Manter o corpo ativo de forma regular tem tantos ou mais benefícios para a saúde como “deitar cedo e cedo erguer”. Embora a eficácia da atividade física na prevenção e no tratamento de doenças seja um dado adquirido e demonstrado por diversas pesquisas internacionais, só recentemente se começou a perceber quais os mecanismos fisiológicos e químicos envolvidos nesse processo.
Entre os estudos que confirmam o impacto benéfico do exercício físico na saúde e na redução do risco de desenvolver certos tipos de cancro, destaca-se o da Universidade de Queensland, em Brisbane, Austrália, publicado há dois meses no American Journal of Physiology. Na experiência, dois grupos de dez sobreviventes de cancro colorretal eram submetidos a um mês de treino físico intensivo numa elíptica e um deles repetia a sequência. Fizeram análises de sangue antes do treino, a seguir ao treino e duas horas depois. Os resultados foram intrigantes: as amostras feitas após o treino simples, quando misturadas com células tumorais em laboratório, revelaram-se aquelas em que as células do cancro se desenvolviam menos, a par do aumento dos marcadores inflamatórios.
A gastrenterologista Marília Cravo, do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, e do Hospital da Luz, em Lisboa, esclarece o enigma: “Após o exercício, são libertados para a circulação sanguínea produtos que têm um efeito inibitório sobre o crescimento de células tumorais in vitro.” Tal deve-se à presença de substâncias libertadas no músculo esquelético após o exercício físico e com potencial ação anticancerígena, designadas por miocinas. A equipa de Marília Cravo está a estudá-las in vivo, ou seja, em humanos, “por terem a mesma estrutura que as citocinas, produzidas no fígado após uma infeção para eliminar o agente causador”. Na prática, “as miocinas libertadas logo após o exercício vigoroso podem ter uma ação supressora sobre o tumor”, ainda que se “desconheça o tipo, a duração e a intensidade de exercício ideais para obter esse efeito”.
A equipa coordenada pela professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa está a seguir dois grupos de pacientes, 20 no total, com cancro colorretal. Durante os quatro meses de quimioterapia, um desses grupos conta com uma dieta proteica e um programa de exercício: “No próximo ano e meio, com a medicina física e de reabilitação e a colaboração do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, vamos apurar se o efeito das miocinas aumenta a resposta imunológica face ao tumor.”
Que implicações têm estudos como este na nossa vida diária, tendo em conta que se estimam em 14% as mortes anuais associadas à inatividade física (mais 4% do que a média mundial)? Isto, tendo ainda em linha de conta que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), metade da população portuguesa é “insuficientemente ativa”?
Vencer e recuperar o fôlego
“O sedentarismo é um fator de risco para um estado de inflamação crónica, a qual promove os processos cancerígenos.” A afirmação é de Ana Joaquim, oncologista no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. A obesidade e a escassa atividade física são autênticos rastilhos para o cancro, doenças cardiovasculares e diabetes, por favorecerem a “produção de mediadores pró-inflamatórios, como algumas interleucinas e outras citocinas”.
Um estudo publicado em 2016 no British Medical Journal já revelava que o sedentarismo era um fator de risco para estados de inflamação crónica, a porta de entrada para doenças cancerígenas (na mama, no cólon ou na próstata), problemas cardiovasculares e diabetes. Daí que as equipas médicas e de investigação estejam focadas em incluir a atividade física nos tratamentos de doentes crónicos e também na fase que se segue.
Os resultados do projeto-piloto MAMA_MOVE®, da Universidade da Beira Interior (UBI), recentemente publicados na revista Psychology, Health & Medicine, revelaram um aumento da qualidade de vida e uma melhoria da aptidão física nas mulheres em vigilância, após concluírem os tratamentos de cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Na Covilhã, o programa abrangeu 30 participantes e a equipa que trouxe o projeto para Vila Nova de Gaia quis apurar se os benefícios se mantinham em aulas de grupo. O Programa de Exercício Físico Supervisionado para Sobreviventes de Cancro da Mama, o MAMA_MOVE Gaia, arrancou em novembro de 2017 e, incluído no grupo dos prioritários para promover a atividade física pelo Ministério da Saúde, já está a dar os primeiros frutos, pois “contraria a desmotivação para a prática de exercício após o choque do diagnóstico e os efeitos secundários dos tratamentos, como fadiga, dores articulares e redução da massa muscular”.
Na fase de projeto comunitário, que durou um ano, com 40 pacientes seguidas em Gaia, “registou-se um aumento da qualidade de vida”. Desde julho de 2018, decorre uma pesquisa com 60 mulheres, mas que podem chegar às 80 participantes. Pretende-se ainda, “até 2021, ter 45 mulheres a fazer exercício enquanto estão em quimioterapia e compará-las com um grupo de controlo”, remata a oncologista.
O efeito protetor do exercício no combate às células cancerígenas não impede que “uma pessoa ativa possa ter um cancro, estamos a falar no geral”, adverte a investigadora Dulce Esteves, do departamento de Ciências do Desporto da UBI. Contudo, o trabalho feito ao abrigo dos protocolos com centros de saúde e ginásios permite confirmar “o impacto positivo do exercício na recuperação de funções”, além de se revelar “uma terapia auxiliar para recuperar a mobilidade e a capacidade de fazer esforço, numa lógica individualizada”.
Todo o movimento conta
Há três anos, a American Association for Cancer Research lançou uma hipótese para explicar os mecanismos bioquímicos pelos quais o treino de resistência com exercícios aeróbicos trava a incidência, a progressão de tumores e metástases nos tecidos hospedeiros (músculos esquelético e adiposo, medula óssea, fígado).
Entretanto, o National Cancer Institute lançou um documento com os 13 tipos de cancro cujo risco pode ser reduzido com atividade física, definida enquanto “movimento que usa o tecido muscular esquelético e requer mais energia do que o estado de repouso”. Das lides domésticas ao montanhismo e à natação, os ganhos de saúde são sempre a somar. Dos metaestudos apresentados, destacam-se os dos cancros do cólon, da mama e do endométrio, em que a redução do risco varia entre os 24% e os 12 por cento. O exercício contribuiria para reduzir os níveis hormonais de insulina e de estrogénios, prevenir a obesidade e, com ela, a resistência à insulina, reduzir estados inflamatórios e melhorar a função imunitária, além de ter um efeito protetor no sistema gastrointestinal, pela metabolização dos ácidos biliares e pelo menor tempo da digestão.
Um estudo mais recente, divulgado este ano na revista online PLoS, do Departamento de Patologia e Medicina Molecular da Universidade de McMaster, no Canadá, demonstrou que o treino aeróbico ao longo da vida retarda os estados inflamatórios associados ao envelhecimento e chamou-lhe “inflammaging” (inflammation + aging). Importa referir ainda que a experiência foi feita com ratinhos e que os corredores, face aos sedentários, tinham níveis de citocinas e quimiocinas bem inferiores e, portanto, estavam mais protegidos contra a perda de massa muscular e óssea e patologias diversas, cancerígenas incluídas, de que padeciam os outros.
Estes dados seguem na linha de pesquisas realizadas com pessoas de meia-idade. Uma pesquisa brasileira envolvendo mais de mil mulheres com idades entre os 45 e os 59 anos, mostrou que a prática de 60 minutos diários de atividade com intensidade moderada tinha ganhos físicos (bem-estar corporal, menos dores, insónia e fadiga), sendo apenas necessários 30 minutos para obter benefícios psicológicos e sociais (na autoestima, na autoimagem e no bem-estar subjetivo).
E nos homens? A equipa liderada pela epidemiologista June Chan, na Universidade da Califórnia, nos EUA, encontrou mais de 180 modificações genéticas em praticantes de desporto (ténis, natação e jogging), que contrastava com os genes dos que não o faziam. Noutra investigação divulgada antes, no Journal of Clinical Oncology, com pacientes oncológicos, ficou claro que o risco de morte era reduzido em mais de metade dos casos com a prática de atividades vigorosas durante três ou mais horas semanais, traduzindo-se no aumento de genes supressores nas fases iniciais de tumores da próstata, influenciando ainda a reparação do ADN.
Mudar (maus) hábitos
De pouco ou nada adianta queixar-se do elefante no meio da sala, ou do problema que se vai deixando andar até que surja uma crise e tenha de o gerir com menos margem de manobra. “São poucas as situações de obesidade por predisposição genética, a maioria deve-se ao sedentarismo e à alimentação”, afirma José Afonso, docente da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e pós-doutorado em Periodização do Exercício.
A boa notícia é que, mesmo em pessoas obesas, mais propensas a processos inflamatórios, e pessoas doentes, “o exercício melhora a capacidade cardiovascular e outros indicadores de saúde, além de oferecer mais bem-estar”. O investigador reconhece que os pacientes com cancro podem ter algumas limitações por estarem imunodeprimidos, sem que isso comprometa, bem pelo contrário, as inúmeras vantagens do treino supervisionado e adaptado à situação, acrescentando que “na patologia cardíaca, por exemplo, já se arrisca em treinos com mais intensidade e que estão a ter resultados muito interessantes”.
José Afonso vai ser um dos oradores da Exercise Summit, que tem lugar nos dias 11 e 12 deste mês, em Lisboa. Na palestra A Pseudociência sobre a Periodização do Exercício, a intenção é desconstruir ideias feitas e oriundas do desporto de competição que conferem uma falsa sensação de segurança às pessoas. Indo além do universo desportivo, o que funciona para afastar doenças?
Segundo o Programa Nacional para a Promoção de Atividade Física (PNPAF), da Direção-Geral de Saúde, “adultos saudáveis devem praticar 150 minutos semanais de atividade física moderada, ou 75 minutos de atividade vigorosa, ou combinação equivalente”. Crianças e adolescentes devem acumular 60 minutos de atividade física de intensidade moderada a vigorosa. E em qualquer destes cálculos, considera-se ainda que a duração mínima dos períodos ativos é de 10 minutos. Romeu Mendes, médico doutorado em Exercício e Saúde e diretor-adjunto do PNPAF, salienta a importância de manter o corpo fit, evitar o sedentarismo e fintar as principais doenças crónicas não transmissíveis, “o cancro, a diabetes, as doenças cardiovasculares e a doença mental (depressão), sendo que o principal destes quatro inimigos é a obesidade”.
A atividade física reduz a secreção de adipocitocinas (substâncias produzidas pela gordura), que estão na origem das inflamações e doenças. Isto é tudo muito bonito em teoria, mas segundo o Eurobarómetro 2014, mais de metade dos portugueses com idade superior a 15 anos justificava a falta de atividade física regular pela falta de tempo (33%) e de motivação (26%), sem contar com os 19% que acham demasiado cara a opção do ginásio. Entre o ideal e o possível, Romeu Mendes lembra que há mais maneiras de interromper o tempo sentado, bem como de fortalecer e manter robustos os músculos, ossos e articulações: “Doses de atividade física inferiores a 20, 25 minutos diários recomendados são sempre melhores do que não fazer nada.”
A prática de atividade física e regular, “que é a grande mudança de paradigma advogada pela OMS nos últimos anos”, está ao alcance de todos, os que tiveram e têm problemas de saúde, os que desejam fintar a doença e aqueles que apostam em comportamentos de promoção de saúde ao longo da vida. “Basta deixar o carro a 15 minutos do local de destino para já estar a ganhar.” Daí em diante, os limites para capitalizar bem-estar são os da sua imaginação e… determinação.
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