Quando, em novembro de 2003, entrevistámos Carla Bruni na sua casa de Saint German des Près, em Paris, ela era a ex-modelo que tinha gravado um disco de grande sucesso (Quelqu’un M’a Dit vendeu bem mais que um milhão de exemplares só em França). Agora, 15 anos e quatro álbuns depois, é cantora e compositora por direito próprio e o prefixo ‘ex’ passou para outro universo: é ex-primeira-dama de França, estatuto que teve entre 2008 e 2012, depois de se ter casado com o Presidente Nicolas Sarkozy. No momento da sua estreia discográfica vivia com o então jovem filósofo Raphaël Enthoven e na entrevista à VISÃO dizia: “Raphaël é que está na política, é do Partido Socialista Francês, eu não. Até acho que ele se devia candidatar a Presidente, mas isso fá-lo rir”. A vida dá muitas voltas…
“Recebe os jornalistas como se fossem amigos, com uma simpatia contagiante e uma tendência muito italiana para falar, falar muito, sobre tudo”, escrevíamos em 2003.
Neste reencontro, (desta vez num recanto do restaurante Le Murat, com vista para o Boulevard com o mesmo nome) mantém-se a simpatia, discreta, mas essa vontade de falar muito parece ter amainado. Carla Bruni completou 50 anos no passado dia 23 de dezembro e está em plena atividade de promoção do novo disco, French Touch, e com a agenda cheia de concertos (toca em Portugal de 25 a 27 de janeiro, respetivamente no Coliseu de Lisboa, no CAE da Figueira da Foz e no Coliseu do Porto). Já passa das quatro da tarde, o dia está cinzento e chuvoso em Paris, Carla pede desculpa pelo ligeiro atraso “E vivo mesmo aqui ao lado.”. Pousa na mesa do restaurante um kit de cigarros eletrónicos, parece cansada. Tudo muda quando a entrevista é interrompida por Nicolas Sarkozy, lui même, que chega de viagem e, de surpresa, avança na nossa direção.
“Oh mon amour!”, repete Carla, de olhos brilhantes e sorriso permanente. A partir daí, a entrevista precipita-se para o final, mas Carla Bruni fala com mais alegria e entusiasmo. “Olhem para ele, fala com toda a gente aqui!”, diz, olhando com admiração para o ex-presidente que circula, descontraído, por aquela “brasserie chic“.
A escolha das versões que inclui no novo disco, French Touch, é muito eclética canções dos Abba, Clash, Depeche Mode, Lou Reed.. Quando era criança estava muito mais próxima da música clássica, por influência da sua família. Como é que se fez a descoberta e a aproximação à pop e ao rock?
Depois de me mudar para França ouvia muita música clássica, por via dos meus pais, mas rapidamente passei a ouvir também muita música popular, por minha iniciativa. Não era só na rádio, comprava os meus discos, tínhamos muitos discos, de vinil claro. Ouvi todas estas canções que estão no disco quando era teenager e, mais do que isso, tentei tocá-las na guitarra.
O seu quarto de teenager tinhas posters de músicos e bandas nas paredes?
Sim, claro! Dos Clash, dos [Rolling] Stones, do Elvis.
O punk dos Clash e a música clássica que os seus pais tocavam conviviam bem na sua vida?
Sim. Acho que fiz uma espécie de síntese.
Não havia contradição nenhuma.
A raiz deste disco está, então, nesses momentos em que tentava tocar as canções de que gostava na sua guitarra.
Sim, absolutamente.
Este disco só de versões também significa que está com menos vontade de compor?
Não, de maneira nenhuma. Adoro compor.
Foi uma ideia do produtor, do David Foster.
Ele queria um disco só de canções em inglês e eu não componho em inglês já tentei, mas. Portanto, para trabalhar com ele, pensei neste disco de versões. Tudo começou quando o David Foster, diretor da Verve [editora de jazz, pertencente ao grupo da Universal] veio ver um concerto meu, acho que gostou bastante e fez-me uma proposta para trabalhar com ele. Como queria que fosse em inglês, rapidamente lhe propus um disco de versões. Não deixei de compor, estou sempre a compor; tenho muitas canções novas, mas não em inglês.
Deixar de ser primeira-dama foi como uma espécie de libertação para a sua vida artística?
Não propriamente. Sempre me senti livre.
O lado artístico forma-se muito cedo dentro de nós, não é algo que esteja assim tão ligado à realidade da vida de todos os dias. Para mim, a criatividade tem uma ligação direta à infância.
O estatuto de primeira-dama não interferia nesse trabalho artístico, não a incomodava?
Não. Podia incomodar outras pessoas, mas não a mim. Não sou nada sensível a essa história do “estatuto”, estou-me completamente nas tintas para isso.
E sente falta de alguma coisa desse período?
Não, de nada.
Essa experiência de estar casada com o Presidente tornou-a, de alguma maneira, mais política, mais sensível a questões sociais e políticas?
Quando o meu marido era Presidente da República interessei-me mais sobre questões políticas, sim. Fora disso, posso dizer que a política é a coisa que menos me interessa no mundo. Já era assim antes de me casar, e voltou a ser. A política é muito interessante para os jornalistas. São obcecados por política, les pauvres. Nem consigo explicar bem até que ponto esse assunto não me interessa nada. É difícil. Sei que apaixona muitas pessoas. Nasci numa democracia, nunca tive que enfrentar nenhum Salazar.
Ou Mussolini…
Ou Mussolini. O meu pai, sim, esteve nas forças de resistência anti-Mussolini, chegou a receber medalhas por causa disso. A mim esses assuntos interessam-me muito pouco, mesmo. Acho que também tem a ver com o meu temperamento. Vivo numa espécie de bolha, é a minha maneira de ser… A primeira vez que votei foi em 2009, tinha essa obrigação porque o meu marido era candidato.
Antes disso nunca tinha votado. Por indiferença. Tenho esse direito, é-me dado pela democracia.
Mas enquanto era primeira-dama interessou-se um pouco mais, havia um papel a desempenhar, as viagens oficiais…
Interessava-me, sobretudo, pelo meu marido.
Isso não era assim tão importante. Claro que essas viagens, por exemplo, podiam ser muito interessantes e magníficas para mim, mas ele é que foi eleito, o Presidente é que era importante e tinha um trabalho a fazer.
Em casa falam muito sobre política?
Nunca. E quando ele era Presidente também não. Falamos de tudo, mas a política não é, de certeza, um dos nossos temas favoritos.
Pelo contrário, quando o meu marido chegava a casa à noite tentava ajudá-lo a repousar, dar-lhe alguma tranquilidade, víamos um bom filme, por exemplo. Ele não se mete na minha música, eu não me meto no seu trabalho. Ele tem confiança no que eu faço e eu tenho total confiança no que ele faz. Aliás, sempre que votei, votei nele.
Havia a ideia de que se situava, politicamente, à esquerda do seu marido.
Sei lá. É-me igual. Mas não sou certamente da esquerda francesa. [Ri-se e faz um sinal de cruz com os dedos, como quem afasta vampiros].
É uma verdadeira cidadã europeia, tão italiana como francesa. Como vê a evolução recente da União Europeia com o Brexit, o crescimento da extrema direita…
É um assunto em que nunca penso. Não estou muito preocupada.
Nem com a extrema direita em França?
Acho que o meu marido era o melhor a combater a extrema direita. Nas eleições europeias de 2009, as primeiras em que votei, a Frente Nacional ficou muito atrás do partido do meu marido, 7% contra 31% se bem me recordo. Havia muito menos extrema direita.
Mas agora não parece ser esse o caso…
Agora já não é nada comigo.
Acha o novo Presidente de França, Emmanuel Macron, inspirador?
É alguém que me parece amável mas o que ele faz ou deixa de fazer não me interessa.
Nasci italiana, tornei-me também francesa com o meu primeiro casamento, mas as bandeiras não me interessam, o destino de Itália interessa-me tanto como o do Canadá, da Inglaterra, de Portugal, da Rússia. Os seres humanos é que me interessam e não os seus países e os seus governos.
Isso é um pensamento político….
Não. Lá está a obsessão que os jornalistas alimentam com a política, chega a ser patético.
Deviam, então, fazer política! A política não é blá blá blá, são as ações. Não são os discursos que contam, é o que fazemos. E é isso que fica. Como dizia Lenine, “Os factos são teimosos”.
E há demasiado blá blá blá hoje, é isso?
Sim, sobretudo nos media! E nos parlamentos também. Aliás, é isso mesmo que se faz nos parlamentos, parler [falar]! [risos].
Mudemos, então, de assunto. O ano de 2017 foi marcado pelo tema do assédio sexual com uma série de denúncias e revelações. A revista Time escolheu, mesmo, as vítima de assédio como figura do ano. Também usou o hashtag #metoo?
Não, não. As denúncias não me inspiram muito, fazem-me pensar em coisas tristes.
Dito isto, claro que esse movimento é muito importante, sobretudo para as mulheres anónimas que sofrem esse tipo de situações.
Eu nunca tive um episódio de abuso ou assédio, talvez tenha tido sorte. Mas para as mulheres, e os homens, que passam por isso, que são humilhados, oprimidos e têm dificuldade em defender-se, o facto de o tema estar agora na esfera pública pode ser uma libertação, dar-lhes a coragem necessária para reagirem.
Por razões que me escapam, há a tendência, nesses casos, para as vítimas se sentirem culpadas, como se tivessem sido elas a provocar tudo, só por serem mulheres, ou mulheres jovens e atraentes. Este movimento pode dar força aos mais frágeis para reagirem. Já é muito bom. Não gosto de denúncias mas os criminosos têm que ser. denunciados.
Para uma mulher bonita como a Carla.
Obrigado, é gentil da sua parte. Já não me sinto nada bonita.
…é sempre fácil ver a fronteira entre sedução e assédio? Palavras que são elogios e palavras que criam desconforto?
Nesses casos tem-se falado mais de assédio, mesmo, que pode ir até à violação. Mas a diferença principal, creio, é que o assédio tem a ver com uma situação de poder, com uma espécie de chantagem. Na sedução há uma situação de igualdade. Pode haver homens mais brutos e mulheres mais. excessivas, mas se não houver uma relação de poder, e de chantagem, não é assédio. Implica um desequilíbrio, a relação de poder no trabalho ou, por exemplo, o caso de um adulto e alguém muito jovem.