“Há animais que parecem ser super-estrelas em relação a outros” ou “Se a extinção é natural, porque é que não se deixa o lince-ibérico extinguir-se”, são dois dos comentários que ouvi a propósito da reintrodução deste predador em Portugal. Talvez valha a pena olhar para esta ação, em que o episódio mais recente foi a reintrodução de dois animais na região de Mértola (Alentejo) no passado dia 16 de dezembro.
Primeiro, alguma informação preliminar: o lince-ibérico é atualmente o felídeo mais ameaçado do mundo, havendo um programa que envolve Espanha e Portugal de reprodução em cativeiro com o objetivo de o reintroduzir. O lince alimenta-se quase exclusivamente de coelho-bravo, tendo este herbívoro sido muito afetado por duas doenças devastadoras introduzidas pelos humanos (mixomatose e doença hemorrágica viral). Outros factores que contribuíram para o declínio do lince foi a destruição de habitat e a mortalidade não natural (sobretudo, atropelamentos e abates a tiro). Portanto, é bom notar que o seu atual estatuto de quase extinção não é um processo natural, mas sim consequência das nossas ações. Por isso, um dos argumentos para a sua recuperação é moral: se fomos nós que criámos esta situação, faz sentido sermos nós a modificá-la.
Segundo, sobre o investimento na reintrodução do lince: ao elegermos esta prioridade, estamos a optar indiretamente pela conservação de muitas outras espécies com quem partilha o seu habitat. É que o lince-ibérico é uma espécie carismática (ou, se preferir, um bicho fofinho) que existe geralmente em áreas de bosque e matagal mediterrânico bem conservado. Por isso, ele serve de “espécie-bandeira” à preservação deste habitat. Por oposição, se optássemos por uma espécie de planta ou de inseto, isso não implicaria necessariamente a conservação de muitas outras espécies, nem suscitaria tanto interesse do público. Imagina um ministro e sua comitiva a ir ao Alentejo plantar uma dúzia de exemplares de uma planta ameaçada, típica do bosque e matagal mediterrâneo? Não lhe parece mais interessante ver linces a saírem, assustados, das suas caixas?
Para além disso, o coelho-bravo de que o lince depende é muito importante nos ecossistemas da Península Ibérica, sendo caçado por mais de 40 espécies de predadores. Ou seja, a sua recuperação beneficia não só o lince, como também muitos outros predadores nesta região.
Terceiro, sobre as áreas onde ocorrem as reintroduções: obviamente, não vale a pena libertar animais sem que estejam reunidas boas condições de sustentabilidade da espécie. Se o fizéssemos, seria como deitar água num copo furado no fundo- rapidamente voltaríamos a ter um copo sem água. Portanto, as áreas de reintrodução devem ter abundância de coelho-bravo, incluindo de preferência arbustos densos (onde coelhos e linces se escondem) intercalados com vegetação herbácea (onde coelhos comem e linces caçam). Também é importante que a possibilidade de atropelamento e abate a tiro sejam reduzidas.
Por último, a região onde são libertados os linces devem ter corredores ecológicos que a ligue a outras onde também haja linces. Um corredor ecológico poderá ser, por exemplo, rios e ribeiros com vegetação densa nas suas margens, que permitam que o lince passe sem ser detetado. Desta forma, é possível a circulação de animais entre duas ou mais populações deste carnívoro, evitando os problemas de consanguinidade típicos de populações pequenas de animais que estão isoladas.
Resta-nos, então, esperar que haja no futuro uma ou mais populações bem estabelecidas deste carnívoro no nosso país. Assim, deixaremos às futuras gerações não só um belíssimo predador, mas também muitas outras espécies do bosque e matagal mediterrânico que o lince ocupa…