Um ano e três meses após a WWF ter divulgado que o comércio ilegal de animais selvagens ocupa o quarto lugar nas transações ilegais internacionais, depois da contrafação, da falsificação e do tráfico de seres humanos, leio com uma sombra de esperança um título que diz que o comércio ilegal de espécies selvagens protegidas diminuiu em Portugal (mas pouco…). Debruço-me sobre a notícia: revela dados e números assustadores sobre o comércio internacional de espécies protegidas, legislado pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (CITES).
Mas a verdade é que esta problemática não se restringe à repugnante morte de tigres e de elefantes por um souvenir, nem aos ovos de répteis e aves escondidos à cintura, existe um comércio ilegal, mais caseiro, nacional (com o alcance que a internet permite), talvez mesmo praticado pelo nosso vizinho, que aparenta escapar às estatísticas e ao controlo que mereceria.
Pintassilgos, corvos, águias e outros animais selvagens protegidos por lei, estão disponíveis à distância de um clique. A venda online de espécies selvagens protegidas (várias vezes detetada em sites de classificados e produtos em segundo mão) é um triste facto da nossa atualidade, e o seu controlo pelas autoridades competentes revela-se de extrema complexidade, demonstrando quão essencial é a colaboração da população em geral na denúncia e, esperemos, punição destes casos.
Desmascaremos o argumento do desconhecimento. A venda por qualquer via e a manutenção em cativeiro de animais selvagens autóctones são proibidas por lei, sendo as exceções muito limitadas. Por exemplo, casos autorizados de repovoamento na gestão cinegética (caça) ou venda de aves com certificado de proveniência de criadores registados. Para quem ainda tenha dúvidas, friso: a captura, venda e manutenção de qualquer animal selvagem capturado na natureza consistem em atos ilegais – com “direito” a uma forte coima ou até mesmo de prisão – e representam um ataque direto ao equilíbrio dos ecossistemas, conservação das populações e preservação da natureza, daí ser ilegal.
A imoralidade destes atos pode ser também algo desconcertante. Pensemos nas aves às quais é privado o direito de voar em liberdade na natureza, onde poderiam cumprir o seu papel natural para vislumbre de todos. Pensemos no corte das suas penas ou mesmo do osso e no engaiolamento, apenas porque têm cores bonitas ou cantam bem. E agora imaginemos o que nos aconteceria se fossemos amputados e privados da nossa própria liberdade…
Poderíamos ficar aqui a discutir que não se pode comparar uma coisa com outra (não?) e falar da subjetividade da felicidade nos outros animais que não o Ser Humano mas, efetivamente, não creio que seja discutível o egoísmo de um ato tão antinatura…
Neste momento talvez se questionem sobre qual a minha opinião acerca de jardins zoológicos ou determinados animais de estimação…Talvez vos fale disso noutra oportunidade, agora aproveito o mote para vos falar dos circos.
Recentemente vieram a público várias notícias de apreensão de animais de circo. Não deixando de felicitar estas iniciativas, sinto que acabam por ser as ações “mais fáceis” (porque os circos têm tigres e leões, tratam-se de animais em locais bem vistosos, onde são mantidos com frequência à vista de todos, não sendo necessárias denúncias anónimas para os encontrar…) e tenho alguma pena que não ajudem diretamente à resolução da problemática da perseguição (incluindo a venda ilegal) das espécies autóctones. Sensibilizada para a defesa dos leões e dos tigres toda a gente parece estar…
Estas apreensões pecam ainda por algo que muito se discutiu quando se decidiu “retirar”, ou pelo menos diminuir, o número de animais dos circos: normalmente os circos ficam como fiéis depositários dos animais, já que não existe capacidade de recebê-los em zoos ou outros locais que os tentem reabilitar (provavelmente, esta seria uma missão em vão, dado o tempo e condições que levam em cativeiro). Assim, os animais ficam nos mesmos circos onde foram detetados em situação ilegal, nas mesmas condições ou piores, porque entretanto os donos dos circos pagaram a coima e ficaram com os recursos – ainda – mais reduzidos…
Pelo que ninguém nos garante que não voltem a exibi-los ou que paguem a multa, fiquem com os animais, mas não tratem de os legalizar de acordo com o que está determinado na CITES . Logo, será mais ou menos um ciclo vicioso que ganha pela aplicação da multa (e o efeito dissuasor consequente) e pela visibilidade nos meios de comunicação social que a denúncia da venda online de aves tão pequeninas como um verdilhão não permite alcançar. Ou será que permite? Quero acreditar que sim, pelo que vou voltar a focar a vossa atenção nas espécies autóctones e em toda a problemática do crime paralelo que ocorre, online e fora da rede.
Deixo-vos um dado retirado do relatório de atividades de 2013 do Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS), de Gouveia: o cativeiro ilegal foi a segunda maior causa de ingresso de 2013 (85 animais, num total de 300 “bichos” ingressados vivos). Podemos considerar este número decorrente de uma maior atuação das autoridades (felizmente também se verificam casos de apreensão massiva, por equipas do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR (SEPNA-GNR) e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF ) de aves autóctones que estariam prestes a ser ilegalmente vendidas em várias feiras, por exemplo) mas não deixa de ser preocupante perceber que quase um terço dos animais que ingressaram neste centro poderiam nunca ter tido necessidade de o fazer se tivessem sido deixados tranquilamente em liberdade nos habitats a que pertencem.
Quero partilhar convosco outra coisa que encontrei online e me deixou profundamente irritada. Trata-se de uma conversa num fórum de “animais de estimação”. Em resposta à súplica de um dos membros do fórum para que não sejam capturados animais selvagens [falando de ouriços-cacheiros (Erinaceus europaeus), uma espécie autóctone] a pessoa que se vangloriava de ter um em casa responde, corretamente, que a venda é proibida de modo a não se estimular um comércio paralelo que possa extinguir a espécie, da mesma forma que é proibido vender pintassilgos porque são animais autóctones. Mas depois remata questionando quantas pessoas não têm pintassilgos em casa e que se for ela a apanhar o ouriço não há mal nenhum, porque é um caso pontual e não crê que haja legislação sobre isso. Completa ainda que consultou veterinários e lojas de animais e ninguém mostrou grande preocupação com o assunto, tendo mesmo um dos donos de uma das lojas afirmado que teria muitos animais destes em casa, só não os podia era vender na loja. Nem sei bem por onde começar, mas sei que vou acabar esta minha intervenção desfazendo todos estes comentários:
- Existe legislação que define a venda e manutenção de espécies autóctones como proibidas. Estes atos são ilegais tanto para quem vende como para quem compra;
- Não se pode ter ouriços autóctones nem pintassilgos (nem quaisquer outros animais selvagens) em casa, e se o vizinho tem 10, não só não nos dá o direito de também ter como, num ato de civismo e respeito pelo ambiente, o deveremos convidar a entregar os animais de livre e espontânea vontade num centro de recuperação de fauna selvagem (ou, mesmo, denunciar o caso às autoridades);
- Se recolher qualquer animal selvagem, ferido ou debilitado, mesmo que seja “um caso pontual”, deverá entrar imediatamente em contacto com o ICNF ou com o SEPNA de modo a que o mesmo seja o mais rapidamente encaminhado para um centro de recuperação de fauna selvagem, não o mantendo em sua posse mais tempo do que o estritamente necessário;
- Todos os profissionais que trabalham com animais (de estimação, exóticos ou selvagens) ou que possam eventualmente ter que lidar com casos destes (como os responsáveis pelos sites de vendas online) devem estar devidamente informados sobre estes assuntos de modo a não só não praticarem crimes como também a não incentivarem a sua prática a terceiros;
- Se detetar qualquer acto ilícito contra a vida selvagem, seja a venda online, a manutenção em cativeiro ou qualquer outro meio de perseguição da fauna protegida, entre de imediato em contacto com o SEPNA-GNR (sepna@gnr.pt | SOS Ambiente e Território – 808 200 520 | Formulário online) e ceda todas as informações pertinentes. O trabalho das autoridades, tantas vezes questionado ou criticado pelos particulares (umas vezes com mais razão do que outras…), pode ser agilizado e melhorado com o apoio de todos!
Liliana Barosa Bióloga, Técnica da LPN – Liga para a Protecção da Natureza