José Duarte ofereceu o seu acervo de discos, livros e posters de e sobre jazz à Universidade de Aveiro. O que, por outras palavras, quer dizer: Zé Duarte, o Jazzé, ofereceu a sua vida, a sua paixão maior, para que continue viva. A história deste homem, de 67 anos («e duas filhas músicas!») é feita ao ritmo de improvisos furiosos e apaixonados, que, como na estrutura clássica de um tema jazzístico, voltam sempre a uma frase principal. Depois de 50 anos a divulgar aquilo de que mais gosta, José Duarte é hoje alguém desiludido – mas sem um pingo de arrependimento e sem um vestígio de meias-tintas.
VISÃO: Não se pode falar de si, sem referir a sua grande paixão: o jazz. Como e quando ficou contagiado?
JOSÉ DUARTE: Apanhei o «bichinho»…olhe, não me lembro. A memória mais remota que tenho é a de ter jeito para percutir com as mãos, ao som dos boleros da orquestra do António Machin e daquelas grandes músicas dos anos cinquenta. Mais tarde, no liceu, fui confrontado com o ouvido cinco estrelas do Paulo Gil, que me disse: «Tens de conhecer o jazz.» E levou-me ao Hot Clube de Portugal. Começou aí a minha saga.
Que não foi logo um mar de rosas.
Não, começou com luta. O Hot [Clube de Portugal] tinha, na altura, uns estatutos que só permitiam o máximo de cem sócios. Foi concebido para ser um clube à inglesa, de fim de tarde, de cavalheiros que liam o jornal e falavam de política e tal… O jazz estava em plano secundário. Quando lá cheguei – e ainda tenho essa imagem à frente dos meus olhos – estava um grupo de pessoas à volta de uma telefonia, a ouvir o The Voice Of America Jazz Hour, um programa emitido pelos americanos para a Europa, por motivos político-artísticos.
O que aconteceu?
Fui mal recebido. Em lugar de verem um rapaz novo e convidarem-no para se juntar a eles, preferiram a distância. Fiquei mal impressionado.
«Custa-me que me dêem esta atenção só por causa de cinco minutos de jazz», diz José Duarte a propósito dos 40 anos do seu mítico programa de rádio. Mas todos sabemos que estes cinco minutos representam uma vida inteira. Contada aqui, na primeira pessoa
Quem eram esses senhores ?
Bom, o Luís Vilas Boas, a primeira geração do jazz… Eu pertenço à segunda. Mais tarde, acabei o liceu,
sempre a cantar com o Paulo e a despertar para o jazz.
A cantar?
Como o Louis Armstrong… Não com a voz dele, mas com as inflexões e o fraseado, comprava os discos e cantava por cima. Um belo dia – isto até parece um filme – entro na pastelaria Cister, ali à Rua da Escola Politécnica, olho para o chão e estava um papel que dizia: «Se és universítário» – que não era – «se gostas de jazz – não gostava, porque não conhecia – «não faltes a uma sessão fonográfica, na Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico.» Lá fui. Estava lá o dr. Raul Calado, que apresentou o jazz e disse ser sua intenção fundar um clube. Inscrevi-me logo e fui o sócio nº 2 do celebrado Clube Universitário de Jazz.
Bastante diferente do espírito do Hot…
O oposto. O Hot tinha cem sócios, no máximo. Nós, em três anos, tivemos 2 mil. Mais tarde, foi selada a porta
pela PIDE, com muita razão: eles diziam que o clube estava cheio de comunistas, e estava. E não só… Estavam lá figuras como o ex-Presidente Jorge Sampaio, os líderes dos movimentos de libertação das ex-colónias… Mas como há sempre um polícia bom, um deles avisou-nos para tirarmos o que lá tínhamos porque, no dia seguinte, iriam fechar-nos a porta e levar tudo.
Acabou o sonho, nessa altura, embora a divisão entre dois grandes grupos se tenha mantido: o do Hot, com uma tendência mais académica e branca, e do do Clube Universitário, mais entertainment inteligente e com uma atitude negra, em relação ao jazz.
Mas havia sempre uma componente política no jazz, até porque é uma música livre. Sobretudo nessa altura, sob um Governo autoritário.
Sim, era uma afirmação política, uma resistência. E eles tinham razão: numa altura em que se combatiam
negros, em África, o regime não podia autorizar que se dissesse bem da cultura negra, em casa. O jazz, por
tradição e até por obrigação estética, é uma música do contra, não pode estar ligada ao poder.
Participou nalgum movimento ou organização, nessa altura ? Estou a lembrar-me de uma célebre foto, logo a seguir ao 25 de Abril, em que surge de punho erguido, ao lado do José Mário Branco, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira…
Bom, a história vem de antes. Eu era funcionário da TAP e ia muitas vezes a Paris ter com o Zé Mário [Branco] e ajudá-lo a passar discos para Portugal. Essa foto foi tirada quando o fui esperar ao aeroporto, no seu regresso do exílio. No mesmo avião, viajava o Álvaro Cunhal, e o Jaime Neves – o representante do MFA que vinha receber o Cunhal – perguntou aos funcionários, entre os quais eu: «Alguém conhece o dr.Cunhal?»
Disse que sim, que já o tinha visto…E lá fui com o Jaime Neves, no autocarro, receber o Cunhal, que apareceu com aquele ar histórico que conhecemos…Há fotografias que eu guardo, de nós a descermos a escada do avião, comigo a explicar-lhe que não tinha nada contra o MFA, antes pelo contrário, mas que tinha sido usado por aquele senhor que ali estava, e que era o Jaime Neves. Mas fui o primeiro a dar-lhe as boas-vindas a Portugal. Depois, fiquei junto do avião e vim com o Zé Mário, que tinha essa malta toda à espera. Juntei-me a eles e cantámos a Grândola.
Esses tempos foram para si de esperança,de euforia.
Eram tempos de luta. Hoje, são tempos de desistência.
Sente-se desiludido? O que aconteceu?
Ou o que não aconteceu, talvez. Houve uma grande esperança, houve uma grande desilusão. Mas houve muita coisa boa, particularmente no jazz: criaram-se escolas, vendem-se discos, há músicos, há liberdade, há revistas, a rádio presta atenção ao jazz… Mas ainda estão por conquistar a televisão e a imprensa diária. É inconcebível que assim seja, porque, desde os anos 90, que se verifica um boom de concertos e público. Só falam dos músicos, quando eles morrem, ainda há pouco tempo me pediram para fazer um comentário sobre um músico que tinha morrido. Eu não sou nenhum cangalheiro, falem deles enquanto estão vivos!
Por que é que acha que isso acontece?
Nisso sou muito radical: nestes 50 anos, a única vitória que houve foi a conquista de respeito. Porque a ignorância continua. Antigamente, usar barba era já uma provocação. Andava à pancada, diariamente,
chamavam-me porco, comunista, cubano…Tenho cartas e postais a chamarem-me racista, amante dos batuques, amigo dos pretos, contribuinte para a «desunião nacional»… Isto hoje é inaudível, mas existe, está
latente, como o racismo. E, depois, há as tais contradições: cientistas, arquitectos e artistas de topo a que
quase ninguém liga, mas que cá trabalham… Olhe, se não me pergunta, eu digo-lhe: custa-me que me dêem
esta atenção só por causa de cinco minutos de jazz. Isto é ridículo, é impensável, em qualquer país civilizado:
um programa com genérico, fecho e pelo meio um bocadinho de jazz. Aliás, quando o programa começou,
em Fevereiro de 1966, era chamado de «rubrica»
É nesse triste estado que vê Portugal ?
Os portugueses continuam a portar-se mal: a roubarem, a poluírem os negócios… O sistema capitalista não é
exactamente o da minha preferência. Isto não é a minha maneira de viver, e vou para a cova triste. Ou, então, que haja outro 25, num mês qualquer que não seja Abril.
Disse-me que se ganhou respeito pelo jazz. E conhecimento?
Lá está: há mais público, mas não existe público de jazz, existe público de salas: o do CCB, o da Gulbenkian, o do Hot, o da Culturgest…E, depois, nenhum frequenta a outra. E eu, que vou a quase todos os concertos, não
me lembro de nenhum que não tenha tido dois ou três encores, o que não faz sentido, nem todos os concertos são bons. Eu tenho uma explicação para isso, meio a brincar: o público faz as contas, e quanto mais ouvir numa noite mais barato fica! [risos] Os próprios músicos percebem que não há conhecimento, isso vê-se do palco.
Não sente que o jazz está na moda?
Sim, sim. Tal como esteve nos anos 60. As pessoas consomem, quer gostem quer não.
Mas, por outro lado, os músicos portugueses produzem com uma excelente relação de qualidade e quantidade.
Isso é verdade. Mas, depois, ninguém os convida, os festivais preferem trazer os estrangeiros, porque, dizem, são tão caros como os nossos. Por outro lado, gravam pouco e vão muito pouco ao estrangeiro. Claro que os melhores alcançaram algum reconhecimento lá fora, mas não o que deveriam ter. Continuamos a ser consequência do País que somos. E nunca tivemos a sorte de um grande músico de jazz se apaixonar
por Portugal como outros países europeus tiveram. O jazz aprende-se muito pela tradição oral, a tradição
africana.
O José Duarte não tem qualquer formação musical, para além desse jeito para a percussão?
Vou-lhe responder como o Zé Mário me disse para responder: eu não tenho nenhuma formação, mas fiz duas
filhas, e uma é pianista e a outra flautista. [risos]
Mas sabe que os divulgadores e os críticos têm esse papel ingrato. Lembro-mede uma célebre frase do Frank Zappa, que dizia que «escrever sobre música é como dançar sobre arquitectura»…
Tenho duas opiniões: a primeira é que eu sou, basicamente, um coleccionador de discos, e os bons ouvintes de música são essenciais. Considero-me um bom ouvinte.
A outra é que «saber música» é uma expressão malandreca. Os académicos não sabem música. Eu sei. Há tipos que conhecem as claves e as notas, e pronto, sabem música. Há outros que têm sensibilidade, e sabem música. Veja o caso do Armstrong, por exemplo, que não distinguia uma porta de uma clave de sol.
Na sua já longa viagem, qual foi o momento que mais o sensibilizou, de que nunca se irá esquecer ?
Foi quando o Armstrong me convidou para ir viver com ele. Veio cá tocar, em 1961. Eu trabalhava na TAP e fui recebê-lo ao avião. Andei quase sempre com ele, e tive uma atitude de conquista cautelosa. Nunca lhe falei de jazz, mas procurei que ele soubesse que eu sabia de jazz e em particular da obra dele. Ficou muito meu amigo. Juntei o meu dinheirinho e comprei uma garrafa do melhor vinho do Porto, para lhe oferecer à despedida. Fui até às escadas do avião, nervoso, e deixei cair a garrafa – não se partiu. O homem riu-se e disse para ir ter com o agente dele cá, que me daria um bilhete de ida e volta para Nova Iorque e depois para Corona, onde vivia com a mulher. Mas «no pocket money, baby»! [risos] Eu era um miúdo, e não fui. Perguntei-me, durante muito tempo, se fiz bem ou mal. Acho que fiz bem. Fiz mais pelo jazz aqui do que alguma vez poderia ter feito noutro lugar.