O setor automóvel europeu, uma das indústrias mais importantes da economia, que dá emprego a 13 milhões de pessoas, cerca de 7% da população ativa, e que gera um superavit de 79,5 mil milhões de euros na balança comercial da União Europeia, está a atravessar um dos pontos mais críticos da sua história.
Após um período difícil de pandemia, o setor conseguiu transformar-se e acabou por se tornar mais lucrativo do que antes. Apesar dos problemas existentes com a escassez de microprocessadores e as falhas nas redes de distribuição que levaram ao encerramento temporário de muitas fábricas espalhadas por todo o continente.
Em 2022, venderam-se menos 10 milhões de carros do que em 2019, mas as receitas foram praticamente idênticas nos dois anos. Isto apenas aconteceu porque, pela primeira vez na história, a procura superou a oferta e os preços acabaram por subir, o que gerou lucros que, ainda há poucos anos, eram inimagináveis para a grande maioria dos fabricantes.
Este melhor desempenho financeiro está a permitir que as marcas avancem com os fortes investimentos necessários na reestruturação de toda a sua produção e no desenvolvimento de novos carros elétricos, para dar resposta à rápida transição energética imposta por Bruxelas, que quer acabar com os carros com motor de combustão interna até 2035, apesar de estes ainda serem a principal fonte de receita desta indústria.
E se, até agora, os construtores estavam com uma situação desafogada do ponto de vista financeiro, o cenário deverá mudar, já a partir deste ano, com a chegada em massa ao mercado europeu dos carros chineses.
Carlos Tavares, presidente do grupo Stellantis, já advertiu que, se os políticos europeus não derem resposta a esta investida chinesa, poderemos assistir a “uma batalha terrível” no setor.
“A diferença de preço entre os carros chineses e os europeus é significativa. Se nada mudar, os cidadãos da UE irão depressa começar a comprar veículos chineses, até porque, nesta altura, o poder de compra na Europa tem baixado significativamente”, disse Carlos Tavares durante a Feira Internacional do Automóvel de Las Vegas.
Na mesma ocasião, Patrick Koller, CEO da francesa Forvia, um dos maiores fornecedores de componentes para a indústria automóvel, disse que “a eletrificação é vital para enfrentar as alterações climáticas, mas os elevados custos das baterias ameaçam inviabilizar o direito à mobilidade nas democracias ocidentais. Os carros elétricos mais pequenos custam menos 10 mil euros na China do que na Europa”.
“Se mantivermos o mercado aberto, teremos de combater os chineses de forma direta e isso vai-se repercutir em toda a cadeia de valor, levando a decisões pouco populares”, alerta Carlos Tavares, que tem sido a voz mais crítica desta decisão de acabar com os motores de combustão interna.
Luca de Meo, CEO da Renault, que considera esta medida da União Europeia “contraproducente na sua forma atual”, já anunciou que o Grupo Renault irá antecipar em cinco anos a decisão de Bruxelas e tornar-se totalmente elétrico em 2030, mas apenas no mercado europeu.
Também a Audi quis antecipar a decisão e promete apenas construir modelos 100% eletrificados já a partir de 2033. Nuno Mendonça, diretor-geral da marca alemã em Portugal, quis levar este compromisso ainda mais longe e anunciou, na passada semana, à sua rede de concessionários que a partir de 2030 todos os Audi comercializados em Portugal serão elétricos.
Esta decisão foi tomada porque Portugal tem sido um dos países onde a procura por carros elétricos mais subiu. No ano passado venderam-se 20 230 carros 100% elétricos e 16 mil híbridos plug-in. Um valor que seria muito superior se existissem carros para entrega, o que se deve em grande parte à escassez de microchips no mercado internacional.
Devido a este aumento do número de elétricos a circular em Portugal, a Mobi-E registou mais de 250 mil carregamentos mensais na sua rede, que já atingiu os 5 600 postos de norte a sul do País. E o investimento continua. Ao longo do ano passado, foram instalados, por semana, mais 29 postos de carregamento em Portugal.
O avanço chinês
Os receios da indústria em relação ao avanço chinês estão bem fundamentados no relatório elaborado recentemente pela consultora Gartner. Os especialistas desta empresa preveem que, em 2026, cerca de 50% dos carros elétricos que se venderão no mundo serão de marcas chinesas. No mesmo relatório, o analista Mike Ramsay salienta que “existem mais de 15 empresas chinesas a vender carros elétricos e que estes são mais pequenos e, na sua maioria, mais baratos do que os carros vendidos pelos seus concorrentes europeus ou norte-americanos”.
À medida que a procura de carros elétricos vai subindo no mundo, os fabricantes chineses têm outra vantagem competitiva. Estão mais perto das fontes de metais raros necessários para produzir muitos dos componentes dos novos automóveis, tem maior produção de baterias e não se debatem, como os seus concorrentes, com a escassez de microprocessadores.
E este é um dos grandes problemas do mercado dos carros elétricos. Um veículo tradicional, por exemplo, incorpora, em média, pouco mais de mil microprocessadores, enquanto um elétrico necessita, em média, mais de três mil.
Os chineses não só dominam o fabrico mundial de chips como algumas das marcas têm produção interna. O maior fabricante de veículos eletrificados da China, a BYD, produz nas suas fábricas mais de 70% dos microprocessadores que necessita para fabricar os carros.
Porta aberta às Big Tech
Suportada pelas novas tecnologias, pelo crescimento acelerado dos mercados emergentes, pela implementação de apertadas políticas de sustentabilidade e pela alteração das preferências de consumo dos mais jovens, a economia mundial está a mudar de forma muito rápida. E o setor automóvel não é exceção. Estas novas tendências irão provocar fortes disrupções nesta indústria, o que obrigará a uma cada vez maior aposta em novos modelos de mobilidade, na eletrificação, na condução autónoma e numa maior conectividade.
Ao longo dos últimos anos e à medida que os carros se tornam cada vez mais digitais e conectados ao mundo exterior, os gigantes da tecnologia, como a Google Automotive Services ou a Apple CarPlay, têm vindo a substituir os antigos fornecedores de software mais especializados na indústria automóvel.
Não só fornecem as soluções tecnológicas, como trazem os veículos para o seus ecossistemas. Por exemplo, a Renault fez uma parceria com a Google e a Volkswagen com a Microsoft. Além disso, outras grandes empresas de criação de software estão a entrar diretamente no desenvolvimento e fabrico dos automóveis, como é o caso da Xiaomi, que já começou a construir uma fábrica de carros elétricos, da Alibaba, da Huawei ou mesmo da Sony.
Segundo os especialistas, será difícil uma marca sobreviver no futuro sem estar ligada a uma gigante tecnológica, o que poderá criar uma nova realidade em termos de estrutura de capital das grandes marcas de automóveis. Essa realidade será ainda mais visível quando o setor avançar para a condução autónoma, uma solução que irá obrigar ao desenvolvimento de software mais preciso e conectado.
E o grande passo para o carro autónomo começa a ser dado este ano. Segundo a Economist Intelligence Unit, será em 2023 que algumas marcas irão pôr nas estradas veículos que já oferecem o nível 3 de condução autónoma e que começarão a fazer os testes do nível 4.
A Mercedes, por exemplo, passará a disponibilizar em dois estados dos EUA, Califórnia e Nevada, o sistema Drive Pilot, enquanto a BMW irá colocar a tecnologia nível 3 de self-driving nos Serie 7. Outras marcas, como a Tesla, General Motors, Hyundai/Kia e Polestar também deverão lançar carros com o nível 3 de condução autónoma.
Para uma melhor compreensão, o avanço para a condução autónoma foi definido em cinco níveis. O quinto é aquele em que os veículos nem necessitam de condutor no seu interior para se deslocarem. Quer isso dizer que a passagem para o nível 3 já é um avanço muito significativo.
Mas os avanços não se vão ficar por aqui. Existem vários eventos que irão testar, já este ano, soluções de nível 4 de condução autónoma. Uma delas irá realizar-se na Alemanha, enquanto nos EUA e no Dubai serão lançados os primeiros robot-taxis. Estes projetos pioneiros irão funcionar em ambientes altamente controlados em termos de tráfego e de circulação de pessoas.
A eletrificação já não volta atrás e os carros autónomos estão a dar os primeiros passos nas estradas, o que irá abrir o futuro da mobilidade para uma realidade que nos dias de hoje é impossível imaginar. Mas as gigantes tecnológicas estão atentas a estas mudanças e a criar soluções para conquistar o futuro da mobilidade como um serviço, tornando as marcas de automóveis meros fabricantes de equipamento. E esse passo começa a ser dado este ano