Afinal o Tahiti não era assim tão caro como eu temia. Podia-se dar-lhe a volta, encontrar atalhos, partilhar dicas. Escondidos nos subúrbios anónimos e tristes de Papeete ou espalhados sem aviso pelas estradas rurais de Moorea apareciam pequenos anúncios de pensões económicas, aluguer de quartos, áreas de campismo em quintais aplanados. As mercearias vendiam leite e amendoins, pão, queijo e fruta a preços acessíveis: uma alimentação completa não precisa de muitos mais produtos. Os autocarros locais, o polegar estendido e os cargueiros interilhas resolviam o mesmo problema que, nos resorts de cinco estrelas, se resolvem com uma lancha, uma avioneta ou uma limousine privada.
A informação passava de viajante para viajante, circulava nas docas dos ferries e nas paragens de autocarros, descobria-se nos papeizinhos afixados entre ofertas de compra e venda de electrodomésticos e móveis em segunda-mão nos placards dos supermercados. Não era impossível viajar com pouco dinheiro na Polinésia Francesa.Nem sequer era difícil. Já passaram alguns anos, hoje deve ser ainda mais fácil: just Google it.
Encontrava-me no Tahiti, já o disse, mas especifico melhor: encontrava-me no Tahiti propriamente dito, ou seja, na ilha principal e que por simplificação dá o nome ao resto do arquipélago. Na realidade, o nome correcto do arquipélago seria Polinésia Francesa, que se divide em cinco grupos, tal como o arquipélago dos Açores se divide em três. Dos cinco grupos da Polinésia Francesa, eu estava na ilha principal do grupo das “Ilhas da Sociedade”. Ao longo da minha visita, tentaria também chegar a pelo menos outros dois grupos, as Tuamotu e as Marquesas… mas isso é outra história. Nas Ilhas da Sociedade, para lá de Tahiti, queria também passar algum tempo em Moorea e depois em Huahine.
Nunca tinha programado vir à Polinésia Francesa. O meu destino era a Nova Zelândia. Tinha um assignment, uma reportagem encomendada por uma revista. Depois compreendi que o bilhete de avião para Auckland permitia um stop-over no aeroporto internacional do Tahiti, e este destino veio então, por acréscimo. Por facilidade.
A propósito, quantas vezes perdemos oportunidades destas por ignorância ou má informação? Aprendi a perguntar sempre pelos possíveis stop-overs que um bilhete de avião contém, e a desfrutá-los com essa alegria imensa do penetra que entra, come e dança na festa sem ser notado. O Tahiti foi, portanto, um stop-over para mim. Era um stop-over sem limite de validade: fiquei várias semanas.
Cheguei num cargueiro à ilha de Huahine. Saímos ao fim da manhã do porto de Papeete. Não tinha uma hora precisa de saída, era chegar cedo e sentar-se nas docas à espera. Foi aí que conheci o Peter, o americano. Viajava também para Huahine, onde chegámos já noite avançada. Tomo, o japonês, conhecemo-lo mais tarde, já instalados na pensão para mochileiros da Guynette. Ficámos amigos: alugámos um carro juntos, cozinhámos juntos e partilhámos o mesmo dormitório. Reparo agora com um sorriso: cada um de nós representava uma forma particular de enfrentar o mundo. Se uma qualquer enciclopédia apresentasse uma tipologia do viajante, cada um de nós ia parar a uma entrada diferente.
Peter tinha trabalhado uns anos largos num projecto de uma obra pública na Califórnia do Sul. Era engenheiro civil e tinha ganho bom dinheiro com esse contrato. Quanto terminou, não procurou logo emprego. Decidiu viajar por um ano à volta do mundo, escolhendo alguns destinos que lhe interessavam particularmente. Já estava na recta final da sua viagem, aqui no meio do Pacífico. Tinha dado a sua volta ao mundo seguindo para Leste e o próximo voo que iria apanhar seria já directo a Los Angeles, à vidinha de todos os dias. Havia uma sofreguidão no seu olhar que deve ser a do condenado à morte quando se atira à sua última refeição. Peter andava inquieto, nervoso, inconformado.
Tomo era o oposto do Peter: seráfico, imperturbável, introspectivo e sem voo de regresso. Tal como o Peter caminhava para Leste: só que Leste, para o Tomo, era a direcção contrária a sua casa. Enquanto que o Peter acumulara um bolo monetário e ao longo de um ano andara a gastálo, estando já nas migalhas, o Tomo viajava com migalhas. Trazia um cartaz consigo e um banco. O cartaz dizia: Massagens Shiatsu, 10 dólares 20 minutos. O banco era onde os clientes se sentavam. Tomo estacionava nas praças centrais das aldeias do mundo e esperava clientes. Quando tinha migalhas suficientes, o Tomo prosseguia mais uns quilómetros. Sem pressas.
Eu estava no meio destes dois modos de viajar. Tinha bilhete de regresso, mas cada regresso era também uma nova partida. Viajava não pela viagem em si, como eles, mas pelo projecto de trabalho que ela proporcionava: na altura uma reportagem para uma revista, anos depois a biografia de um navegador para um livro, actualmente um documentário para a RTP2. O Peter tinha o horizonte fechado, o Tomo tinha-o aberto. Eu tinha que abrir horizontes com cada novo projecto de viagem, cada nova reportagem, cada novo livro ou documentário. O Peter era o destino, o Tomo era a viagem. Eu era a viagem com destino.
Tantos anos depois quem sabe por onde andará cada um deles? Terá o Peter partido para uma nova viagem? Terá o Tomo encontrado uma chegada? Eu continuo a dar significado a cada partida com a chegada, a dar uma razão a cada viagem com o seu destino, a financiar cada errância geográfica com uma severa rotina profissional. Três entradas possíveis numa qualquer enciclopédia com a tipologia do viajante.