Com a cara ainda parcialmente inchada, saímos da cidade e Karakol com quatro novos amigos quirguizes: um caucasiano e os outros três mongóis. Resolvemos fazer um trekking de 4 dias desde o vale de Karakol até ao vale de Arashan, passando pelo lago Ala Kol, com dois passos acima dos 3 500 m de altitude. Mochilas prontas (mesmo sem impermeáveis, embora não tenha parado de chover nos últimos três dias em Karakol) e equipados a preceito lá fomos nós.
No primeiro dia de trek apanhamos transporte até uma aldeia, onde começamos o nosso percurso. O dia ainda estava bastante nublado e tínhamos receio que começasse a chover a qualquer momento. Começamos a subir o trilho junto ao rio Karakol, juntamente com o nosso guia (que não aparentava ter mais de 15 anos) e os três rapazes quirguizes, dois carregadores (mas a quem só demos 5 kg de bagagem) e um cozinheiro. Começava logo aí, nesse breve percurso, a vislumbrar-se a beleza e encanto das paisagens montanhosas do Quirguistão. O trilho segue o rio ladeado por campos cobertos de erva onde pastam os cavalos e crescem árvores coníferas. Passamos por lagos e meandros mas o sol estava tímido e não queria exibir o esplendor da paisagem. Provavelmente estaria a guardar-se para outros dias. Esperávamos que sim.
Ao fim de três horas de caminho, onde cruzamos ribeiros e subimos quedas de água e rápidos, chegamos a uma ponte de madeira, o nosso “marco” de mudança de direção e indicação de que este seria o local para acampar nessa noite. Arranjamos a tenda, com todo o material e resolvemos dar uma volta para apreciar o vale e o local onde estávamos. Ali bem perto, do outro lado do rio, há um yurt camp, o Karakol Base Camp. Quando voltamos para o acampamento comemos qualquer coisa preparada pelo nosso cozinheiro e resolvemos sentar-nos a ver o sol a esconder-se por trás das montanhas. Também os ratos saíram dos seus buracos para virem apanhar os últimos raios de sol connosco. São giros, parecem hamsters. Quando o sol desapareceu começou a arrefecer consideravelmente.
Estamos a 2500 m de altitude e a noite já é bem fria. Felizmente carreguei durante este tempo todo o meu saco-cama para -20ºC. O conforto bioclimático para mim é essencial. Na montanha sofro imenso com o frio e por isso, sempre que faço trekkings previno-me convenientemente. O meu casaco de penas também me acompanhou durante este tempo todo. Agora aquece-me e deixa-me bastante satisfeita por o ter carregado mesmo enquanto achava ridículo tê-lo trazido para o deserto.
A noite foi fria e húmida. Estamos perto de um curso de água. De manhã acordo toda partida. Para variar (algo que me acontece frequentemente) questiono-me sobre de quem foi a ideia de vir fazer um trek. A resposta é clara: minha! Sempre que passo uma noite na montanha desejo a comodidade de uma cama de hotel. Mas, quando o sol começa a nascer e com ele vou explorando a paisagem tendo a esquecer estes meus momentos de mau feitio. Depois do pequeno-almoço inicia-se a subida. No segundo dia, o trilho é bastante exigente. Começa-se a caminhar a 2500 m e sobe-se sempre de forma bastante inclinada até aos 3500 m. Pelo caminho atravessa-se duas quedas de água magníficas e um pequeno lago. Não há grande tempo para parar até à hora do almoço, algo que só acontece a 3400 m. Para trás há um vale fabuloso. Felizmente o nosso cozinheiro já tinha pronto um pãozinho com queijo, salsicha e chocolates. Tomate e pepino também não faltaram. Tenho a t-shirt encharcada da subida. Tiro-a para a pôr a secar encanto almoço. Quando a volto a vestir sofro… está molhada e fria. Que desconsolo! A subida final até ao lago dá-me novo alento. Tenho grandes expectativas sobre o que vou encontrar lá em cima. Com um desnível de 1000 m de altura desde o acampamento até ao lago e quatro árduas horas de subida contemplo o lago Ala Kol. Que maravilha da natureza. Esqueço-me logo do que me custou subir até aqui, o primeiro passo do dia, a 3580 m. A paisagem é como um analgésico e toma conta da minha mente e do meu corpo. De repente esqueço as dores nas pernas, nos músculos e até a noite mal dormida.
O lago Ala Kol situa-se a 3500 m de altitude e é um lago glaciar proveniente do degelo de alguns glaciares de vale que se encontram a montante. É para lá que vamos. O nosso trilho percorre o lago durante cerca de três quilómetros e depois reinicia uma subida em direção ao segundo passo do dia, o Ala Kol Pass, a 3860 m. Depois de ter subido 1000 m de desnível para chegar ao lago seria de supor que este passo fosse bastante exigente. Na verdade, é-o, mas a grande diferença é que pelo caminho vou demasiado ocupada a ver o vales glaciados (com glaciares) e os vales glaciares (onde os glaciares já desapareceram) e não me canso com as subidas e descidas em torno do lago para alcançar o passo. Entretanto reparo em algo. Olho em frente e vejo uma subida vertiginosa cascalhenta. À frente é o passo a 3860 m. Já falta pouco. Vamos seguir um pouco mais. Se a vista daqui é assim, do cimo devo ter a visão dos deuses.
A verdade é que o passo não desilude. Encontro-me num colo entre duas montanhas e dois vales. Tenho o vale ocupado pelo lago Ala Kol a trás de mim e, à minha frente, o vale Keldike, uma garganta preenchida por moreias e glaciares rochosos. Que paisagem maravilhosa. Sento-me por breves momentos e penso: “é por isto que adoro as montanhas; é por isto que durmo mal, que passo frio, que perco a comodidade da cama do hotel. É por isto. Tenho a certeza.” Respiro fundo, fecho os olhos e deixo-me sentir o momento. Adoro ouvir o vento cá em cima. Só se ouve o vento. Nada mais. O som do silêncio, como ouvi um dia alguém dizer. Adoro o som do silêncio.
Deixando os glaciares de gelo e o lago Ala Kol para trás inicia-se uma descida. Os músculos já estão doridos. Foram sete horas de trekking seguidas. Agora na descida, os músculos a trabalhar são outros mas o cansaço é um novo inimigo. Há um monte de neve mesmo por baixo do passo e por isso temos que o contornar. A inclinação da descida é de loucos. Tento travar e descer devagar mas isso arrebenta-me os joelhos todos. Sendo assim, opto, na parte em que o piso é mais cascalhento, por descer a correr. É mais rápido (apesar de eu não gostar – detesto cenas de herói, especialmente na montanha) e é mais seguro tendo em conta as condições do terreno. Depois de uma hora de descida é altura de montar acampamento na base de uma moreia monumental. Estamos a 3600 m de altitude e a noite prevê-se muito fria e dura. Jantar preparado e comido num ápice. O frio é tanto que é impossível ficar muito tempo a jantar. Só o chá quente permite aquecer o corpo. Eram 20h30m e nós já estávamos deitados e preparados para dormir. Depois de um dia preenchido por 8 horas de caminhada havia que recolher bem cedo.
De manhã levantamo-nos quando os raios de sol inundaram a nossa tenda. O dia de ontem foi abençoado por esta estrela e o de hoje também o seria. Depois do pequeno-almoço tomado, iniciamos a descida em direção ao vale de Arashan. Caminhamos cerca de três horas pelo vale de Keldike, onde subimos e descemos moreias, blocos erráticos e atravessamos rios e riachos. Pelo caminho fizeram-nos companhia os cavalos, as vacas, as ovelhas e as cabras. Os pastores? Não os vimos. Será que ainda dormem?
Este vale é verdadeiramente magnífico. À medida que o vamos descendo a paisagem fica mais verde e começam a aparecer progressivamente as pastagens e depois as árvores. Parece que estamos nos Alpes. Quando alcançamos o rio Arashan temos que inflectir o percurso e seguir agora o curso desse rio até chegar a Altyn Arashan, um povoado com três casas onde existem dois alojamentos que recebem turistas, um local para acampar e umas nascentes termais.
Depois de quatro horas de trekking, a tenda montada e o almoço comido o que poderia cair melhor? A resposta certa só poderia ser uma: um banho nas nascentes termais. E que maravilha! A água é realmente quente. Tão quente que me compensou as noites tão mal dormidas, especialmente a última onde o frio foi tanto que de manhã nem havia água para lavar os dentes. A água do glaciar ainda não tinha começado a derreter por isso não corria água no leito do ribeiro. Quando entrei na água quente esqueci tudo. Esqueci a tenda, esqueci o frio, esqueci as dores musculares e esqueci o desconforto. Que maravilha. Nunca conseguiria aqui exprimir a satisfação de um banho nas nascentes termais de Altyn Arashan depois de 3 dias de trekking e de tanto frio. Ficamos de molho mais de duas horas. Nenhum de nós queria sair. Olhávamos pela porta e janelas, através do vapor que havia no ar, contemplando a paisagem e pensando “não, estamos tão bem aqui”. Mas, tínhamos que sair. Eram horas de jantar e de dormir mais uma vez na tenda.
De manhã bem cedo levantamo-nos e tratamos de carregar tudo. Demos folga completa aos carregadores e transportamos todo o nosso material. Estamos a quatro horas de caminho da aldeia onde termina o trek. Optamos iniciar a descida bem cedo para poder chegar a Karakol por volta da hora do almoço e assim conseguir ainda ir hoje para Koshkor.
O trilho é bastante irregular, ora subindo, ora descendo, mas a paisagem continua maravilhosa. No final do trek despedimo-nos dos nossos companheiros de viagem, todos eles jovens estudantes e que trabalham nas férias de verão de forma a fazerem algum dinheiro para financiar os seus estudos. Para trás ficou uma paisagem fantástica, que tal como um postal, guardarei para sempre na minha memória.
Karakol é o local ideal para se sentir a natureza do Quirguistão. Só longe das cidades, longe da comodidade do hotel, longe do quentinho da cama e do quarto aquecido se pode conhecer a verdadeira beleza deste país. Foi por isso que decidimos que em Karakol estava na hora de ir… Into the wild!