É como se as cores estivessem todas nas obras que assina, porque no resto da vida José de Guimarães veste-se de preto. “É mais fácil, é como se fosse um uniforme”, diz como quem pensa pela primeira vez no assunto. O contraste com as paredes brancas do ateliê é evidente. Neste espaço secreto, além da vista privilegiada sobre Lisboa, junto ao miradouro de Santa Luzia, existe em cada recanto um bocado de mundo. São artefactos e figuras das culturas africana, chinesa e pré-colombiana. A colecção alimenta-se da conjugação de civilizações que o artista procura “para atingir a harmonia”.
Mas o mundo do pintor nem sempre foi assim tão grande. Quando veio estudar engenharia para Lisboa, em 1957, adoptou o nome da cidade que o viu nascer. Aos 18 anos abandonou os apelidos Fernandes Marques, e (re)nasceu como José de Guimarães.
“Apesar do atraso, Lisboa já era outra coisa”, recorda. Na capital viu, pela primeira vez, obras de arte originais que não eram “arte sacra de Guimarães”, explica.
As viagens a Paris, durante a adolescência, foram fundamentais para “perceber como um artista pode desenvolver a sua obra”. Lembra-se de, na primeira vez, ter ficado num hotel de uma estrela “ou até sem estrela nenhuma…”, graceja , em Montparnasse. Mas o que reteve na memória foi a sua experiência por aquilo que chama a itinerância das artes, os dias passados a calcorrear galerias, a descobrir um mundo novo.
“Nada acontece naturalmente. As coisas só acontecem porque trabalhamos para isso”, diz agora, ciente de que tudo o que conseguiu foi à custa de estudo e de trabalho. Talvez seja por esse motivo que não se lembra do primeiro quadro que pintou, mas sim do tempo em que copiava para aprender. As suas influências mostram uma conjugação entre passado e presente, desde o estilo barroco de Rubens, ao abstraccionismo de Klee e Kandinsky.
Quando começou a pintar, nos anos 60, bebeu da influência da Pop Art, mas à medida que evoluía o seu trabalho ia ganhando personalidade. O grande salto deu-se em África, onde criou uma nova dimensão.
MESTIÇAGEM
“Nas viagens o que gosto é de descobrir, de procurar novas motivações que só encontramos em locais diferentes daqueles onde vivemos.” E é através desses encontros que vai construindo a sua obra.
Os sete anos passados em Angola, entre 1967 e 1974, para onde foi mobilizado para o serviço militar, levaram-no a estudar a etnografia africana. É no continente negro que desperta para o “sentido do símbolo” e cria uma das suas obras mais emblemáticas, o Alfabeto Africano 132 peças simbólicas do corpo humano, sinais e objectos. A obra marca o início da sua viagem entre a pintura e a escultura, que caracteriza, a partir daí, a sua carreira.
“O que faço não se encaixa em designações rigorosas.” Até hoje, José de Guimarães não sabe se faz esculturas. O historiador de arte José-Augusto França designa-as de picto–esculturas, porque uma das suas características é serem esbeltas, como se lhes faltasse a terceira dimensão.
Nos anos 80, o artista consolida esta vertente ao introduzir uma inovação nos materiais utilizados, como o papel (que fabrica manualmente), vidro moído, espelhos e azulejos.
É nesta época que José Guimarães se dá a “conhecer” na Europa. Expõe em Milão, Paris, Madrid, Antuérpia, entre outras cidades. Os governos português e belga compram-lhe e encomendam-lhe obras. O Presidente da República atribui-lhe o Grau de Comendador da ordem do Infante D. Henrique. No meio de tanta agitação, o fulgor criativo começa a ser perturbado pelas constantes deslocações.
Numa fase de cansaço, descobre uma cultura diferente e decide, de novo, mudar de rumo. Depois do “choque africano” é em terras do continente americano que encontra a motivação artística: “O México foi, para mim, o grande deslumbramento.” A força criativa veio de temas como o erotismo e, curiosamente, a morte. Foi um período onde as calaveras (caveiras) tiveram inúmeras aparições. Como nos painéis que desenhou para a estação de metropolitano de Chabacano, na Cidade do México (1996), mas onde estão presentes as suas cores fortes de sempre, como os vermelhos, verdes e azuis.
De forma quase natural, seguiu-se a China. Mais um processo de leitura, investigação e busca de conhecimento, guiado pela procura daquilo que pode aproximar as civilizações. “A arte é uma linguagem que não necessita de tradutor”, afirma.
ARTE NA RUA
Mas se José Guimarães procura unir civilizações com a arte, também deseja vincar, com a pintura ou a escultura, as características dos locais. Em especial quando a arte é levada para fora das galerias e dos locais mais fechados. “A arte pública pode ser uma forma de atribuir identidade às cidades”, diz, a pensar naquilo que gostaria de ver em Lisboa, mas também na sua própria experiência, nomeadamente na Ásia.
Há cerca de uma década, ele redesenhou a cidade de Kushiro, no Japão. As marcas da sua intervenção ainda se mantêm e acredita que trouxeram uma nova luz à cidade costeira, quase sempre nublada: bancos coloridos, esculturas de grandes proporções e diversos néons.
A formação que fez em engenharia e os quatro anos que estudou arquitectura talvez o tenham despertado para a arte pública. Guimarães acredita que “a colaboração entre artistas plásticos e arquitectos é fundamental” para a harmonia. “Não faz sentido que uma semana antes da inauguração se chame o artista para preencher um buraco”, reclama.
Talvez por isso, desenvolve quase todos os projectos de arte pública no estrangeiro em equipas que, como gosta de referir, “trabalham em uníssono”. Em Portugal, as suas intervenções são bem mais escassas, embora identificáveis: a sobreposição de néons coloridos na estação de metro de Carnide, e a escultura de grandes proporções da Praça 25 de Abril, na zona do Braço de Prata, em Lisboa.
Sem complexos, José de Guimarães defende a arte que sai à rua e se democratiza. Por isso, já desenhou cinzeiros, copos, cartas de jogar, e até um dominó. “São formas de criar objectos artísticos de produção em série, o que diminui o preço e os torna acessíveis às pessoas.”
Numa dessas incursões pelo mundo comercial, criou as Six Sculptures for Travelling, pequenas esculturas em papel, com suportes de madeira, práticas o suficiente para levar em viagem. “É uma forma de personalizar o espaço, de humanizar”, explica.
Outro dos desafios a que respondeu foi ao da criação do logótipo do Turismo de Portugal. É uma das suas imagens mais conhecidas: uma figura humana estilizada com as cores da bandeira nacional, onde a cabeça é o sol, e que caminha sobre o mar.
Com tantas actividades torna-se difícil rotular Guimarães apenas como pintor, escultor ou designer. “Não é importante compartimentar. Vou da pintura ao objecto com grande facilidade.” E tudo fica mais simples.
O CAMINHO
“A preocupação social é instintiva. Tão natural como ter de comer.” Às palavras de hoje juntamos o Manifesto aos Pintores Inconformistas, que escreveu em 1968, e temos o retrato de uma arte provocadora e actual. José de Guimarães considera este um tempo de escravatura sofisticada, com imposições e limitações, e é contra o que considera processos de opressão que sempre se mobilizou.
Por vezes, num caminho em que a denúncia vai beber à influência expressionista, como sucede com a utilização de brinquedos de criança na obra Favela (2007) que representa os bairros-de-lata do mundo.
O Brasil voltou a abrir a perspectiva de África. O que pode ser uma lição no caminho da harmonia das civilizações que procura. Como se educasse o olhar para a semelhança, e não para a diferença.
Na busca da criatividade revela um espírito pragmático, apenas possível aos 69 anos de idade: “A inspiração é um estado de espírito. É o momento em que uma ideia surge de um conjunto de coisas que não são importantes. Nasce do vazio.”
É nas viagens que muitas vezes encontra o que lhe pode ser útil: “São fenómenos e encontros que entram na produção visual das minhas obras, como um novo alfabeto.”
Actualmente, as exposições levam-no um pouco por todo o mundo: Alemanha, Bélgica, França, Brasil, Estados Unidos, Japão ou Macau. Mas confessa que ainda não visitou todos os países onde existem obras suas em exposição, “nem esse é um objectivo”. A obra viaja para além do autor. “A obra vai, e a obra é que fala.” Uma forma de harmonia.