Não desfruta de uma só religião, mas de várias. Sabe falar fluentemente quatro línguas: inglês, hindi, tamil e malayalam. Encontra-se a finalizar a Pós-Graduação em Biotecnologia na Nehru Arts and Science College. Extraordinário? Não. Não o tivesse eu conhecido enquanto empregado de mesa de um qualquer restaurante de Cochim, desconhecendo ainda todos estes pormenores. Admirável? Sim. Mas já lá vamos.

Izzath Taj. Nasceu a 27 de Maio de 1987 e tem vinte e nove anos. Apresenta-se assim, de um jeito rápido, tímido mas orgulhoso, na expectativa da pergunta seguinte. Percebo o que lhe vai no pensamento e explico-lhe que gosto de falar com pessoas das cidades por onde vou passando. Não o vou tornar famoso, nem pouco mais ou menos, mas isso não lhe digo. Tal como guardo também para mim que qualquer indiano me chama a atenção e é interessante à sua maneira, que só por si, diferente da nossa enquanto ocidentais, já basta. Concentro-me na informação que me deu e começo logo a rir-me. Digo-lhe que nasci no mesmo ano mas que, ao invés dele, tenho apenas vinte e três anos. Olha desconcertado para mim, acho que não entendeu, e delicio-me com a sua confusão. Mais uma vez constato que a maioria dos indianos não dão importância à data de nascimento e à idade ou, simplesmente, não sabem fazer contas.

Estamos sentados a conversar num restaurante em Cochim, a maior cidade do estado sulista de Kerala, onde Izzath é empregado de mesa há, apenas, dois meses. Olho à minha volta, enquanto ele deambula pela sua infância e adolescência, e a minha atenção prende-se numa árvore “a sair” do chão. Estamos no segundo andar e apercebo-me que aquela árvore atravessa todo o edifício. Ele interrompe o que me está a dizer e explica-me que é uma mangueira e que, na realidade, utilizam o fruto para fazer sumo natural para os turistas. Daí o nome do restaurante – Mango Tree. Peço-lhe desculpa pela interrupção e ele prossegue, perdido nos seus pensamentos. Vou acenando afirmativamente e soltando pequenas exclamações que o incitam a continuar a conversar. Não percebo grande parte do que me diz, a pronúncia dele não é a melhor e a minha compreensão da língua inglesa deixa muito a desejar, no entanto, e para minha sorte, quase não necessito de o questionar, ele fala por si só e eu vou tirando notas.
Confia-me o seu sonho: visitar a Suíça. Pergunto-lhe porquê. Não sabe bem, apenas porque sim. Explico-lhe que é um país onde tudo funciona, ao contrário da Índia, e que, muito provavelmente, sentiria um choque cultural imenso. Deixa subentendido que pouco sabe a respeito deste país e rapidamente desisto. Pergunta-me, de seguida, pelo meu país de origem. Respondo-lhe. Sabes quem foi Vasco da Gama? O primeiro estrangeiro a chegar à Índia, exclama prontamente. E de que país era? Não faço ideia. Se o questionasse sobre o Cristiano Ronaldo, a resposta seria bem diferente.
Não é natural de Cochim, mas de Varkala, a 180 quilómetros, e pergunto-lhe porque trabalha aqui. Num momento anterior havia-me confessado que há muito deixara de falar com a família, principalmente o pai. A agressão familiar era uma constante e ele optou por fugir a tudo isso. Assim, pensei para comigo, provavelmente trabalha para ajudar a mãe e o resto da família. Estava errada. Trabalha para pagar os estudos na Nehru Arts and Science College em Biotecnologia, responde-me ele. Sou apanhada de surpresa e, durante uns segundos, nada digo. Estúpido preconceito, penso para comigo. Na tentativa de apaziguar o que senti e o espanto que demonstrei, quero saber mais sobre o curso, a universidade e o ensino na Índia.
À maneira indiana, também ele utiliza demasiadas vezes aquele aceno leve de cabeça. Imito-o e ele ri-se. Explica-me que é “uma especialidade tipicamente indiana” e que na escola são ensinados a não serem rígidos e a falar com o corpo. Não deveríamos ser todos assim?
Além de falar fluentemente quatro línguas – inglês, hindi, tamil e malayalam – aprendeu a ler arábico. Fico surpreendida com tanto conhecimento. Para mim, ele não passava de um simples empregado de mesa com uma provável boa história para desvendar. Preconceito estúpido, penso de novo, e repreendo-me mentalmente.
Mas o melhor ainda estava para vir. Lembrei-me que desconhecia ainda a sua religião ou crenças. É simples. É muçulmano, vive com uma família hindu e aos Domingos vai à missa. Espantados? Também eu. Mas não fica por aqui. Já leu, na íntegra, tanto a Bíblia como o Alcorão e assegura ainda ser habitual, nas pequenas viagens que faz, andar acompanhado pelos dois, juntamente com um terço, abençoado pelo próprio Papa, que lhe foi oferecido por um amigo. Também já é demais, pensei. Mas esta conjugação de deuses, crenças e orações é extraordinária. Devias aprender com ele, profiro interiormente para mim própria.
Quando Tiziano Terzani afirma, em 1995, “A Índia, a Índia!, dizia para mim, cultivando a esperança – ou talvez a ilusão – de um último reduto de espiritualidade. A Índia onde ainda existe insânia que baste; […]”. Não é ilusão, a insânia da espiritualidade ainda está cá toda e funciona às mil maravilhas.
Já no final, e como não podia deixar de ser, pergunto-lhe se é feliz. Olha-me de frente, com um sorriso a bailar-lhe nos lábios, e muito alto exclama: “Very happy. My heart is very cool now”.
Helena Pimentel www.daravolta.com www.facebook.com/daravolta