Chegámos à cidade cor-de-rosa ao final da tarde, depois de percorrer a costa, rumo ao norte do país. Os corpos acusavam o cansaço, a vontade pedia boa cama e boa mesa. Essaouira tinha-nos aberto o apetite e Marraquexe correspondeu e superou todas as expectativas.
É o sítio mais conhecido e divulgado de Marrocos e o destino mais procurado pelos turistas. Razões bastantes que justificam o perfil e ordenamento da urbe, muito diferentes da realidade espelhada noutras cidades do país. Avenidas mais bem rasgadas, trânsito mais organizado, esplanadas espaçosas e construção nova e de qualidade.
Mas é na Medina que tudo acontece. A praça Jemaa el-Fna, o epicentro da vida noturna da cidade, é local de passagem e um lugar obrigatório para ver, sentar e comer. O movimento fervilhante de turistas, polícias e vendedores ambulantes é contagiante e irrecusável. É impossível atravessar Jemaa el-Fna sem parar e respirar aquela atmosfera confusa de ruídos e cheiros intensos e inesquecíveis.
A praça imensa é ocupada por muitas barraquinhas e toldos brancos, onde estão instalados vários restaurantes e pontos de petiscos. Foi lá que jantámos pouco depois de assentar arraiais num ryad ao virar da esquina. Ao longe já se avistavam os incontáveis fios de lâmpadas que iluminavam o frenesim de pessoas, comida e vapores de cada estaminé. Pelo caminho cruzámo-nos com artistas, pintores, malabaristas, videntes, percussionistas e contadores de histórias. Não faltavam encantadores de serpentes e domadores de pequenos macacos vestidos com roupas de bebé.
Para além de tudo isto, existem várias bancas pejadas de laranjas onde se pode beber sumo fresco e saboroso a preço de saldo. É uma arma que ajuda a combater o calor que assola a cidade e um bom aditivo para recarregar baterias depois da exaustão. A par das laranjas, também os frutos secos marcam presença destacada. O cheiro do figo, passas, tâmaras e sultanas é irresistível e atraiçoa os mais sensíveis.
Entrámos no novelo de restaurantes ambulantes e fomos assediados imediatamente pelos vários empregados caça-clientes. Todos nos perguntavam de onde vínhamos, todos sorriram quando respondemos “Portugal”. Atravessámos toldos e toldos sem fim, até conseguirmos descobrir uns lugares vazios. Sentámo-nos de frente para o cozinheiro, que confeciona os pratos e petiscos sob o olhar atento e curioso dos clientes e dos mirones que esperam por lugar. Não há paredes, barreiras nem proteções e o espetáculo gastronómico acontece em direto, ao vivo e a cores. Seria muito difícil descrever ordenadamente o roteiro de sabores que fizemos nessa noite, mas houve certas iguarias que nos ficaram na memória.
Saboreámos e repetimos sopa com cominhos, que nunca mais voltámos a comer, desde então. Petiscámos mais do que uma vez taças e taças de caracóis e caracoletas, cozinhados aos montes e envoltos num molho especial. A confeção é um pouco diferente da que estamos habituados a provar em Portugal, talvez por causa do tempero e da pitada de cominhos.
Os cozinheiros dividem protagonismo com os pratos, preparados à vista de toda a gente. Vão dialogando com quem passa e explicam o que fazem e com o fazem, numa alquimia de ingredientes e temperos sem fim. O cheiro das especiarias, o som do borbulhar dos cozinhados, o barulho das colheres de pau a girar nas grandes panelas de metal e o peixe frito crocante, que estalava a cada trinca, são melodias que jamais iremos esquecer. É certamente a banda sonora que guardámos de Marraquexe.
Depois das entradas perdemo-nos com uma cabeça de cordeiro e marisco grelhado. Pudemos comer com satisfação sem pagar muito dinheiro. Marraquexe lançou-nos uma feitiço com sopas e descanso e nós deixámo-nos seduzir por aquela cidade cor de rosa.
Podíamos ter escrito e falado sobre muitas outras coisas. Nenhuma nos marcou tanto, como aquela praça e o que ela guardava. Marraquexe são muitas cidades dentro de uma só mas Jemaa el-Fna é o coração que as une de forma inequívoca.