O maior desafio da transição para um mundo socialmente mais justo e ecologicamente sustentável é também o maior desafio das nossas vidas: o da coerência. No que toca à transição para a sustentabilidade, trata-se de assumirmos a abundante evidência histórica e científica nas decisões que tomamos nos diversos papéis que desempenhamos. Já no que toca às nossas vidas, trata-se do desafio dos nossos atos traduzirem o que no fundo sentimos ser justo, belo ou correto.
São vários os neurocientistas que alertam para a dificuldade de o nosso cérebro compreender e acreditar em evidências históricas ou científicas que não sentimos na pele – são algo irreais, uma abstração remota. Não é por falta de informação sobre os fenómenos da pobreza, da injustiça social, ou dos impactes da Humanidade nos equilíbrios-chave do planeta, que não agimos. Já no que toca às nossas vidas, somos todos dotados de um sexto sentido – anterior mesmo aos valores que escolhemos para a edificar –, que nos permite saber o que é justo, belo ou correto. Porém, passamos a vida a trair essa bússola interior.
A coerência não é fácil por não ter nada de imediato para nos dar – olha-nos com indiferença, não nos agradece, nem nos dá likes. Mas, se pensarmos bem, precisamente por ser o nosso maior dever, seria estranho ser algo extraordinário. Nós também não agradecemos o ar que respiramos, nem a frescura das ondas do mar.
Aceitar viver segundo o imperativo ético de Dostoievski – de que somos todos responsáveis por tudo, perante todos – é muito difícil.
No que toca à insustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, tendemos a assumir que os nossos comportamentos individuais serão sempre irrelevantes, que não temos o poder de influenciar decisivamente o mundo em que vivemos e o seu futuro, a partir das escolhas que fazemos. Somos uma gota no oceano. A mudança cabe aos políticos, às escolas e às empresas. Já no que toca às nossas vidas, não temos tempo, nem coragem, para ouvir essa voz interior, essa luz trémula que nunca se apaga, e sermos consequentes com ela. Passamos pela vida distraídos, a repetir desculpas para viver em função de nós próprios aqui e agora.
Quando mataram Che Guevara, alguém o lamentava profundamente por ele ser o símbolo global das possibilidades de um só homem. Sem heroísmos, nem recompensas, é esse o nosso maior desafio: reconhecer que temos – todos temos – o superpoder de contribuir para um mundo melhor e procurarmos ser coerentes em cada gesto.
Na realidade, todas as nossas decisões como cidadãos, consumidores, pais, cientistas, políticos, gestores ou quaisquer outros papéis que possamos desempenhar terão um impacte no mundo que nunca saberemos qual é. O bater de asas de uma borboleta pode mesmo provocar tempestades. A boa notícia é que esta regra também se aplica para o bem.
É verdade que o capitalismo, a democracia e o sistema de ensino precisam de reformas urgentes para que a transição para a sustentabilidade social e ecológica possa ocorrer, mas comecemos por nós próprios. No silêncio e no anonimato, sabendo que o caminho é lento e sinuoso, mas também que nunca é tarde para (re)começarmos. Só não podemos desistir ou esmorecer. Como dizia Sophia de Mello Breyner, ponhamos solenidade e risco em cada gesto, pois nada de grande se faz sem paixão.
Há uns dias, uma pessoa que magoei profundamente partilhou comigo uma canção perfeita do Tim Bernardes, chamada “Nascer, Viver, Morrer”.
A canção começa assim:
Nascer outra vez bem no meio da vida
De fato acordar e enxergar cada dia
As coisas existem com força e magia
E eu sou a consciência da coisa que eu sou
Eu quero e eu amo e eu posso e eu vou
Como diz a canção, estamos sempre a tempo de nascer outra vez, de sentir a força e a magia das coisas, de tomar consciência. Mesmo a meio da vida, mesmo que nos possa parecer um pouco tarde, como dizia o Manuel António Pina. Desde que os ouvi pela primeira vez, passei a dizer estes versos do Tim Bernardes todos os dias ao acordar. Talvez um dia ela me perdoe. Aguardo à janela. As angústias do mundo cabem numa mão. São sempre as mesmas. Não são mais de quatro ou cinco. Mas são infinitas.