Apesar do Holocausto e da bomba atómica, o século XX foi de esperança, de progresso científico-tecnológico e económico, e de consolidação das democracias liberais e dos direitos humanos. Nos últimos 200 anos, a população mundial aumentou quase oito vezes, e mesmo assim o PIB per capita aumentou 14, sendo hoje cerca de 10 mil dólares – valor que seria suficiente para todos termos uma vida digna, não fossem as assimetrias na distribuição da riqueza. Nunca fomos tão ricos, mas os níveis de concentração da riqueza também nunca foram tão elevados. Em 1990, a capitalização bolsista das 50 maiores empresas mundiais representava 7% do PIB mundial; hoje, representa quatro vezes mais, isto é, 28%. Hoje, as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza que metade da população mundial (quase quatro mil milhões de pessoas).
Mas o século XX não acentuou apenas as desigualdades, levou também a biosfera à exaustão, como se ignorássemos que as nossas vidas continuarão sempre a depender da natureza – do ar que respiramos ou da água que bebemos, à generalidade dos bens de uso quotidiano. Uma casa, um carro ou uma t-shirt são natureza, tal como um iPhone, que é composto por 14 recursos naturais – por exemplo, lítio, aço, ouro, vidro, cobalto, plásticos e zinco. Ora, sendo esses recursos finitos, e no contexto de uma população e de uma classe média crescentes, num prazo muito curto teremos um problema grave de escassez de recursos naturais. E se a essa nossa pegada somarmos os níveis atuais de geração de resíduos, poluição e gases com efeito de estufa, facilmente se compreende a afirmação de Yuval Harari: “Historical records make Homo sapiens look like an ecological serial killer”.
Em certa medida, seria expectável que as democracias liberais, consolidadas ao longo do século XX, conseguissem alocar o conhecimento, a coragem e os recursos necessários para mitigar as desigualdades e os impactos ecológicos dos nossos estilos de vida – porém, também elas estão sob stress e reféns de lógicas de curto prazo. Que condições políticas temos hoje para reinventar o futuro? Por exemplo, para instituir uma fiscalidade verde ou políticas ambiciosas de coesão social, ou para adotarmos medidas como a semana de quatro dias de trabalho, a taxa Tobin ou o Rendimento Básico Universal? Em suma, o que fazer quando a promessa e a solidez do século XX se dissolvem no ar?
Não negando a importância da ação coletiva sistémica, este terá de ser o século da ação individual – orgânica, capilar, quotidiana. O desafio já não é tanto o da idealização coletiva de uma ética de relação com o outro e com o planeta, mas sim o da adesão massiva e apaixonada aos princípios que regem a convivialidade. Precisamos de sistemas de regras que regulem o funcionamento das sociedades e das democracias, mas será sempre no plano da emoção e do silêncio que o futuro se decide. Por isso, as metalinguagens são tão importantes para o século XXI: porque o que nos move nunca é a compreensão analítica dos problemas ou dos sistemas de regras, mas sim os rios subterrâneos que nos habitam, que tantas vezes nos interpelam e surpreendem, e nos ligam ao que nos rodeia – e nos podem levar a pôr solenidade e risco em cada gesto.
Por amor de um verso, escreveu Rilke, é preciso poder voltar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas. Com o futuro passa-se o mesmo: só será mais coeso e sustentável se estivermos disponíveis para regiões e encontros inesperados. J’avale la vague que me noire le soleil de midi é o título da exposição da artista AnaMary Bilbao, patente na Fundação Leal Rios. O título da exposição é roubado ao livro de Georges Bataille, Le Blue du Ciel. Diante de uma das suas telas, na qual se vê um caminho que se perde numa floresta, dei por mim a pensar que talvez este século só nos peça um pouco mais de azul e uma maior atenção aos trilhos e rios subterrâneos que nos atiram, como náufragos, para regiões desconhecidas.