Se o nome desta ave se baseasse em primeiras impressões, seria mais apropriado chamar-lhe algo como raio azul do que guarda-rios (Alcedo atthis). Isto porque o cenário mais habitual de contacto com esta ave é apercebermo-nos de que algo foge rapidamente de nós voando baixinho, sendo ainda possível ver o azul brilhante das penas do dorso e da cauda. Só com mais sorte e/ou persistência é que conseguimos ver um guarda-rios pousado num ramo, esperando pacientemente que um peixe ou outro organismo aquático como um crustáceo ou um inseto se torne a refeição seguinte.
O guarda-rios também pode ocorrer junto a águas salobras ou salgadas junto à orla costeira, embora tal seja raro durante a época de reprodução. Esta ave é comum em Portugal Continental, e a sua distribuição inclui parte da Europa, norte de África e Ásia. Aliás, as suas belas penas foram outrora usadas como adornos de chapéus e joias em vários países europeus e asiáticos. Curiosamente, algumas destas penas são vistosas não pela sua cor, mas pela sua estrutura – é esta que condiciona o modo como a luz do sol é refletida, tornando-as muito brilhantes. E como isto quer dizer que esses chapéus e joias perderiam parte do seu interesse quando estivessem à sombra, suspeito que estes ornamentos estariam bem iluminados quando eram apresentados aos clientes.
Não é por acaso que esta ave é tão bem-sucedida a caçar dentro de água. Por exemplo, os seus olhos têm fotorrecetores que podem funcionar como um filtro polarizador, o que permite eliminar os reflexos da água e ver melhor o que se passa no mundo subaquático. Mas também têm duas fóveas em cada olho, o que deve dar muito jeito. Passo a explicar. Uma fóvea é uma zona dentro do olho onde se formam as imagens mais nítidas devido à grande concentração de fotorrecetores. Assim, utiliza a fóvea mais próxima do bico quando está fora de água, usando a segunda fóvea para ver dentro de água. Portanto, enquanto nós demoramos uma eternidade a pôr uns óculos de mergulho (“epá, estão muito apertados”; “olha, agora ficaram embaciados”), o guarda-rios faz o mesmo enquanto o diabo esfrega um olho.
Uma vez que os peixes conseguem sentir as vibrações resultantes da sua entrada na água, o guarda-rios prefere capturar presas que estejam mais próximas da superfície. Depois de capturar um peixe, usa o bico para o atirar com força contra uma superfície dura, como se fosse uma lavadeira a bater com a roupa nas pedras do rio. E quando a sua presa está atordoada ou morta, é engolida pela cabeça, para não haver problemas com espinhas ou escamas.
No entanto, durante a época de reprodução que se inicia em abril, é possível ver machos de guarda-rios com peixes no bico que estão prontos para serem engolidos pela cauda. Como é que isso se explica? Como uma manobra para conquistar fêmeas. É uma prenda. Portanto, enquanto nós nos vestimos bem, pomos perfume, fazemos convites para eventos culturais e uma série de outras coisas, os guarda-rios são bastante mais pragmáticos, precisando apenas de um peixe para seduzir uma fêmea. Pode não ser tão romântico como oferecer um ramo de flores, mas é certamente mais nutritivo.
Os guarda-rios nidificam em buracos escavados em barreiras de terra, geralmente próximas de linhas de água. Demoram cerca de 20 dias a incubar os ovos, e as crias começam a voar quando têm entre 23 e 27 dias de idade. Estudos feitos dentro e fora de Portugal indicam que os juvenis desta espécie podem fazer grandes movimentos de dispersão. Para além disso, e apesar de serem maioritariamente residentes em Portugal, há também casos de guarda-rios anilhados noutros países europeus que foram recapturados no nosso país, o que indica a existência de populações migradoras.
Mesmo que nunca tenha a oportunidade de ver um guarda-rios no seu habitat natural, é possível admirar a sua beleza e graciosidade numa televisão ou num computador perto de si. E isso sempre é melhor do que contemplar apenas umas penas desta ave em chapéus e joias antigas. Especialmente se estiverem à sombra…
Referências bibliográficas:
- Catry, P. et al. 2010. Guarda-rios. Alcedo atthis. In: P. Catry et al. Aves de Portugal. Ornitologia do Território Continental: 552-555. Assírio & Alvim, Lisboa.
- Feith, H. 2008. Guarda-rios. Alcedo atthis. In: Equipa Atlas. Atlas das Aves Nidificantes em Portugal (1999-2005): 296-297. Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Parque Natural da Madeira e Secretaria Regional do Ambiente e do Mar. Assírio & Alvim, Lisboa.
- Heneberg, P. 2004. Soil particle composition of Eurasian Kingfishers’ (Alcedo atthis) nest sites. Acta Zoologica Academiae Scientiarium Hungaricae 50 (3): 185-193.
- Schwab, I.R., Hart, N.S. 2004. Halcyion days. British Journal of Ophthalmology 88(5): 613. http://bjo.bmj.com/content/88/5/613. Download a 16/10/2013.
- Stavenga, D.G. et al. 2011. Kingfisher feathers-colouration by pigments, spongy nanostructures and thin films. Journal of Experimental Biology 214 (23): 3960-3967.
- Vilches, A. et al. 2013. An experimental evaluation of the influence of water depth and bottom color on the Common kingfisher’s foraging performance. Behavioural Processes 98: 25-30.
- Vilches, A., Miranda, R., Arizaga, J. 2012. Fish Prey Selection by the Common Kingfisher Alcedo atthis in Northern Iberia. Acta Ornithologica 47 (2): 169-177.