O dia começou cedo, com o despertador irritante, que de forma estratégica deixei afastado da cama, para assim ser forçado a levantar-me e a preparar-me a tempo e horas do comboio das oito menos dez. Apesar dos primrios raios de sol da manhã adivinharem um dia de Verão, o tempo estava fresco e ainda não tinha pedalado um quilómetro, quando decidi-me a vestir o polar que havia trazido no alforge, todo ele decorado com o logotipo que havia criado para a ligação Lisboa-Casablanca.. E lá pedalei os cerca de dez quilómetros que separam a minha casa à estação da CP de Aveiro, agasalhado e algo ansioso pelo arranque desta aventura, ao mesmo tempo que revia mentalmente aquilo que me havia levado a tomar esta estranha decisão de ter umas férias activas e em quase solidão.
Entrei para o comboio, não ser antes notar os olhares curiosos das poucas pessoas, que aquela hora da manhã aguardam o embarque para outras paragens. O meu destino era Casablanca e estava bem claro, mas o bilhete, por enquanto iria apenas me levar até Santa Apolónia. Um comboio regional que faria a morosa ligação entre Aveiro e Lisboa, pois só os regionais é que permitem o transporte da bicicleta e sempre numa das extremidades da composição, algo que aprendi depois do simpático revisor me pedir para levar a bicicleta para junto da cabine de controlo do comboio. Foram mais de quatro horas a ouvir a mesma voz, a anunciar roboticamente cada uma das estações e apeadeiros e depois de sair e entrar em Coimbra B e Entroncamento, eis que chego à estação de destino, já meio farto de tanto tédio, que procurei combater tentando me entender com o GPS que ainda não tinha tido oportunidade de explorar. E eis que descubro que afinal a máquina fotográfica estava com um problema e que não tirava fotos, Era a lente e não me restava outra alternativa senão comprar uma lente Canon pelo caminho. Talvez em Beja, pensei eu.
– Próxima estação: Lisboa Santa Apolónia – dei um salto do banco, pois já estava meio sonolento, agarro na bicicleta e dirijo-me para a porta.
– Boa sorte para a travessia – diz-me simpaticamente o revisor, ao que eu agradeço com um sorriso.
– Quantos é que vão? – perguntou de seguida, ainda antes de o comboio parar por completo.
– Apenas eu – respondi.
– Eh lá… sozinho não é nada fãcil – retorqui, ao que eu concordei com um encolher de ombros.
Mal me vi fora da estação montei-me na bicicleta e muito lentamente lá me dirigi para o Cais do Sodré, ponto de encontro com o fotografo da revista Visão. Já me tinham feito uma longa entrevista por telefone e agora o Nuno Fox vinha tirar uns “bonecos”. Enquanto esperava por ele, mesmo frente à estação do Cais do Sodré, sou surpreendido por um grupo de oito ciclistas de Córdoba. Vinham carregados de mochilas, sacos cama e alforges e conversámos um pouco. Davam-se pelo nome de Trepachulos (a tradução para português tem o mesmo sentido do castelhano) e estavam a visitar Portugal. Iam para Sintra, por dia faziam cerca de 120 quilómetros e notei neles alguma admiração assim que lhes contei o propósito da viagem que estava prestes a iniciar. Tirámos fotos juntos, trocámos emails e lá seguiram o seu caminho. Enquanto isso, o Nuno Fox lá chegou e fomos para a zona ribeirinha. Não estou habituado a ser fotografado e muito menos com um mini arsenal de equipamento fotográfico. Mas o Nuno deixou-me à vontade e ainda não eram duas da tarde e já estava no cais de embarque para Cacilhas.
INICÍO TRANQUILO
Num instante o ferry chegou a Cacilhas e eis que tinha a estrada por desbravar à minha frente. Calcei as sapatilhas com encaixes para os pedais, liguei para casa e a minha mãe, pessoa que talvez melhor me conhece e compreende, desejou-se toda a sorte do mundo. E iria precisar, sem dúvida. Num acto irreflectido, benzi-me e colei as mão ao guiador enquanto me metia à estrada. Duas horas depois e pelas minhas contas, sabia que iria ser difícil chegar a Beja com a luz do dia e lembrei-me o quanto poderia ser perigoso andar de bicicleta durante a noite, pelo que me propus a pedalar até cerca das sete da tarde. Entre as inevitáveis paragens para pedir informações e beber uma bebida mais fresca, cheguei a Alcácer do Sal, depois de percorrer, sem dificuldade de maior, cerca de 92 quilómetros em pouco mais de quatro horas (tempo útil). Não estava cansado, mas achei que o mais sensato era sair do IC1, onde o trânsito circulava a alta velocidade, e procurar um porto seguro. Ainda houve tempo para um grupo numeroso, todos eles conduzindo as míticas Vespas, passarem por mim e acenarem, com apitadelas de incentivo. Acenei-lhes também, retribuindo a atenção que, de quando em vez, recebia de algum automobilista. Acenei eu e acenava constantemente a irrequieta bandeirinha de Portugal, que colada à vareta de fibra de vidro, dava conta, de forma indisfarçável, do meu orgulho patriótico.
Em Alcácer do Sal optei por ficar no Parque de Campismo, tomar um duche retemperador e jantar algo mais que as barras energéticas que haviam sido o meu almoço e lanche. Os três boiões de bebida energética que trago agarrados ao quadro da minha companheira também estavam no fim e foi em boa altura para parar e pernoitar. Era melhor assim e abandonei por momentos o meu espírito competitivo que se sentia tentado a ir até Beja, numa tirada só, custasse o que custasse. Mas havia que refrear ânimos, em nome da razão e sobretudo da segurança e eis que dou comigo na recepção do parque de campismo para o check-in.
A minha indumentária de ciclista não deixava dúvidas e apesar de ter deixado a bicicleta fora do alcance do olhar da jovem que me atendia, ela ficou algo surpreendida quando lhe dei a minha morada para a factura:
– Não em diga que vem de Aveiro de bicicleta? – perguntou, admirada.
Lá lhe expliquei que não e resumi em poucas palavras o que me trazia de passagem por Alcácer do Sal. Fiquei então a saber que eram muitos os suecos, finlandeses, belgas e holandeses que passavam por ali de bicicleta. Paguei adiantado, pois queria sair bem cedo em direcção a Grândola, com passagem por Beja.
– É o melhor caminho – assegurou-me a jovem recepcionista, informação que já havia recolhido nas bombas de gasolina, poucos quilómetros antes, ante o olhar atónito do funcionário, que não tirava os olhos do propósito da minha viagem, estampado numa lona colorida.
Amanhã há mais… mas há também que recuperar algum do atraso do primeiro dia. Beja ainda está a 82 quilómetros (a acreditar no Via Michelin online) e pelo menos saio do trânsito frenético do IC1. Depois veremos até onde irei, mas creio que tomei a melhor decisão, muito embora tenha de recuperar este atraso nos próximos dias. É para isso que servem os planos “B”.