Acordámos tão exaustos como quando nos deitámos. A noite tinha sido difícil, mal dormida e o amanhecer trouxe de volta o calor desarmante, característico do deserto. Já não restavam mais gotas no fundo das garrafas de plástico, que entretanto guardámos connosco e era percetível a desidratação que tomava conta de nós, pouco a pouco.
Não se via vivalma na rua e os estabelecimentos só começaram a abrir portas ao final da manhã. A partida para o deserto ficou marcada para as sete da tarde. Era imperativo arranjar maneira de encontrar um escape, um refúgio, fosse o que fosse, qualquer coisa que nos permitisse sobreviver ao sol implacável, até que nos perdêssemos pelas dunas do Saara, já ao final da tarde.
No desespero, deu-se finalmente a aparição. Julgávamos que fosse apenas uma ilusão ótica, mas “Fátima” estava mesmo lá e resolveu o nosso problema. A guesthouse, mesmo nas traseiras do albergue onde nos encontrávamos, tinha restaurante e uma piscina no pátio interior. Ignorámos a sujidade das águas paradas e mergulhámos vezes sem conta para que nos pudéssemos camuflar da secura da atmosfera e altas temperaturas que se faziam sentir.
À hora marcada partimos em direção ao deserto, sempre presente, mesmo ali ao lado. Cada um teve direito ao seu respetivo camelo, atribuído de acordo com o peso de cada “tripulante”. Calhou-me o animal mais velho e carrancudo, com pelo mais escuro e meio grisalho no focinho. O João partiu à cabeça da comitiva, eu seguia logo a atrás e o António encerrava o cortejo. Os camelos seguiam alinhados, presos uns aos outros, com uma corda verde que garantia passadas a um ritmo sincronizado. Os três animais carregavam os mantimentos necessários para passar a noite no deserto. Ismael fez questão de nos acompanhar na incursão, mas preferiu ir a pé e aproveitou para nos ir tirando fotografias, para memória futura.
Não éramos os únicos a explorar as dunas do Saara. Havia grupos de todas as nacionalidades a fazer o mesmo percurso e as trilhas, bem visíveis na areia, comprovavam que o vaivém de turistas e camelos é intenso e diário. Arrisco dizer que formámos a expedição mais reduzida do dia e quase que posso afirmar, com toda a certeza, que fomos os turistas a negociar a excursão a um preço mais baixo.
O crepúsculo tingiu a areia num tapete cor de laranja a perder de vista e o céu limpo deu o protagonismo da noite à lua cheia que nos iluminou a todo o tempo. As dunas tornaram-se azuis, esbranquiçadas e as temperaturas baixaram naturalmente. Não havia brisa no ar, nem um ruído que quebrasse aquele silêncio absoluto.
Cada grupo tinha sido encaminhado para os seus respetivos acampamentos, quase todos no sopé do conjunto de dunas mais procurado pelos visitantes – Erg Chebbi. É sem dúvidas, uma das joias de areia mais preciosas do Saara, musa de fotógrafos de todo o mundo e um excelente ponto de observação do nascer e pôr-do-sol. Tem mais de 100 metros de altura e as encostas, orientadas a vários ângulos e delimitadas por arestas muito bem definidas, revelam de forma precisa o contraste entre a luz e sombra, durante as várias etapas do dia.
Apenas uma pequena duna separava o nosso acampamento dos camelos que nos tinham trazido até ali. As tendas dispunham-se à volta de um terreiro improvisado. Tudo aquilo era montado e forrado com cobertores e panos de toda a espécie e feitio.
Jantámos sopa com o sabor característico dos cominhos moídos, uma das especiarias mais usadas na cozinha marroquina e repetimos a dose até descobrirmos o fundo do tacho. Ao segundo prato, fomos presenteados com um tajine de cordeiro, que nos soube muito bem e acabámos a refeição com o tradicional chá de menta, que bebemos enquanto conversávamos e fumávamos uns cigarros.
Estendemos cobertores ao ar livre e preparámos o estaminé para passar a noite sem teto. Aproveitámos para caminhar um pouco sobre as dunas circundantes e admirar a beleza das areias e seus relevos, coloridos pelo luar intenso que tivemos a sorte de presenciar. Todos caminhavam descalços mas eu preferi voltar a calçar os ténis, ao recordar-me dos muitos documentários sobre vida selvagem, que já tinha visto na televisão. Não seria inédito se tivéssemos sido surpreendidos por uma cobra ou por um escorpião, a meio do passeio. Estas, como muitas outras espécies que habitam o deserto, aproveitam para caçar durante a noite, enquanto o calor lhes dá tréguas.
Antes da dormida voltámos ao acampamento para ouvir os últimos êxitos musicais de Marrocos, a partir do telemóvel de Ismael. Foi neste clima, que começou a falar sobre si e sobre as vicissitudes da vida, a que já tinha sido posto à prova. Ismael já enfrentou muitos obstáculos e esbarrou com alguns deles. Apesar dos saltos e sobressaltos da sua história, continua a acreditar num futuro melhor, com horizontes alargados e expectativas mais promissoras do que aquelas com que conta atualmente, no meio pequeno onde vive.
E foi nessa busca incessante que partiu para a Europa, com documentos falsos. Atravessou o Mediterrâneo a bordo de uma embarcação a transbordar de conterrâneos espartilhados entre o medo e a esperança.
E ali estávamos nós, em pleno deserto do Saara, a ouvir na primeira pessoa, um testemunho vivo e inesperado, da imigração ilegal, a que se vêm forçados muitos africanos, alguns deles refugiados, em busca de melhores condições de vida. Muitos deles não sobrevivem e morrem a meio do caminho. Alguns dos barcos, que cruzam o Mediterrâneo, acabam por naufragar, de e tão cheios que vão, e há quem não resista ao contágio de inúmeras doenças, propagadas a bordo. Muitas vezes os mantimentos acabam antes de alcançar a costa europeia e muitos dos que embarcam, acabam por sucumbir à sede, à fome e à exaustão levadas ao extremo.
Todos nós já tínhamos lido casos semelhantes nos jornais e revistas, ou visto peças e reportagens, mais alargadas na televisão, sobre este fenómeno-flagelo que afeta muitos imigrantes e refugiados desesperados e que acaba por envergonhar a opinião pública mais atenta.
Ismael deu tudo o que tinha em troca de documentos falsos, apostou a vida ao embarcar rumo à Turquia e enfrentou condições desumanas enquanto trabalhou na construção civil, sem receber quase nada em troca. Ainda conseguiu escapar para a Grécia, mas o sonho durou muito pouco, até que as autoridades o tivessem convidado a sair do país, de volta a Marrocos. A deportação cumpriu-se e o nosso amigo foi forçado a regressar às origens. Até hoje. Ismael não esquece o sofrimento que viveu. Foi agredido e viu muitos dos seus companheiros sofrerem na pele a vulnerabilidade a que tinham sido votados. Voltou para Marrocos de cabeça erguida e com a ideia de que trazia uma história para contar aos seus. Hoje vive em Imilchil, em plena cordilheira do Altas, ajuda o irmão na gestão do Albergue que este possui no centro da vila e guia turistas de todo o mundo pelas escarpas e cumes das montanhas da região. Fala francês, inglês e espanhol, e soma amizades com quase todos os por lá vão passando.
A conversa entre os quatro durou horas e impressionou-nos pelos detalhes e força com que aquele jovem, praticamente com a nossa idade, narrava as memórias que guarda da sua jornada. Dele ficámos e continuamos amigos, esperando que possa vir um dia a Portugal, para que lhe possamos retribuir com a mesma boa vontade e companheirismo, uma visita guiada à descoberta de Lisboa.
Já era tarde e a alvorada, no dia seguinte, aconteceria antes do sol nascer. Dormimos sobre o cansaço que carregávamos connosco, a contemplar aquele céu salpicado de estrelas cintilantes, como nunca tínhamos visto antes. Um embalo anestesiante, sob o silêncio mais absoluto, que alguma vez pudemos experimentar.
Ao primeiro foco de luz, o António saltou do chão e caminhou em direção à duna mais próxima para contemplar o postal em movimento. Acordou-nos e tomámos caminho para testemunharmos aquele momento único do dia. À medida que o sol ia espreitando no horizonte, olhávamos para a Erg Chebbi, onde centenas de turistas aguardavam ansiosamente o nascer do dia.
As dunas voltaram a mudar de cor, a temperatura subia progressivamente e na areia observávamos a dança de sombras, de duna a duna, à medida o sol subia.
Montar camelos durante uma hora de trajeto, não foi das experiências mais agradáveis que vivemos. Foi desconfortável, mas necessário. Retomámos caminho, acompanhados pela leve brisa que ia soprando areia das dunas, até alcançarmos de novo Hassilabied.
As expectativas já se concentravam em torno do próximo destino: Aït-Ben-Haddou. Mal sabíamos nós, das agruras que nos haviam de estar reservadas nas etapas seguintes desta aventura em solo marroquino.