Tarragona viu-nos aproximar, depois de 117 kms pedalados. Seria esta a semana de todos os recordes? Já noite cerrada, a curiosidade que tínhamos em relação à cidade – sobre a qual, quando nela se fala, se diz: “ai, aquela ao lado de Barcelona…” – era grande, devido a um livro que tínhamos visto. Quando nela entrámos, todo o seu centro histórico se impôs à nossa passagem. A casa onde ficámos albergados situava-se em pleno coração da cidade, onde todos os monumentos estão presentes, onde tudo acontece, onde tudo começou. O Aitor, um “alicate suiço” do trabalho, dividindo-se em diferentes tarefas diárias, estava na inauguração da sua exposição de fotografia sobre os territórios ocupados por Marrocos. Sobre a temática dos campos de exilados na Argélia e toda a problemática que nos rodeia hoje em dia (infelizmente só agora) sobre a população do Sahara. Ele, que controlava a entrada dos barcos no porto. Ele, que era professor de reiki. Ele, que estudava qualquer coisa ligada a computadores e a programação. Ele, que nos recebeu em sua casa, mas que só vimos no segundo dia de estadia e que, com toda a sua simpatia, nos fez uma visita guiada pela cidade. Mostrou-nos um pouco da sua história, que remonta ao Império Romano, razão pela qual a cidade pertence à lista de Património Mundial da UNESCO. Numa das praças centrais, um antigo e pequeno mercado coberto, sem uso, servia de local de venda a artistas jovens da terra, que exibiam ali as suas fotografias, esculturas, colagens e outras pequenas obras – mais ou menos de arte – que as pessoas “consumiam” com imenso prazer! Cá fora música, muita música! Crianças que brincavam, cantavam, um sol fresco que nos banhava, idosos que sorriam com toda esta praça fora do normal consumismo natalício, palhaços e personagens de andas e nós, que captávamos tudo, que absorvíamos, que desejávamos que assim fosse em todo o lado! Arte, música, festa, circo sem animais e sem lojas! “É disto que o meu povo gosta!”
No dia da saída, já com os bilhetes de comboio na mão – decisão tomada que iria, segundo os nossos planos, possibilitar passar o ano em Portugal! – descemos avenida abaixo, em direcção à estação. Chegámos cedo, perguntámos onde iriam as bicicletas e informaram-nos que o comboio, ou na parte da frente ou de trás, estava preparado para as levar! A parte da frente passa…não estava. Chegados à parte de trás…também não estava. O revisor informou-nos que não havia espaço para elas. Nós, que sim, que nos haviam dito e que por isso elas tinham que lá ir dentro! E assim foi, a muito custo e fazendo “ouvidos moucos”. Instaladas, instalados! Duas horas e tal de viagem, que nos levaram a Valência, a cidade onde passaríamos o Natal, com amigos!
Logo à chegada, a cidade pareceu-nos grande e o nosso maior foco de atenção nesta urbe estava centrada numa das zonas novas da mesma, a Cidade das Artes e das Ciências. De bicicleta, ainda fizemos o caminho até Pinedo, um pequeno povo a 10 quilómetros de Valência, onde ficaríamos instalados. Á nossa passagem, a parte que mais nos atraía na cidade era a do lado esquerdo: edifícios, atrás de edifícios, pontes, um parque de lazer construído ali, onde o rio passava. Os dias desenrolavam-se entre as conversas postas em dia e, claro, o tema cultura sempre em cima da mesa, ou não fossemos os quatro, naquela casa, trabalhadores nas artes de palco! Visitar o Palau de las Arts Reina Sofia – o edifício construído para servir às artes de palco, fez-nos continuar a concluir aquilo que sempre pensámos: os arquitectos continuam a trabalhar os espaços de espectáculos com vista à aparência e não ao sentido prático dos mesmos – o que seria muito mais importante – daí concluirmos que, ou as pessoas que com eles fazem parceria a nível técnico são muito maus, ou então nem existem, porque há erros descomunais e imperdoáveis. A nível arquitectónico, confessamos, não somos os maiores apreciadores de Santiago Calatrava – o mesmo que desenhou a Gare do Oriente, em Lisboa – porém, temos de admitir que tem coisas muito interessantes e ficámos impressionados. As áreas de lazer, as áreas públicas dentro do Palau e, mesmo, algumas das salas. No entanto, quando olhamos para as salas ou os espaços a nível de quem trabalha lá, de quem produz os espectáculos, a nível de quem trabalha em palco, as escolhas feitas são de uma pessoa que, um dia, pensa em estudar arquitectura… pensa. Erro atrás de erro, tantos que os trabalhadores “inventaram” uma nova palavra: calatravada – erro impensável e muito complicado de se resolver! Enfim…
A noite de Natal foi um pouco diferente daquela a que estamos habituados, apesar da nossa já ser um pouco diferente da “normal”, há alguns anos, por sermos vegetarianos! Em Espanha o Natal é festa: pandeiretas, barulho, música, canções! Em cima da mesa, presunto, enchidos, pão, batatas fritas, camarões. Amanteigados, chocolates, torrão de Alicante, bolos de amêndoa. Espanha é um país estranho: tem uns horários completamente diferentes dos outros países da União; os doces embalados compram-se às centenas, não se cozinham; o café, é de fraquíssima qualidade; o pão, nem se fala, e lembra-nos uns outros viajantes de bicicleta que perguntaram: “como é que um país que está no meio de 2 excelentes produtores de pão – Portugal e França – ainda não aprendeu a fazê-lo?”. Fuma-se em todo o lado. Um país consumista como nunca vimos. Um país onde encontrar uma pessoa que fale bem outros idiomas que não o espanhol, é tarefa árdua. E continuaríamos por aí fora, se quiséssemos. Um país, assim como Itália, pelo qual não caímos de amores.
De Valência, a intenção seria apanhar outro comboio até Sevilha! Não deu. “Até Sevilha os comboios não levam bicicletas. É possível lá chegar de comboio, sim, mas demorariam quase 4 dias…” – disseram-nos. Ficámos desiludidos. A penúltima hipótese – a última seria pedalar – era o autocarro. Depois de uma fila enorme informaram-nos que sim, se pagássemos um suplemento e se as bicicletas fossem embaladas! Sevilha… aqui vamos nós!
Dia 25, chegar cedíssimo à estação de autocarros, desmontar as bicicletas, petiscar qualquer coisa, esperar e começar a viagem! Oito horas e qualquer coisa em que mal pregámos olho. Desconfortáveis, com ansiedade e sabendo que, mal chegássemos, pegaríamos logo nas duas rodas e começaríamos a pedalar. Assim foi. Tortos, adormecemos. Com dores de costas, acordámos. Moles, cansados e com vontade duma cama. 7.30 – montar bicicletas. 9.00 – sair. 10.00 – sair de Sevilha. 12.00 – parar para comer algo. 12.45 – parar para um café e acordar. 13.00 – pedalar. 15.00 – pedalar. 18.00 – acabar de pedalar. Valverde del Camino! Tínhamos lido que existia um albergue para os peregrinos do Caminho de Santiago. Nem hotéis existiam. Primeira tentativa com a Guarda Civil, nada. Padre na paróquia, nada. Cruz Vermelha, fechada. Centro da cidade, em obras. Associações culturais, nada. Pessoas a quem perguntámos na rua, nada. Jardins para acamparmos, nada. Lindo! Segunda tentativa na Guarda Civil, bingo! Além de toda a disponibilidade, ainda sairam para tentar encontrar um amigo que nos podesse receber! E ali estávamos nós, uma hora depois, dentro duma casa, com banho quentinho, com cama, com cozinha e uma casa só para nós! Anjos! (se é que existem!)
Mal acordámos, a intenção era abalar para o Alentejo! Estrada fora, ora subindo, ora descendo lá continuámos em direcção à fronteira tão esperada, faltavam 75kms! Fomos “picando” coisas pelo caminho, mal parando, com ansiedade por chegar e em cada placa a dizer Portugal, uma foto, em sentido decrescente! Foi tanta a emoção de voltar a entrar no país, que nos esquecemos até de tirar a foto na placa que dizia Portugal… a última, pois íamos a fazer um vídeo e a estrada era a subir! Logo na primeira população, Vila Verde de Ficalho, parámos para uma tosta de queijo e café! A Tanya ficou com lágrimas nos olhos! Na esplanada, apesar de frio, sorrimos e tirámos fotos aos primeiros produtos portugueses! Só faltava mesmo um Sumol de laranja, mas já não havia! Ali, tentámos arranjar casa, um simples chão para estender os colchões mas, a cidade de Serpa, a 25kms, fez-nos pedalar um pouco mais! Quando chegámos, já noite feita, olhámos um para o outro e perguntámos: “…e se fôssemos até Beja, à tolos!?” E assim foi, lanternas na cabeça e após 140kms, chegávamos a esta terra, onde nos encontramos agora, cidade que adoramos e onde estamos na companhia de excelentes amigos. Até nos apetecer pegar nas bicicletas outra vez…