É em Sudder Street, a zona mais barata e, por isso, de eleição dos viajantes de mochila às costas e dos milhares de voluntários que, todos os anos, aterram em Calcutá, que encontramos uma pequena, mas valiosa, amostra da grandeza desta cidade. Da berma dos passeios, os vários táxis Hindustan Ambassador Classic amarelos atraem a nossa atenção e são, sem dúvida, uma das marcas desta cidade – dão cor, charme e encanto às ruas de Calcutá.
E porque não fazer de um destes taxistas um dos meus retratos indianos? Ocorreu-me ao pensamento após vários dias a passar por ali sem lhes prestar demasiada atenção. E assim foi. Só precisava de encontrar um que falasse, minimamente, inglês. Percorri a rua e ao quinto taxista, farta de os persuadir a falar comigo, ainda precisei de lhe arranjar um indiano que traduzisse as minhas questões. Estes indianos são engraçados: se eu disser que lhes quero fazer umas perguntas e tirar fotografias, olham de soslaio e recusam perentoriamente; se, por outro lado, eu disser que sou jornalista e vão aparecer numa revista muito importante em Portugal, já o caso muda de figura.
Like Masih. Ou então, simplesmente, Papu. É natural de uma pequena aldeia perto de Agra, a famosa cidade do Taj Mahal, mas encontra-se há sete anos a viver em Calcutá. Como sempre, perguntei-lhe a data de nascimento e a idade. Nasceu a 17 de Julho de 1975. Assumi imediatamente uma expressão de prazer e divertimento na expectativa da resposta seguinte. Desta vez, esperava que ele não acertasse na idade. Tive de insistir três vezes na mesma pergunta porque a resposta dele era invariavelmente a mais lógica: faz tu as contas. Deve ter percebido que eu ia continuar a insistir até obter o que queria e, lentamente, revirou os olhos e começou a menear os dedos da mão direita, como que a fazer contas mentalmente. Após vários segundos de silêncio respondeu que talvez tivesse 34 anos. Apontei no meu bloco, tentei não fazer muito caso disso mas interiormente sentia-me agradavelmente satisfeita. Tinha conseguido o que queria. Mais uma vez, um indiano que não acertava na idade.
É casado e tem um filho. Pergunto-lhe a idade. Estende o braço na direção do chão e abre a palma da mão virada para baixo, a demonstrar que ainda é pequeno. Semicerro os olhos e faço-me de desentendida. Mas quantos anos tem, pergunto mais uma vez. Revira novamente os olhos e afirma, para meu deleite, que talvez tenha dois anos.
Já tinha lido em qualquer lado que o estado de West Bengal, onde se situa Calcutá, encerra uma das mais baixas percentagens (0,64%) de cristãos da Índia. Numa cidade reconhecida pela presença da Madre Teresa e da sua obra de caridade, é de espantar a tão reduzida incidência desta religião na população indiana. Por isso, fiquei espantada quando afirma ser cristão e que, além disso, marca presença na igreja todos os domingos.
À medida que íamos falando, o número de indianos em nosso redor ia aumentando. Quando dei por isso, tínhamos à nossa volta mais nove taxistas: uns meramente interessados no que se estava a passar, outros talvez arrependidos por terem recusado aquele momento.
Tirou a licenciatura em Ciências mas a procura sem sucesso de trabalho nessa área fê-lo optar por ser taxista. Afinal, não é só em Portugal que está tudo virado do avesso, pensei.
Há quatro anos que anda pelas ruas de Calcutá e é dono do próprio táxi, o que não é muito comum na Índia. Normalmente, os taxistas trabalham para alguém que é proprietário e gere vários táxis. Trabalha quatro dias por semana, cerca de doze horas por dia. Ao final do mês, ganha à volta de 15.000 rupias (aproximadamente 250 euros).
Questionei-o se desejava que o filho seguisse as suas pisadas. Endireitou as costas, adotou um semblante sério e afirmou rapidamente “no no no no no”.
Apenas uma regra impera dentro do seu táxi: ninguém que esteja bêbedo é transportado para o destino que deseja.
Para nós, ocidentais, o trânsito na Índia é, simplesmente, caótico, confuso e desordenado. As regras de trânsito parecem inexistentes e os semáforos vermelhos são simplesmente ignorados. Mas será que os indianos também o pensam assim? Sempre me questionei se tinham a mesma perceção que nós. Mas este parece que sim e mostrou-se indignado quando quis saber se respeitava sequer os semáforos.
Sinto-me na obrigação de ser sincera e explicar um dos meus verdadeiros motivos para querer abordar um taxista de Calcutá. Depois de ler várias vezes sobre a presença e a pressão que a máfia exerce nestas grandes cidades, tanto sobre os condutores de riquexó como de táxi, tinha curiosidade em perceber como acontecia realmente no terreno. E não me surpreendi. O Papu não só me disse que a máfia está presente, principalmente, nas grandes estações de comboio desta cidade, como – e surpreendam-se vocês – a grande máfia é a polícia. “You need to pay them under the table all the time”, acrescentou ainda. Não há dúvida que a Índia é um país maravilhoso mas é detentora de certas realidades que eu, simplesmente, não compreendo.
Começou a ficar impaciente e a mexer no telemóvel e percebi que aquela era a minha deixa para acabar rapidamente com as perguntas. Ou o que quer que eu estivesse a fazer. Quis então saber se era feliz. Olhou diretamente para mim, a boca abriu-se num sorriso duvidoso e nos olhos bailava qualquer coisa como “mas que raio de pergunta é essa?”. Sorri e assenti, à espera da sua resposta. “Yes, I’m happy. Always happy”.