Ou saímos desta crise mais verdes e mais solidários, ou simplesmente não sairemos da crise. O facto de estarmos perante uma pandemia (isto é, uma crise sanitária global) pode gerar uma falsa perceção de simetria e similitude nos efeitos da crise. Nada mais falso. A pandemia, nas suas vertentes sanitária, económica e social, vai penalizar desproporcionalmente, dentro de cada país, os cidadãos mais vulneráveis, e à escala global, os países mais pobres. Isto é, vão aumentar as desigualdades dentro e entre países.
Encaremos o dilema: por um lado, estamos todos preocupados com a saúde e a situação económica e social dos nossos familiares, dos nossos amigos, da nossa comunidade e do nosso país. Faz, pois, sentido que, depois da proteção dos sistemas de saúde, sejam agora as pressões sobre a economia, o emprego e o rendimento das pessoas que motivem a ação dos governos e a preocupação dos cidadãos. Por outro lado, é cada vez mais evidente que a saída da crise pós-pandemia será assimétrica e alguns só o poderão fazer com a solidariedade e cooperação internacionais.
Confinamento é um luxo dos países ricos
Esta guerra só terminará quando vencermos a última batalha. Até lá, ninguém estará seguro. E é altamente provável, atendendo às fragilidades dos seus sistemas de saúde, que a última batalha contra a pandemia venha a ocorrer em África. Vale a pena recordar alguns números para que se tenha uma noção da crua realidade e da fragilidade destes países na vertente sanitária: existem 3 ventiladores na República Centro-Africana, 3 na Serra Leoa, 7 no Malawi; existem 19 camas para cuidados intensivos na Somália e 24 no Sudão do Sul; o rácio do número de médicos em África é de 2 por cada 10 mil habitantes (quando nos países da OCDE o rácio é de 34 por 10 mil), sendo que os países africanos se continuam a deparar, no dia a dia, com graves problemas de saúde pública – ébola, tuberculose, malária, HIV, hepatite. A situação sanitária é ainda mais grave quando se percebe que o confinamento é um luxo dos países ricos – distanciamento social em bairros de lata e favelas com milhões de habitantes? Lavagem frequente das mãos quando 4 em cada 10 casas não têm água segura e mais de 2 400 milhões de pessoas não têm saneamento?
Mas não se trata apenas da saúde. Os dados apontam para um desastre económico pós-pandemia nos países em vias de desenvolvimento. O investimento direto estrangeiro cairá 30% em 2020; o turismo global cairá entre 45 e 70% (com especial impacto nos pequenos estados insulares); o preço de algumas commodities (não só o petróleo) está em mínimos históricos, afetando alguns países do Sul altamente dependentes da exportação desses recursos. Teremos 305 milhões de novos desempregados e 500 milhões de novos pobres, a nível global, nos próximos meses (dos quais 130 milhões em situação de pobreza extrema).
Sim, em poucas semanas podem ser perdidos os ganhos de três décadas de combate à pobreza nos países em vias de desenvolvimento, conseguidos através da globalização, da revolução tecnológica, da abertura dos mercados e da cooperação internacional.
Em poucas semanas podem ser perdidos os ganhos de três décadas de combate à pobreza nos países em vias de desenvolvimento, conseguidos através da globalização, da revolução tecnológica, da abertura dos mercados e da cooperação internacional
Temos de apoiar e investir nos países em vias de desenvolvimento
O alívio do serviço da dívida anunciado há algumas semanas no G20 tem a vantagem de proporcionar uma almofada de liquidez de 25 mil milhões de dólares aos países mais pobres, mas não deu ainda a resposta que é necessária e que será inevitável face à dimensão do problema.
Convém, aliás, recordar, neste tira-teimas sobre responsabilidade e solidariedade Norte-Sul, que, nas últimas décadas, o crescimento global foi, em larga medida, determinado pelo crescimento económico dos países em vias de desenvolvimento (que cresciam anualmente acima dos dois dígitos), beneficiando os países desenvolvidos, incluindo Portugal. Quem não se recorda do papel determinante desempenhado pelos mercados africano, asiático e latino-americano, no auge do nosso último resgate, na absorção das exportações provenientes de empresas portuguesas, compensando a quebra drástica nos mercados europeus? Isto significa que, se quisermos acelerar a recuperação económica a nível global, temos de apoiar e investir nos países em vias de desenvolvimento, seja por uma questão de responsabilidade, seja por uma questão de eficácia (não haverá crescimento económico global se os países do Sul ficarem ainda mais para trás).
Em termos práticos, qual é a dimensão do problema? Os países em vias de desenvolvimento já enfrentavam, para cumprir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um gap financeiro anual de quase 3 mil milhões de dólares. Em apenas três meses, o problema aumentou de forma trágica. De acordo com o relatório da OCDE que lancei esta semana, estamos na iminência de um colapso do sistema de financiamento ao desenvolvimento: estima-se que os fluxos financeiros (públicos e privados) dirigidos aos mais pobres (de rendimento baixo e médio) caiam, em 2020, cerca de 700 mil milhões de dólares. Esta quebra é 66% superior à ocorrida após a crise financeira de 2008/09 e é fortemente determinada pela drástica redução do investimento direto estrangeiro e das remessas dos emigrantes (que enviam todos os anos cerca de 400 milhões de dólares das suas poupanças para as suas famílias nos países em vias de desenvolvimento).
Atentemos na tempestade “perfeita” que assola muitos desses países: os fluxos externos caem drasticamente, o preço do petróleo e das commodities está nos mínimos e o endividamento está em níveis máximos (44% dos países em vias de desenvolvimento com rendimento baixo já se encontravam sobre-endividados antes da crise). Logo, estes países não têm qualquer espaço orçamental remanescente, nem possibilidade de se endividarem ou de aumentar a carga fiscal sobre uma população que enfrentará uma vaga de pobreza sem precedentes.
Aproveitar o momento
E agora? Agora, é a nossa hora. Assim como, no plano nacional, os Estados e o setor público lideraram pelo exemplo, avançando com pacotes de investimento público, também no plano da cooperação internacional é chegada a hora de os países doadores avançarem para um significativo aumento da ajuda pública ao desenvolvimento, tirando partido do efeito catalítico que esta poderá ter para mobilizar o setor privado na ajuda aos países mais vulneráveis.
Reparemos no paradoxo: os países ricos foram capazes de lançar (em poucas semanas) pacotes de estímulo económico na ordem dos 11 biliões de dólares e continuam a expressar reservas em aumentar a ajuda pública aos países mais pobres, que hoje se situa em apenas 153 mil milhões de dólares.
Mas não nos enganemos. Além do risco de sairmos desta crise mais desiguais, mais egoístas e mais divididos – Norte e Sul, ricos e pobres –, existem duas outras falácias que urge evitar.
A primeira é pensarmos que podemos tratar a resposta a esta crise de forma desligada da resposta à crise climática e do combate às desigualdades. A segunda é achar que tudo se resolve com financiamento, dispensando políticas ambiciosas e reformas corajosas.
Seria indesculpável não aproveitar este momento para alinhar totalmente os pacotes de financiamento, que estão a ser desenhados, com os objetivos de desenvolvimento sustentável e com o crescimento verde.
O combate às alterações climáticas, sendo urgente, é também gerível e pode ser custo-eficiente se agirmos atempadamente. O estudo da OCDE Investir no Clima, Investir na Economia demonstra que a integração das questões climáticas nas estratégias de desenvolvimento económico pode adicionar 5% à taxa de crescimento económico até 2050. E o cumprimento dos 17 ODS pode gerar 380 milhões de novos postos de trabalho.
Mas não podemos limitar-nos a enunciar as potencialidades económicas da descarbonização ou sublinhar o acréscimo de financiamento que lhe é dirigido. Como não podemos continuar a disfarçar a inação com narrativas eloquentes e inconsequentes sobre a emergência climática ou com metas e roteiros para 2050 que não são alicerçados em reformas imediatas.
Este é o momento de avançar para a concretização de um menu de políticas climáticas que é conhecido há muito tempo e que tarda, em muitos países, por falta de coragem: rever as metas de redução das emissões para níveis mais exigentes e compatíveis com o objetivo de limitar o aumento da temperatura a 1,5 ºC; investir em infraestruturas de energia e transportes de baixo carbono e acelerar as interligações elétricas entre todos os países; eliminar os subsídios aos combustíveis fósseis (que recebem cinco vezes mais apoios do que as energias renováveis); assegurar 100% de eletricidade renovável nas próximas décadas, erradicando o uso de carvão, massificando a utilização das energias renováveis tecnologicamente maduras e avançando para uma nova geração de tecnologias renováveis; acelerar a transição para a mobilidade elétrica; aumentar a eficiência energética e hídrica nos edifícios e discriminar positivamente a reabilitação urbana face à nova construção; introduzir mais restrições à entrada e circulação de automóveis nas cidades; reforçar a rede, a qualidade e a interoperabilidade dos transportes públicos.
Existem duas falácias que urge evitar. A primeira é pensarmos que podemos tratar a resposta a esta crise de forma desligada da resposta à crise climática e do combate às desigualdades. A segunda é achar que tudo se resolve com financiamento, dispensando políticas ambiciosas e reformas corajosas
Estas políticas climáticas têm de ser alicerçadas em seis instrumentos: metas e objetivos quantificados; regulamentação e regulação; fiscalidade verde (seja penalizando atividades e comportamentos insustentáveis, através de taxas de carbono, seja atribuindo incentivos fiscais que remunerem a sustentabilidade); mecanismos de mercado (como os sistemas de comércio de emissões); novos mecanismos de financiamento (garantias, investimento de impacto, blended finance, green bonds); colaboração e parcerias (recordo o impacto do Compromisso para o Crescimento Verde, que liderei, em 2014, juntando mais de 100 entidades públicas e privadas).
Na busca de um roteiro ou plano que nos guie na saída desta crise, não precisamos de procurar muito longe. O Plano Marshall e o New Deal, desta vez, têm outro nome: Acordo de Paris e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aprovados em 2015. Mas, desta vez, é para cumprir.