Naquele que escolherei provavelmente como o livro da minha vida (deixemos, no entanto, que ela, a vida, se complete para chegarmos às escolhas definitivas), As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, é descrita uma cidade em que os mortos repetem debaixo de terra a vida dos vivos.
O quotidiano, os ofícios e ocupações, as relações sociais, a própria cidade, tudo o que pertence à superfície e ao presente continua a sua existência nesse plano subterrâneo e nessa outra dimensão do tempo que é a Eternidade. No entanto, não fica claro da descrição se essa cidade dos mortos recebe turismo de outros mortos de outras cidades.
Descrevendo cidades que, aparentemente, são impossíveis de concretizar, mas que um Marco Pólo prodigioso assegura a um certo imperador Kubilai Cão ter visitado, o livro de Calvino tem a capacidade de me espicaçar a fantasia por todos os lugares que ainda não vi. E porque nunca os vi, tenho a liberdade de os imaginar como gostaria que eles fossem. O livro As Cidades Invisíveis é uma forma de libertação da vida sedentária que todos levamos.
Quando, por fim, chegamos a uma cidade que desconhecíamos, a nossa liberdade acaba. Somos obrigados a confrontar a ideia de cidade que era nossa, com a visão da cidade real. Por vezes, aquilo que encontramos supera a nossa expectativa, e gostamos; outras vezes, está aquém, e ficamos desiludidos. Isto para as cidades dos vivos, as cidades do tempo presente, as que estão à superfície e à frente do olhar. Há, no entanto, outra dimensão das cidades onde nos é permitido continuar a idealizá-las em liberdade: o seu passado. Na nossa imaginação, reinventamos a nosso gosto os imensos quotidianos que antecederam este, que hoje testemunhamos no presente. O lugar desses outros quotidianos, tal como sugeria Calvino nas páginas do seu livro, é a Eternidade.
Talvez por esta reflexão que acabo de expor eu goste tanto de visitar cemitérios. Apesar de não serem lugares indicados para viajantes dados à depressão, o que me parece um paradoxo (é lá possível andar deprimido em viagem!), os cemitérios têm uma serenidade e um silêncio que, geralmente, são bem-vindos para servir de contraponto ao excesso de informação e de sociabilidade que quase sempre domina o dia a dia de uma viagem. Por outras palavras, permitem uma espécie de pausa para reflexão no meio do ritmo agitado que é a vida de viajante.
Alguns cemitérios tornam-se mesmo atração turística, pelas mais variadas razões. A monumental escultura funerária do Staglieno coloca-o no roteiro dos lugares a visitar em Génova. Os mortos ilustres que possui o Père-Lachaise, de Paris, faz dele meta de romagens e veneração, basta pensar no túmulo de Jim Morrison. O S. Michele, de Veneza é imperdível pela posição única, numa ilha isolada no meio da lagoa, a algumas dezenas de metros da cidade e certamente nunca mais esquecerei a visão de um funeral veneziano, numa tarde de neblina, com as filas de gôndolas deslizando, num andamento fantasmagórico, atrás do féretro que seguia na gôndola da frente (e não resisto a contar uma anedota tipicamente veneziana: “Era uma família tão pobre, tão pobre, que os parentes tiveram que ir ao funeral da avó a nadar!”).
Sempre que posso, incluo a visita ao cemitério na visita à cidade. Estive, recentemente em Yangoon, e tentei ir ao cemitério de Taukkyan. Ali estão os túmulos rasos de 6 mil soldados das forças aliadas que caíram em combate, nas campanhas da Birmânia, na Segunda Guerra Mundial, talvez a única guerra sobre a qual nos é possível dizer quem eram os bons e os maus, e nos é permitido pensar que estes soldados se sacrificaram por todos nós. Ao tentar ler os epitáfios, ao fazer as contas às idades, ao imaginar os filhos e mulheres que estes mortos deixaram cá ficar, deste lado da superfície, neste presente, à frente do nosso olhar, desisti de o visitar. Talvez não fosse a melhor hora do dia. Talvez tenha sido um golpe de calor…