?
É excessivo, sim, mas também é de bom senso. Estou desde sábado à noite em isolamento social, como hoje se diz em português limpo e eufemístico, porque a palavra quarentena é demasiado forte. Quarentena é palavra de outros tempos, de tempos em que se fechavam aldeias inteiras, em que a informação era distorcida, em que a doença e o contágio eram vistos de lado e aplicados a comunidades inteiras. Bem, se calhar, pensando bem no assunto, talvez a palavra não esteja assim tão desatualizada. Mas isso são contas de outro rosário, talvez para um balanço final deste ano de 2020 marcado pelo Coronavírus ou Covid-19.
Resumindo e recentrando a prosa: tenho um quarto só para mim, como Virginia Woolf tanto reclamava, para evitar qualquer contágio. Convém explicar que não perdi de todo o juízo. Tudo isto tem uma justificação. Como faço há 15 anos, fui cobrir para o JL mais uma edição das Correntes d’Escritas. O festival da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim tem-se afirmado como um dos centros do nosso meio literário, marcando até o arranque do ano editorial. Entre as várias intervenções, destacou-se a do escritor chileno Luís Sepúlveda. É mais conhecido por ser o autor de O Velho que Lia Romances de Amor, mas também o podemos apresentar como o escritor que nunca se cansa de denunciar. Desassombrado, falou dos muitos ambientalistas, ecologistas e ativistas que têm sido mortos e “feitos desaparecer” na América do Sul, nomeadamente no Brasil e na Colômbia, muito em torno das questões da Amazónia.
Gostava de o entrevistar sobre este assunto, disse-lhe, no dia seguinte, quando o vi, aproveitando a informalidade das Correntes, festival onde não há estrelas nem barreiras no contacto com os convidados. Muito bem, vamos a isso, respondeu-me. E fomos, felizmente, haveria eu de recordar dias mais tarde, ao ar livre. Conversa breve mas centrada no essencial, adeus e obrigado e entrevista publicada na última edição do JL.
E depois… e depois é o que se sabe ou pelo menos o que se tem sabido. No sábado passado à noite já tinha pensado mais do que uma vez: devia deitar-me. Com um filho pequeno, o fim-de-semana não é propriamente um tempo de descanso. Muitas atividades, muita animação, muitas emoções, alegria e festa.
Àquela hora, com juízo, já devia estar a dormir. Só mais um capítulo, pensei, só mais um jogo de xadrez (a mania voltou), só mais uma notícia e boom, como num filme.
A partir daqui tudo se desenrolou muito depressa. De início, a suspeita, depois a confirmação. Luis Sepúlveda, aquele escritor que todos admiramos há décadas, está internado com Coronavírus. A seguir, o pensamento e a pergunta vinda de vários lados: mas tu não o entrevistaste na Póvoa? Ato contínuo: e agora? Um pouco mais calmo, a razão a comandar: telefona para a saúde 24.
Ao contrário do que já vi, li e ouvi, o meu atendimento foi impecável. À uma da manhã de sábado registaram o meu caso e disseram que me telefonariam daí a pouco. E telefonaram! Mais uma triagem e nova promessa de telefonema em poucos minutos. E cumprida! SNS 2 – Pessimismo 0.
Até hoje, não foi diferente. Já fui contactado duas vezes por uma delegada de saúde e pela médica do meu centro de saúde. Sempre atenção, simpatia e profissionalismo. Isolamento social aconselhado, cuidados normais com a higiene, lavar muito bem as mãos, salvaguardar as crianças e os mais velhos, manter a calma e manter-me bem informado. Sabe-se que o risco de contágio é muito baixo no período de incubação, antes de o portador do vírus começar a manifestar os primeiros sintomas, e que é transmissível sobretudo através da tosse. No meu caso, como no de qualquer pessoa, o segredo está na vigilância ativa.
O que se faz então numa quarentena, voluntária ou forçada? Troco muitas mensagens, isso é certo, reativando até o contacto com quem não falava há muito. É inevitável pensar no que é mais importante para mim, reavaliando medos e sonhos. Também continuo a trabalhar (como a bem ou a mal este texto mostra), já que a vida lá fora continua na velocidade habitual. Sei de notícias (in)esperadas, como o cancelamento da edição deste ano da Feira do Livro de Leipzig, para a qual o JL tem feito edições em alemão sobre a literatura portuguesa, em conjunto com a Embaixada de Portugal na Alemanha. Preocupo-me com os recibos verdes, que muito provavelmente não serão abrangidos pelas medidas do Governo que visam defender os direitos dos trabalhadores (para eles, um dia sem trabalho é um dia sem receber!). E leio, essa paixão sempre renovada.
Enfim, não sei bem a quem interessarão estas linhas que agora estão prestes a acabar. À minha mãe, certamente, que me telefona com uma regularidade superior às dos aviões que aterram na Portela. À Irina que, sozinha, tem cuidado de mim e da nossa família, sabendo notícias minhas do outro lado da porta. E também a si, leitor, que conseguiu chegar até aqui. Porque neste quarto só meu ou no quarto só seu em que se encontra há lugar para todos. Neste mundo interligado em que vivemos, as ações de uns afetam sempre a vida dos outros.
Aqui, confinado à leitura e à escrita, é em si que também penso. O único vírus que quero transmitir é o da solidariedade, o do bem comum. Que tal tomarmos um café juntos no próximo sábado, quando chegar ao fim este meu isolamento social? Eu pago. E só tem de ouvir. Tenho muito para contar.