Planear o uso do mar não é um conceito novo. É um processo que teve início há quatro décadas, primeiro com o zonamento de áreas marinhas da Grande Barreira de Coral, na Austrália, e uns anos mais tarde nas águas marinhas da China. Desde então, e em especial nos últimos 15 anos, os processos de “ordenamento do espaço marinho”, como são mais conhecidos, expandiram-se por todo o planeta. Presentemente, são mais de 70 as nações costeiras e territórios com planos do oceano em desenvolvimento, desde regiões tropicais a regiões polares, e em todas as bacias oceânicas.
E porquê esta expansão? O ordenamento do espaço marinho é uma forma de organizar o uso do mar, no espaço e no tempo, identificando onde é que as atividades marítimas – tais como a pesca, o transporte marítimo, ou a produção de energias renováveis – se devem localizar. Tem por objetivo minimizar conflitos entre usos, minimizar pressões ambientais, e maximizar benefícios ecológicos, económicos e sociais simultaneamente. É por esta razão, por promover uma visão holística e integrada do uso do mar, com base nos três pilares da sustentabilidade, que o ordenamento do espaço marinho é reconhecido mundialmente como um instrumento fundamental para alcançar o Objetivo 14 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas: “Proteger a Vida Marinha”. É também um instrumento essencial para promover uma economia azul sustentável, e para assegurar a manutenção de um oceano “saudável”.
São, no entanto, ainda vários os desafios que circunscrevem o desenvolvimento de planos do oceano. Dificuldades na mobilização de atores locais para processos de participação e cogestão, questões institucionais e políticas que determinam a (não) aprovação de regulamentos e planos, ou limitações na existência de informação espacial sobre sistemas socioecológicos marinhos (em especial em países em desenvolvimento), são alguns dos principais desafios. Para além de todos estes, e com um potencial profundo para os amplificar, encontram-se as alterações climáticas.
Os efeitos das alterações climáticas no oceano – tais como o aumento da temperatura, a acidificação, ou a perda de oxigénio – estão a alterar as condições biofísicas do mesmo, levando a uma redistribuição dos bens e serviços que o oceano nos proporciona. Por exemplo, muitas espécies marinhas estão a sofrer alterações na sua distribuição geográfica, movimentando-se em direção aos polos ou para camadas mais profundas do oceano. Outras estão “simplesmente” a desaparecer (como é o caso dos recifes de coral na Austrália). Verificam-se ainda novos padrões de circulação de ventos e correntes, a intensificação de tempestades e furacões, ou a subida do nível médio do mar. Consequentemente, as atividades marítimas que dependem dos bens e serviços do oceano vão sofrer mudanças na sua distribuição espacial e temporal, juntamente com aumentos ou diminuições de intensidade. Surgirão novos conflitos entre usos, bem como entre usos e o ambiente. Um bom exemplo é o Ártico, onde a perda de gelo marinho está a possibilitar a expansão de atividades humanas em áreas previamente inacessíveis (como a pesca comercial, o transporte marítimo, ou a mineração do fundo do oceano), causando novas pressões ambientais e novos conflitos com espécies protegidas e comunidades locais dependentes das mesmas.
Para responder a estes desafios, o ordenamento do espaço marinho tem necessariamente de se tornar mais flexível e dinâmico (e, não obstante, continuar a providenciar segurança jurídica aos investidores e utilizadores do mar). O desafio é complexo e não existirá nunca uma resposta única. Mas, se por um lado o planeamento do oceano está vulnerável aos efeitos decorrentes das alterações climáticas, por outro, pode desempenhar um papel extremamente preponderante na criação de soluções.
Ordenamento do espaço marinho “climate-smart”
Num oceano em constante mudança, é vital desenvolver um ordenamento do espaço marinho que seja climate-smart, ou seja, “inteligente” do ponto de vista climático. Este é um tópico em voga, de elevada relevância no contexto internacional, tanto no seio da comunidade científica como a nível político. Muito recentemente, a iniciativa Global Compact das Nações Unidas lançou um relatório que reconhece que, por forma a cumprir os requisitos do Acordo de Paris, e limitar o aquecimento global da temperatura a 1,5°C, existe uma “necessidade urgente de assegurar que o ordenamento do espaço marinho é inteligente em termos climáticos”. Para além deste relatório, apresentado em Glasgow durante a 26.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), foram também lançados em 2021 um documento de políticas elaborado pela UNESCO no âmbito da iniciativa MSPglobal, e uma ficha informativa do Banco Mundial no âmbito do programa PROBLUE que se dedicam exclusivamente ao desenvolvimentos de planos do oceano climate-smart.
Mas, na prática, o que é que isto significa? Um planeamento do oceano climate-smart é, por definição, aquele que tem a capacidade de integrar informação sobre os impactos das alterações climáticas, que é flexível e possui mecanismos para se adaptar aos efeitos das mesmas, e, sobretudo, que suporta a implementação de medidas e ações de adaptação e de mitigação.
Desenhar e implementar medidas de mitigação e de adaptação às alterações climáticas através do ordenamento do espaço marinho é uma oportunidade ímpar e de grande potencial. No que respeita a medidas de adaptação (isto é, medidas que promovem o ajuste dos sistemas naturais e humanos por forma a maximizar benefícios e reduzir impactos negativos), o ordenamento do espaço marinho começa por providenciar uma abordagem integrada e intersectorial, abordagem essa que é fundamental para assegurar uma visão holística das áreas marinhas a gerir. Essa visão “global” é uma componente chave na identificação de medidas de adaptação, uma vez que só assim é possível assegurar que medidas desenhadas para um setor não são contraproducentes para outro. O planeamento do oceano contribui também para uma maior resiliência dos ecossistemas marinhos através da diminuição de pressões humanas não climáticas (tais como a poluição, a sobrepesca, ou a perda e degradação de habitats), reduzindo os efeitos cumulativos entre estas e as alterações climáticas. Pode também contribuir para o aumento da resiliência dos ecossistemas através da designação de áreas marinhas protegidas para conservar espécies e habitats importantes, ou através da identificação e proteção de “refúgios climáticos” (estes últimos correspondem a áreas marinhas onde as condições ambientais são mais estáveis, ou que sofrem alterações mais lentamente, sendo por isso menos impactadas pelas alterações climáticas e funcionando assim como um refúgio natural para os organismos marinhos). Um ordenamento do espaço marinho climate-smart encerra ainda a (imensa) oportunidade de contribuir para uma maior literacia do oceano, promovendo a participação de atores locais na identificação e implementação de soluções, alertando-os para os efeitos das alterações climáticas, e capacitando populações humanas (em especial, comunidades locais) e, dessa forma, aumentando a sua resiliência social.
No que respeita a medidas de mitigação (isto é, medidas que contribuem para reduzir a concentração de dióxido de carbono e outros gases de efeitos de estufa na atmosfera), uma das contribuições mais diretas do ordenamento do espaço marinho é a definição de novas áreas marinhas para a produção de energia renovável (vento, correntes ou ondas). No entanto, esta está longe de ser a única abordagem. Através da atribuição prioritária de licenças a atividades marítimas que utilizam tecnologias ecoeficientes, bem como fontes de energia que tendem para “zero emissões” (por exemplo, novas hélices baseadas em energias renováveis, ou combustíveis e sistemas de propulsão alternativos), o planeamento do oceano pode também contribuir para minimizar a emissão de gases de efeitos de estufa. Em última instância, pode mesmo interditar determinadas áreas a actividades com níveis de emissão mais elevados. Uma terceira abordagem através da qual o ordenamento do espaço marinho pode contribuir para a mitigação das alterações climáticas diz respeito à definição de áreas para a captura e armazenamento de carbono. Estas podem corresponder a áreas para a proteção ou restauração de ecossistemas de “carbono azul”, isto é ecossistemas marinhos e costeiros que sequestram e armazenam grandes quantidades de dióxido de carbono da atmosfera – tais como os sapais, os mangais, as florestas de Kelp, ou as pradarias de ervas marinhas. Mas podem também dizer respeito a áreas para o desenvolvimento de outras iniciativas de captura e armazenamento de carbono, tais como a produção em larga escala de algas marinhas, a fertilização com ferro, ou abordagens químicas e eletromagnéticas.
Por forma a desenvolver processos de ordenamento do espaço marinho verdadeiramente climate-smart é primeiramente necessário considerar e integrar informação climática. É essa integração que irá permitir o desenho de planos “não míopes”, ou seja, planos que conseguem ter uma visão integrada e de longo-prazo (mais “distante”) sobre o uso do oceano. Isto pode ser alcançado através da utilização de ferramentas de modelação e de mapeamento para identificar as áreas marinhas onde são esperadas maiores mudanças espaciais e temporais nos serviços dos ecossistemas e nas atividades humanas que deles dependem. Podem também ser utilizadas análises de risco e de vulnerabilidade para identificar não as áreas onde ocorrem as maiores mudanças, mas onde essas mudanças têm maiores consequências – sejam estas ambientais, sociais, económicas, políticas, ou uma mistura de várias. Os resultados destas análises são posteriormente integrados no desenvolvimento de cenários territoriais ou na criação de “visões” para diferentes áreas marinhas, antecipando novos conflitos e novas oportunidades, e dessa forma suportando processos de tomada de decisão mais informados.
Por fim, um ordenamento do espaço marinho inteligente em termos climáticos tem necessariamente de ser capaz de se adaptar, de ser flexível e dinâmico para lidar não só com as mudanças previstas, mas também com a incerteza associada à magnitude e extensão que os efeitos das alterações climáticas irão ter no oceano durante as próximas décadas. Uma das abordagens mais em voga é a gestão dinâmica do oceano. Através do uso de informação quase em tempo real (por exemplo, dados de satélite), são designadas áreas marinhas cujos limites são dinâmicos, mudando no tempo e no espaço (por vezes, à escala diária) em resposta às alterações nos ecossistemas e nos usos do oceano. Outra forma de promover flexibilidade no planeamento do oceano é através de um “zonamento antecipado”. Aqui, são designadas áreas a priori para o desenvolvimento (ou exclusão) de certas atividades marítimas em antecipação aos efeitos das alterações climáticas (por exemplo, fecho de áreas no Ártico à pesca comercial em antecipação à perda de gelo marinho, ou designação de zonas preferenciais para extração de areias na Holanda em antecipação à necessidade de acções de proteção costeira devido à subida do nível médio do mar). Outras abordagens mais “tradicionais” incluem a gestão e a governança adaptativas, onde as decisões de planeamento são continuamente revistas e adaptadas com base nos resultados obtidos através de processos de avaliação.
Num momento em que a discussão em torno dos efeitos das alterações e dos impactos das mesmas no oceano continua a ganhar ímpeto, assegurar o desenvolvimento de planos do oceano inteligentes em termos climáticos é mais relevante do que nunca. Um ordenamento climate-smart é crucial não apenas para alcançar os compromissos climáticos globais feitos na COP26, mas também para possibilitar o desenvolvimento de soluções sistémicas, transformadoras e sustentáveis. Só assim será possível assegurar que os planos do oceano se mantêm viáveis, efectivos e úteis num contexto de mudança, e, dessa forma, garantir o desenvolvimento de uma economia azul sustentável e a conservação da biodiversidade.