“Vivemos em Aldeia de Paio Pires, concelho do Seixal, juntamente com mais cerca de 15 mil pessoas, número que pode aumentar, pois aquilo a que a nossa comunidade está sujeita também o estão outras mais distantes, já que o epicentro da nossa tragédia projeta um raio que ultrapassa em muito a área em que vivemos. Do outro lado da estrada – e não estamos a falar em termos metafóricos – existe uma empresa siderúrgica chamada, em tempos, Siderurgia Nacional. Hoje, chama-se SN-Seixal, SA, e pertence ao grupo espanhol MEGASA.
Todos sabemos que esta proximidade – siderurgia e núcleo urbano – não seria possível nos tempos atuais, pois o conhecimento que existe sobre os malefícios da atividade siderúrgica sobre a saúde pública e o meio ambiente a tal se opõe. No entanto, já que a realidade é esta coabitação, elementar seria que por parte dos órgãos do poder político houvesse o cuidado de exigirem de si mesmos a aplicação de uma série de medidas que acautelassem a nossa saúde – a da população e a dos trabalhadores da empresa – e o meio ambiente.
Tal passaria, como nos parece óbvio, por exigir que a empresa cumprisse, escrupulosamente, a legislação que lhe é aplicável, em termos ambientais, e que, regularmente, se fizessem rastreios junto da população que vive na zona de influência da fábrica, para além de se realizarem estudos epidemiológicos que pudessem perceber quais os efeitos reais, na saúde pública, desta garantidamente perigosa proximidade.
Apesar de haver a noção de que os casos de carcinoma de pulmão e de Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica [DPOC] são comuns nesta comunidade, dizem-nos que não existem estudos de qualquer natureza que procurem identificar o problema em toda a sua envolvência. Ou ainda pior: esses estudos existirão, mas são mantidos em segredo. Seja como for, a verdade – o facto indiscutível e inegável – é que ninguém, a nível do poder político, foi capaz de responder, até hoje, a esta duas simples perguntas:
Uma muralha de silêncio
É verdade que a incidência/prevalência de doenças do foro respiratório, desde a mais simples alergia aos já mencionados carcinomas e DPOC, ultrapassam, em Aldeia de Paio Pires, a média nacional?
Podem – governo e autarquias – garantir que o ar que se respira, em Aldeia de Paio Pires (e zonas limítrofes, num raio de vários quilómetros), em momento algum representa um perigo para a saúde pública?
Ressalvamos que esta última pergunta se circunscreve a um quadro de permanente descargas poluentes para a atmosfera, e não é, como se compreenderá, mera hipótese académica face a um qualquer desastre ambiental ou ocorrência equiparável. Falamos de uma comunidade sujeita 365 dias por ano, 24 horas por dia, a cargas poluentes de vária natureza.
A ausência de resposta a estas simples questões diz-nos como é grande a muralha de silêncio que abafa este magno problema. Contudo, do outro lado da estrada – literalmente, realçamos – são lançados para a atmosfera furanos, dioxinas, óxidos de nitrogénio, de enxofre e de carbono, compostos orgânicos voláteis e metais pesados. E, também às toneladas, poeiras e outras partículas, sem esquecer as limalhas que os moradores varrem diariamente das suas varandas, parapeitos, ou limpam das suas viaturas e campas do cemitério, e que podem – como verá no vídeo anexo – recolher com um vulgaríssimo íman. E que, como se compreende, não chegam às nossas casas a rastejar, mas pelo ar que, fatalmente, respiramos.”
“Terra da morte lenta”
É assim que começa o email que um grupo de habitantes da Aldeia de Paio Pires, no concelho do Seixal, enviou na passada sexta-feira a Marcelo Rebelo de Sousa. Queixam-se de que vivem numa “terra da morte lenta”, e de “anos e anos” a sofrer e a contestar as práticas da SN-Seixal, perante “a estranha passividade dos órgãos do poder político”. E ouvir o Presidente da República garantir que não vai deixar cair o assunto Incêndios deu-lhes alento para lhe pedirem a sua “decidida intervenção”.
“Sabemos que fulano está com um cancro do pulmão ou que sicrano anda sempre com uma botija de oxigénio – são casos muito comuns na Aldeia de Paio Pires”, conta João Carlos Pereira, 75 anos, uma carreira profissional na banca e uma vida inteira passada na Aldeia de Paio Pires. “Médicos do Hospital Garcia de Orta [em Almada] disseram-nos particularmente que, quando chegam doentes com problemas respiratórios, pensam logo que eles moram aqui. Por isso é que queremos que na Agência Portuguesa para o Ambiente nos respondam a esta questão: Podem garantir que, em momento algum, no nosso dia a dia, o ar que respiramos não é um perigo para a saúde?”
João Carlos Pereira pertence ao movimento Os Contaminados, que tem no Facebook um grupo muito ativo, com mais de 1 milhão de gostos. Além de apelar a Marcelo, o grupo prepara uma queixa às instituições comunitárias por alegados crimes ambientais e contra a saúde pública. E dispara para todos os lados.
“Nunca perderemos esta luta por termos desistido de lutar”. É com esta frase que João Carlos Pereira termina o email que enviou a todos os grupos parlamentares, de quem espera resposta para uma série de questões. A mais importante, diz, é saber que efeitos tem na saúde pública a emissão de gases poluentes, poeiras e limalhas, 365 dias por ano, 24 horas por dia, mesmo que não atinjam os valores permitidos por lei. “Podem garantir que, em momento algum, no nosso dia a dia, o ar que respiramos não é um perigo para a saúde? Esta é a grande pergunta à qual a Agência Portuguesa para o Ambiente ainda não respondeu.”
“Hoje, nunca seria ali construída”
No email enviado a Marcelo, o movimento Os Contaminados garante que os moradores não querem o encerramento da empresa. Apenas estranham a passividade dos órgãos do poder político, principalmente dos ministérios da Economia e do Ambiente.
João Carlos Pereira foi presidente da junta entre 1990 e 1998, e é o primeiro a lembrar que, nessa década, o Professor Manuel Lima, um conhecido estudioso em aves do concelho, chegou a registar o regresso de algumas espécies avícolas. E isso mesmo com a Siderurgia Nacional a laborar a todo o vapor desde 1976. A SN do Seixal foi projetada em 1973, mas só começou a funcionar já depois de nacionalizada.
“Claro que, hoje, ela nunca seria ali construída, ao lado de uma povoação”, nota o ex-autarca. “Mas, antes da sua [re]privatização, em 1995, sei que estavam a fazer um esforço para resolver os problemas ambientais.”
Nos primeiros anos nas mãos de espanhóis e italianos, a empresa terá seguido essas diretivas, mas com o tempo a situação deteriorou-se, diz, “sobretudo desde que os espanhóis compraram a parte dos italianos”.
Fundado em 1953, o grupo Megasa é uma empresa familiar especializada na produção e distribuição de produtos siderúrgicos longos: varão de aço nervurado, fio-máquina e rede eletrosoldada. Em Espanha tem três unidades de produção e uma de reciclagem, em Narón, muito próximo do porto de Ferrol, na cidade de Saragoça e em Silla (Valencia). Em Portugal, tem unidades de produção no Seixal e na Maia, e uma de reciclagem também no Seixal.
No site da empresa, o grupo diz ter como prioridade “adotar as melhores técnicas ambientais disponíveis e economicamente viáveis no sentido de garantir a segurança do processo e a máxima eficácia no consumo de recursos”, exibindo os certificados do sistema de gestão ambiental. Na SN do Seixal, a data da primeira emissão é de 30 de junho de 2009 e está válido até ao final de junho de 2018.
Logo em 2000, a Câmara do Seixal alertou para a poluição e contaminação na área. E, em 2014, a Organização Mundial de Saúde considerou o Seixal a cidade onde se pior respira, com quase o dobro (39 microgramas) dos valores-limite de concentração de partículas.
Desde o início que os moradores se queixam também do ruído “que parece um avião”, emanado pelos fornos elétricos, que trabalham dia e noite. Em 2002, a administração da empresa foi forçada a comparecer em tribunal por causa do barulho vindo da aciaria, aquando da introdução dos elétrodos no forno elétrico. Não existe qualquer barreira física que impeça ou abafe a propagação das ondas sonoras, lê-se no email enviado a Marcelo Rebelo de Sousa. “E enfatizamos que a SN-Seixal labora 24 horas por dia, sendo que as ações que provocam o ruído são realizadas, por razões de custos energéticos, prioritariamente no período noturno.”