Quase de certeza que já leste uma obra de Luísa, ou leste nos manuais da escola excertos dos seus textos e poemas. Por outro lado, a escritora gosta muito de visitar escolas por todo o País e de conhecer os seus leitores, pelo que também já te podes ter cruzado com ela.

Cada Macaco no Seu Galho, Meninos de Todas as Cores, Aventuras do Zé Peninha e O Rapaz do Nariz Comprido são alguns dos mais de duzentos livros que já escreveu. Diogo quis saber onde vai desencantar tantas histórias.

Quando começou a escrever?

Foi aos 10 anos, comecei a escrever poesias. Tive uma professora que era mesmo fantástica, porque fazia de cada aula de Português uma festa, e nós começávamos a adorar os sons das palavras.

Ela fazia-nos representar os textos e declamar poesia e resolveu publicar alguns dos meus poemas no jornal da minha escola, o Liceu Francês. E eu, claro, fiquei um bocadinho contente.

Mais tarde, aos 13 anos, comecei a escrever pequenos contos, mas como medida de autodefesa, porque eu tinha um irmão mais novo que era diabólico, portava-se muito mal. Gostava de fazer de mim um cavalo e dizia: “Galopa, cavalo!”

Comecei então a inventar histórias com os seus heróis preferidos e algum humor à mistura. Ele gostou tanto que me dizia: “Se eu me portar bem, amanhã contas-me outra?” E foi assim que inventei muitas histórias, mas essas nunca as escrevi.

Era boa aluna a Português?

Era, sim, mas nada de excecional.

Onde se inspira para escrever as suas histórias?

Em tudo, até me posso inspirar agora em ti e nos teus bonitos caracóis e transformar-te numa personagem! Tenho, por exemplo, um poema chamado A Menina Feia [do livro Os Poemas da Mentira e da Verdade], inspirado numa menina que conheci numa visita a uma escola. Ela era vítima de bullying porque era careca, tinha um olho desfigurado e várias cicatrizes.

No intervalo, fui falar com ela e pedi-lhe para me contar a sua história. Ela contou então que vivia num bairro de lata, que a casa da sua família tinha ardido e os pais e os irmãos tinham morrido no incêndio. Mas a menina tinha uma voz tão bonita e doce, e um sorriso tão contagiante, que pensei que tinha de escrever um poema sobre ela.

Quais são os temas sobre os quais gosta mais de escrever?

Gosto é de variar, porque a monotonia aborrece-me! Gosto de escrever tanto sobre assuntos reais como fantasiosos e gosto imenso da tradição oral da língua portuguesa. Quando trabalhava na Biblioteca Nacional, durante sete anos consultei muitos livros de lengalengas, trava-línguas, anedotas, adivinhas e contos tradicionais. Recolhi tantos, que decidi escolher os mais apropriados para crianças e propus à editora Livros Horizonte publicá-los.

Foi o livro que demorou mais tempo a escrever?

Sim, foram sete anos de investigação. E o livro que escrevi em menos tempo demorou apenas duas horas, porque me saiu da imaginação. Chama-se Mãe, Querida Mãe. Fala da mãe-formiga, que é aquela que está sempre a trabalhar; a mãe-pata, que leva os filhos todos atrás; a mãe-leoa, que os defende com unhas e dentes; a mãe-foca, que está sempre a dizer “Vai tomar banho!”; a mãe-águia, que ensina os filhos a voar… Qual é o tipo da tua mãe, Diogo?

Sinceramente, é uma mãe-águia, que nos ensina a voar e nos dá autonomia para aprender. Tenho muito orgulho nela.

E fazes muito bem!

Luísa, dos livros que escreveu, qual é o seu preferido?

Isso é que não sei responder, porque, quando os começo a escrever, não sei o que vai sair dali e, quando os acabo, ponho-lhes todos os defeitos. [Risos.]

Porque é que escreve livros para crianças?

O primeiro livro que escrevi era para adultos, mas um dia, não sei porquê, decidi escrever um para crianças. Era A História da Papoila (Editorial Estúdios Cor, 1972), a minha flor preferida, símbolo da alegria e da espontaneidade.

A História da Papoila, o primeiro livro editado por Luísa Ducla Soares

Como não estava muito mal, fui a uma editora mostrá-lo. Quem estava na editora era o José Saramago, ainda pouco conhecido naquela altura. Disse-me para deixar o livro e voltar daí a um mês. Quando lá voltei, disse que tinha gostado muito e que o iam publicar rapidamente.

Para meu espanto, quiseram depois atribuir-lhe o maior prémio de literatura infantil daquela época, o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Ora, eu que costumava escrever muitos contos para o jornal Diário Popular, numa secção chamada Doutor Sabichão, pus-me a pensar: “Então eles [a Censura] cortam-me os contos no jornal e agora querem dar-me um prémio? Então expliquei que não aceitava o tal prémio.

O dono da editora ficou furioso, mas o Saramago disse: “Ó Luísa, faz muito bem, e para o ano quero que nos escreva seis livros!” E eu, que pensava que iria escrever para adultos, escrevi os seis, entusiasmei-me e continuei.

Prefere escrever à mão ou no computador?

Margot, a gata que gosta de poesia

Comecei por escrever tudo a lápis, porque gosto de apagar as palavras e não gosto de ver um texto todo riscado. Agora estou a ficar viciada no computador, mas poesia ainda escrevo à mão. Aliás, devo ser a única pessoa que escreve poesia em cima de uma gata.

A Margot gosta de se sentar no meu colo e eu, para não a afastar, comecei a pôr o caderno em cima dela. E não é que a gata gosta?

Costuma ler os livros que escreve?

Geralmente, não. Passo só os olhos quando estão prontos. Sabes quantos já escrevi? Mais de duzentos! Com tantos livros bons para ler, ia agora perder tempo a ler os meus! [Risos.]

Além de escritora, que outras profissões teve?

Quando estudava na faculdade, fazia traduções para ganhar algum dinheiro; fui consultora em algumas editoras; estive na direção de uma revista chamada Vida; trabalhei num jornal médico durante dez anos; depois estive no Ministério da Educação e trabalhei durante 30 anos na Biblioteca Nacional. Quando me reformei, comecei a andar em visitas pelas escolas por todo o País.

Para terminar, diga-me: para sermos bons escritores, em que é que temos de ser bons?

Essa é uma grande pergunta… E difícil de responder. Mas penso que o principal é amar a língua em que se escreve, senti-la e dominá-la. Imaginação também faz falta, e claro que ajuda ler outros escritores. Além disso, é preciso ter sensibilidade e os olhos abertos para o mundo, não só para o que se passa à nossa volta, mas também dentro de nós.

Diogo ficou a conhecer algumas das peripécias vividas pela escritora, que lhe disse que talvez um dia se inspire nos seus caracóis para uma nova personagem de um livro

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Acordamos com o coração acelerado, a mente cheia de tarefas por cumprir e a sensação de que o tempo não chega para tudo. A ansiedade instala-se de forma subtil e vai-nos ocupando por dentro – sem pedir licença.

Todos temos dias difíceis. Mas quando a ansiedade se torna rotina, o corpo e a mente começam a dar sinais. O problema é que, muitas vezes, ignoramos esses sinais porque achamos que “não é nada”. Só que é. E quanto mais cedo cuidarmos dela, mais leve se torna a vida.

A boa notícia? Cuidar da ansiedade não tem de ser um processo demorado ou complexo. Às vezes, bastam pequenas ações – microdesafios – que, repetidos diariamente, ajudam-nos a recuperar a sensação de controlo.

O que são microdesafios e como funcionam?

Na prática, são pequenas atividades com intenção.
Segundo a neurociência, o cérebro responde muito bem a ações curtas e repetidas que envolvam foco, segurança e bem-estar. Ao darmos pequenas pausas intencionais à mente, ensinamo-la a sair do piloto automático e a entrar no presente.

O segredo está na consistência, não na duração.

5 Microdesafios para Começar Já

1. Respirar para reiniciar
Durante 1 minuto, inspire pelo nariz em 4 tempos, segura 2, expira pela boca em 6. Repete.
É o atalho biológico para sair do modo “stress” e entrar em modo “presente”.

2. Dizer um “não” consciente por dia
Aprender a colocar limites reduz a sobrecarga e melhora o foco.
Pôr limites é como pôr protetor solar: no início parece opcional, mas depois percebe-se que salva a pele. Por isso, afirme mais vezes: “Não, hoje não vou responder a e-mails depois das 19h.”

3. 20 minutos longe de ecrãs
Afasta-te dos dispositivos e foque-se num estímulo real: ouvir uma música, olhar pela janela, conversar com um amigo ou vizinho.
A exposição contínua a estímulos digitais aumenta a tensão e o cansaço cerebral.

4. Criar uma âncora
Escolha uma palavra que lhe traga segurança (“agora”, “foco”, “força” “apressadamente”) e repita-a mentalmente nos momentos de maior ansiedade.
A repetição ativa o córtex pré-frontal e ajuda na regulação emocional.

5. Tarefa mínima com propósito
Quando tudo parece demasiado, escolha uma só tarefa concreta e termina-a.
A sensação de conclusão liberta dopamina e reforça a autoconfiança.

A mente não precisa de grandes soluções. Precisa de pequenos gestos com intenção.

Estes microdesafios não substituem terapia, mas podem ser o primeiro passo para reconstruir a sua autorregulação emocional.

E isso tem um impacto real e duradouro.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

No dia em que acordou da cirurgia de reconstrução mamária pós-mastectomia, Cláudia Kieffer sentiu-se bem como nunca. “Foi como se uma brisa de primavera tivesse soprado na minha cabeça e limpado todo o lixo que se acumulara durante anos”, contou ao Guardian.

E não era apenas por estar prestes a recuperar a sua autoestima. “Quando se sofre de depressão durante tanto tempo como eu, parece que estamos a afogar-nos”, comparou a norte-americana. “Por isso, ao aparecer algo que nos faz sentir muito diferentes e saudáveis, queremos saber que droga é essa.”

O ano era 2011 e Claudia acabara de se encontrar por acaso com a cetamina, um conhecido anestésico, com propriedades psicadélicas, que por aquela altura andava a ser testado em cada vez mais ensaios clínicos por causa dos seus efeitos antidepressivos.

No currículo, ela trazia três colapsos nervosos e outros tantos internamentos, uma dúzia de sessões de choques elétricos (terapia eletroconvulsiva) e muitos anos de automedicação. Já tentara todos os tratamentos disponíveis e pensava em suicidar-se todos os dias.

Claudia não descansou, por isso, até ser incluída num desses ensaios, passando mais tarde a receber infusões de cetamina uma vez por mês. Oito anos depois, ficava naturalmente feliz ao ver a Food and Drug Administration (FDA) aprovar o Spravato – um spray nasal com escetamina, que é uma forma de cetamina de ação rápida – como medicamento para a depressão.

“Agora tenho esperança”, dizia, então, a norte-americana ao Guardian. Além da facilidade em aceder ao novo tratamento, livrava-se do estigma de ter de recorrer a uma droga popular em festas e discotecas por provocar alucinações e experiências fora do corpo.

Milhares de euros

Há mais de três décadas que não havia uma novidade farmacêutica nesta área. A última tinha sido a fluoxetina, comercializada inicialmente como Prozac.

Março de 2019 entrou, por isso, para a História dos antidepressivos como o mês em que a agência norte-americana responsável pela regulação de fármacos autorizou finalmente um novo medicamento.

E o Spravato, da farmacêutica Janssen, apresentava bons resultados contra a depressão resistente, não era uma mera bravata.

Pouco depois, também a Agência Europeia de Medicamentos aprovou a sua utilização em caso de adultos com depressão grave, combinado com um antidepressivo convencional. E, logo no primeiro trimestre de 2020, vários países da UE avançaram com a comparticipação estatal.

Este componente da cetamina estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas, em vez de demorar dias ou semanas

Era só uma questão de tempo até o spray nasal com escetamina chegar a Portugal, sabiam os médicos que logo em 2019 olharam com esperança para as notícias vindas do outro lado do Atlântico.

Mas foi preciso esperar até este mês de maio para o Infarmed autorizar o seu financiamento a 100%, especificando ser para uso em meio hospitalar e em adultos “com perturbação depressiva major resistente ao tratamento, que não responderam a pelo menos três tratamentos diferentes com antidepressivos”.

A luz verde da Autoridade Nacional para o Medicamento e Produtos de Saúde foi recebida como uma “excelente notícia para os doentes”, repete desde então Albino Oliveira-Maia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, lembrando que o tratamento com Spravato era muito caro: “Correndo bem, podia chegar a várias dezenas de milhares de euros.”

A partir de agora, “a escetamina vai permitir tratar mais doentes, de uma forma equitativa, com maior rapidez e melhores resultados”, aplaude o também diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud.

O atraso de cinco anos em relação aos EUA e a tantos outros países explica-se pelo facto de o Infarmed repetir o processo de uma maneira muito rigorosa, sublinha o psiquiatra e investigador: “Temos um regulador com parâmetros técnicos de elevadíssima qualidade que aumentam as garantias do processo.”

Mudança radical

Percebe-se facilmente por que razão a comparticipação a 100% do Spravato é uma excelente notícia quando se pensa no problema que tenta resolver: a depressão refratária ou resistente ao tratamento.

Fala-se em depressão resistente quando a pessoa continua com sintomas apesar de ter sido tratada com dois medicamentos diferentes.

É uma situação clínica que preocupa os médicos porque existe evidência de que, depois de terem falhado dois medicamentos, a probabilidade de haver uma boa resposta a um terceiro é muito mais baixa.

“Ao segundo medicamento, um terço dos doentes vão ficar bem, mas, a partir do terceiro e para a frente, a probabilidade de uma remissão é apenas de 10% a 15%, ou seja, cai para metade”, faz notar Albino Oliveira-Maia.

Esses são os números dos antidepressivos convencionais. Depois, existem dois tratamentos não medicamentosos eficazes, mas de acesso difícil: a terapia eletroconvulsiva e a estimulação magnética craniana (ver caixa).

A primeira exige bloco operatório e a segunda uma máquina cara. “Os sistemas de saúde estão mal preparados para assegurar estes tratamentos”, lamenta o psiquiatra, “e, em paralelo, também devemos utilizar a psicoterapia, que é igualmente de difícil acesso”.

Já a escetamina apenas tem de ser administrada em ambiente clínico, sob supervisão médica, ficando o doente em observação durante cerca de duas horas após cada sessão.

Enquanto os chamados antidepressivos tradicionais atuam na bioquímica cerebral, interferindo em três neurotransmissores associados à sensação de bem-estar (serotonina, dopamina e noradrenalina), a escetamina atua sobre o glutamato, uma outra molécula da rede neural que estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas.

Três décadas depois dos primeiros estudos sobre cetamina, liderados por John Krystal, psiquiatra chefe da Escola de Medicina de Yale, nos EUA, pode dizer-se que os psicadélicos vieram operar uma mudança radical no tratamento da depressão resistente.

Claudia sentiu isso mesmo na pele. Diz que a cetamina lhe devolveu a vida.

Terapias eficazes, mas de acesso difícil

Ambas visam modificar a atividade elétrica e química cerebral para tratar a depressão e outras doenças psiquiátricas

ELETROCONVULSO-TERAPIA
Indicada para depressão grave com risco suicida, depressão com sintomas psicóticos, perturbação bipolar resistente, esquizofrenia refratária, entre outras.

Envolve estímulos elétricos controlados, sob anestesia geral curta e relaxante muscular.

Induz uma convulsão terapêutica que promove mudanças na atividadedos neurotransmissores, com a consequente melhoria rápida dos sintomas.

O protocolo padrão inclui 12 sessões de ciclo agudo.

Pode provocar perdade memória temporária.

ESTIMULAÇÃO MAGNÉTICA TRANSCRANIANA
Indicada para depressão resistente, perturbação obsessivo-compulsiva (POC), tratamento de zumbidos, cessação tabágica, ansiedadee défice cognitivo ligeiro.

É um tratamento não invasivo que usa pulsos magnéticos para estimular repetidamente regiões delimitadas do cérebro, modulando a atividade cerebral e reduzindo os sintomas.

Na depressão estimula-se o córtex pré-frontal dorso lateral esquerdo e na POC estimula-se o córtex orbitofrontal.

O tratamento dura entre 20 e 30 sessões diárias ou bidiárias.

Pode provocar uma leve dor de cabeça nas primeiras sessões.

Diz-se que a melhor maneira de contar uma história é começar in media res. Do meio se compõe a tessitura dos acontecimentos, que se vão revelando, camada após camada, com fios entrecruzados, até se ver surgir o tecido completo de uma vida.

A história do economista de sucesso que abandonou tudo, o conforto, o dinheiro, a convivência prolongada com a família, para se dedicar à fotografia também pode iniciar-se nessa mina de ouro com que se abre o documentário O Sal da Terra, realizado por Wim Wenders e pelo filho do fotógrafo, Juliano Salgado. Wenders, que sempre teve uma fotografia de Salgado à secretária (o retrato de uma mulher cega, que mesmo assim nos fita com olhos de não ver), comprara, anos antes, uma cópia da imagem dos homens transformados, eles próprios, em terra, «pareciam esculpidos em barro», no fundo de uma mina a céu aberto. É que estas fotos de «homens-terra», formigueiro de gente, silhuetas ocre que sobem e descem em carreiros a acarretar torrões, em composições miniaturais, e ao mesmo tempo demoníacas, à Hieronymus Bosch, têm já qualquer coisa de genesíaco. De inicial. Apesar de a carreira de Sebastião Salgado, nessa fase, ainda só ir a meio (entre 1986 e 1992 percorreu 26 países para a sua série O Trabalho). Quando Salgado, nos anos 80, se aproximou da boca desta mina de ouro no Brasil, na Serra Pelada, no Pará, uma cratera maior do que um estádio de futebol, e ouviu todo aquele rumorejar de 50 mil vozes humanas, vindas das entranhas, a 70 metros de profundidade, e os ruídos secos das pás e picaretas, sem qualquer motor mecânico, teve esta mesma sensação de génese: viu, numa fração de segundo, conta no filme, a história do mundo, a construção das pirâmides, da Torre de Babel, as Minas do Rei Salomão.

Foto: Sebastião Salgado

Lentidão
Mas estava muito longe de bater no fundo. Ali, «o gringo» (à época de barba e cabelo ruivo, impossível passar despercebido) viveu durante semanas com os mineiros. Sem mulheres num raio de 50 quilómetros, e uma violência latente. O trabalho era penoso, mas não eram escravos: «A não ser, talvez, da sua própria vontade de enriquecer», comentou a Isabelle Francq, no livro Da Minha Terra à Terra (lançado em Portugal em 2014, na editora Individual). Aliás, nesta mesma série dedicada ao trabalho, focada na produção em grande escala, em que procurou traçar «uma arqueologia visual» do que ainda restava da era industrial, de todos os trabalhos que testemunhou, em todos os continentes -desde a tecelagem no Bangladesh aos infernais po- ços petrolíferos em chamas no Koweit, o trabalho que mais o chocou encontrou-o nos EUA, num matadouro no Dakota, onde eram abatidos mil porcos por hora e duas mil vacas por dia: «Os trabalhadores repetiam incansavelmente o mesmo gesto sangrento, em salas sem janelas. O odor era insuportável. No primeiro dia, foi impossível tirar uma única fotografia, não parava de vomitar».

Mas para perceber como Sebastião Salgado conseguiu chegar até às profundezas mais tenebrosas do planeta é preciso ir encontrá-lo menino, na fazenda dos pais, situada em Minas Gerais, num vale tão grande que cobria a dimensão de Portugal. Aí, o único rapaz de sete irmãs teve o seu primeiro ensinamento: o da luz e o da sombra. Tem a sensação de ter crescido com a contraluz, as palas dos chapéus, as sombras das árvores onde o colocavam para proteger a pele branca: «Nessa altura não havia protectores solares». «Essa luz, esses espaços são a minha história». A segunda lição foi a do espaço aberto: nadava em riachos cheios de jacarés, galopava a cavalo, saía de manhã e só regressava à noite, percorria sozinho distâncias equivalentes às de Paris a Lisboa. Só para transportar os animais da quinta ao matadouro, ele e o pai levavam mais de um mês, era comum para ele fazer 50 dias de estrada; habituou-se às transumâncias, e sobretudo à lentidão, ao tempo de espera para conversar e admirar a paisagem (terceira lição): «Essa lentidão é a mesma da fotografia». E acrescenta: «Se não se gosta de esperar, não se pode ser fotógrafo. É preciso descobrir o prazer da paciência». Com os homens, o tempo de chegar, de se apresentar, conversar, conhecer as pessoas, até se tornar parte da paisagem. Mas também os animais, conta, neste último seu projeto Génesis, em que, ao longo de oito anos, viajou pelos lugares ainda preservados do planeta. Até aqui só tinha fotografado uma única espécie: os humanos. Quando passou a fotografar animais, percebeu que era também essencial um pacto de respeito mútuo. No filme, vê-se a espera de Salgado, no Ártico, numa espécie de contentor de vigia, a aguardar que um urso branco lhe permita a passagem para uma comunidade de morsas. Ou, relata nesse livro, a vez em que levou um dia para se aproximar, nos Galápagos, de uma ancestral tartaruga de 200 quilos, que, quem sabe, até se cruzou com o próprio Darwin, na viagem do navio Beagle… De cada vez que se aproximava da tartaruga, ela afastava-se, não conseguia fotografá-la. Fez como com os humanos, nunca chegar de surpresa, ou incógnito; teria de travar também conhecimento com o monumental réptil: «Fiquei agachado e comecei a andar à mesma altura que ela, mãos e joelhos no chão. A tartaruga parou de fugir. Quando se deteve, fiz um movimento para trás, ela avançou na minha direção e dei eu mais uns passos atrás» o tempo necessário «para a fazer entender que respeitava o seu território». Em Génesis (ver caixa), Salgado não se comportou como zoólogo ou jornalista. Queria homenagear o planeta, constatar que, apesar de tudo, ele ainda está vivo. E a ideia surgiu após décadas a fotografar a crueldade e a loucura feroz mais extrema da humanidade, as catástrofes desnaturais, os 150 quilómetros de mortos no Ruanda, os campos de refugiados e fome em África, as atrocidades inimagináveis nos Balcãs. Voltou doente, nunca acreditou que pudesse reaparecer tanto ódio étnico e tamanha brutalidade na Europa, depois dos massacres e genocídios que presenciou em África.

Foto: Sebastião Salgado

Regressou à terra. Há sempre um regresso à terra. À sua terra de infância, onde dantes havia mata Atlântica que cobria metade do vale (o tal que era do tamanho de Portugal). A desflorestação descontrolada tornou-a feia, pobre, desolada. Ele e Lélia, sua mulher e sócia de sempre, criaram o Instituto Terra, projeto ambiental para repor o ecossistema, já com dois milhões de árvores plantadas. Foi daí que partiu a ideia de fotografar árvores, seixos, aves, os olhos dos gorilas, a mão de uma iguana como a de um soldado numa armadura medieval, as rugas de uma tartaruga do tempo de Darwin. Quase como se, ao fazer este outro trilho no seu percurso de fotógrafo, precisasse de uma desintoxicação, de uma limpeza por dentro. Encher-se de beleza, esperança e confiança depois de ter testemunhado tanta agrura, carência de quase tudo, mas também muita dignidade em sítios e circunstâncias onde ela se julgara impossível.

Uma forma de escrita universal
Desde muito cedo, enquanto estudante de Direito (depois acabou por se doutorar em Economia), apercebeu-se de que o mundo está dividido em dois: «De um lado a liberdade para aqueles que têm tudo e do outro uma privação de tudo para aqueles que não têm nada».

A aproximação à «fotografia social» aconteceu-lhe como um prolongamento do seu envolvimento político e das suas origens. O que os escritores relatam com a caneta, ele retrata com as câmaras. Para ele, a fotografia é uma forma de escrita, talvez a mais universal, como a utopia do esperanto concretizada. Com a vantagem de poder ser lida em qualquer lado, sem tradução. O preto e branco é uma abstração, irreal: trata-se de reconstituir as suas emoções através das várias gamas de cinzento. Frações de segundo que contam a história de uma vida ou de um povo. «É uma paixão, porque amo a luz, mas também uma linguagem poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria ir a todos os locais onde a minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também a todos os locais onde houvesse injustiça social, para a descrever melhor».

O mais incrível é que um dos mais célebres e premiados fotógrafos do mundo pegou numa máquina fotográfica quase por acaso, e já adulto e casado. O pai queria-o fazendeiro ou estudante de Direito.
Ingressou em Direito, acabou por terminar Economia. Eram os tempos do presidente Kubitschek, «o Brasil começava a despertar de um sono de 400 anos, tivemos a sensação de viver num país novo», e in teressava-lhe não a economia empresarial, mas a macroeconomia e as finanças públicas. O menino do interior vivia agora em São Paulo, onde integrava um grupo restrito de formação de altos quadros para fazer face às necessidades do país. Doutorou-se em Paris, já exilado, em fuga da ditadura militar pela sua militância ativista muito próxima dos partidos comunistas e de esquerda. Em Londres, arranjou um cargo internacional na Organização Internacional do Café. Começou a ganhar muito bem, o casal comprou um apartamento perto de Hyde Park, um magnífico carro desportivo. O trabalho de economista levava-o a África. Vinha de lá muito mais satisfeito com as suas fotografias do que com os relatórios económicos. Em África reencontrou-se com o Brasil que lhe estava interdito, e aos 29 anos desistiu da sua promissora carreira para se dedicar ao instável mundo da fotografia independente.

Foto: Sebastião Salgado

A importância de regressar
Quando pegou pela primeira vez numa câmara, comprada pela mulher, estudante de arquitetura, teve de ler o manual de instruções para perceber como funcionava. O casal largou o apartamento, o carro, o salário e partiu para a zona do Níger, para as regiões onde as organizações internacionais combatiam a seca e a fome. Lélia estava grávida do primeiro de dois filhos Juliano, o corealizador do documentário. Foi duro, passaram por situações complicadas, «mas apaixonante, sentíamos que as nossas imagens podiam ser úteis». Ao fim de 40 incursões a África, em 30 anos, publicou o livro África (2007). Não lhe interessavam as paisagens, muito menos o foclore. Mas a fome, as migrações em massa. Sempre numa lógica de trabalho de longo prazo, em vez de saltitar de um tema para o outro. «A única forma de contar histórias é regressar ao mesmo local diversas vezes». Só os meses que passava com as pessoas, os percursos que palmilhava com elas, as noites em que dormia nos campos de refugiados, ou o acompanhamento a tempo inteiro do Movimento dos Sem Terra, davam coerência aos seus projetos. E é assim que procede há mais de 40 anos. Chegou a estar 18 meses no Mali, na Etiópia, no Chade, no Sudão. E as suas fotos são esmagadoras quando mostram vultos errantes nos campos onde se amontoavam 80 mil desterrados, ou a famosa imagem dos três bebés famélicos, envoltos, em que apenas pelos olhos opacos de um deles se pressente a morte. Os sete anos em que viajou pela América Latina parecem-lhe sete séculos: «Permitiu-me viajar através de culturas onde o tempo se desenrola ao ritmo do passado».

Por todo o seu percurso, por ter assistido de muito perto às gritantes injustiças sociais, por ter sido, também ele, um perseguido e exilado político, sente uma enorme alegria ao ver que os outrora torturados e presos, como Lula ou Dilma, estão agora no poder. Não se considera fotojornalista, nem ao serviço de uma militância. Rejeita a ideia de voyeurismo, apenas tem consciência do desequilíbrio mundial. «Todas as minhas fotos correspondem a momentos que vivi intensamente. Uma raiva dentro de mim levou-me àqueles locais». E não prega a objetividade: «Fotografo em função de mim mesmo e assumo-o». Geralmente fotografa as pessoas de frente, ninguém se furta às suas objetivas e tacitamente autorizam. Parte do seu trabalho prévio é dedicado a conhecer e falar com as gentes. «Nenhuma foto, por si só, pode mudar seja o que for na pobreza do mundo», admite no livro Da Minha Terra à Terra. Mas aliadas a textos e à ação das organizações humanitárias e ambientalistas, engrossa-se o vasto movimento de denúncia.

Palavras-chave:

Cor. Brilho. Modernidade. Esta era a santa trindade da Imprensa da década de 1980, com as grandes revistas internacionais a apostarem milhões na reconversão para as páginas a cores.

Por isso, quando Sebastião Salgado explicou a Neil Burgess (que acabava de ser nomeado diretor da Magnum, em Londres, em 1986) que pretendia dedicar os anos seguintes a fotografar apenas a preto-e-branco as vidas de trabalhadores pobres e explorados em 42 locais do mundo, ele deitou as mãos à cabeça. Comercialmente, o projeto do fotógrafo brasileiro tinha tudo para ser um desastre.

Alguns meses mais tarde, Salgado telefonou-lhe contando que acabara de regressar do Brasil, onde decidira iniciar o projeto que daria origem ao livro Trabalho. Agora, dizia, precisava que a Magnum vendesse algumas dessas fotografias, para prosseguir para os 41 destinos que lhe faltavam.

“Perguntaram quanto custava o trabalho e eu pedi o dobro do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’”

No escritório da Magnum foi entregue uma caixa com 40 fotografias impressas em 24 x 30 cm, e Burgess ficou deslumbrado, como veio a contar, em 2019, ao British Journal of Photography. Ligou para Salgado, que havia sugerido tentar a publicação na Granta, e disse-lhe que uma das grandes revistas iria comprar a reportagem. Ele achava improvável porque a serra Pelada já tinha sido fotografada por outros, incluindo pelo correspondente da Magnum no Brasil, Miguel Rio Branco. Mas todos fizeram fotos a cores, passando apenas um dia ou dois a registar o espetáculo de 50 mil homens a procurar ouro na lama, no meio da Amazónia.

Uma das fotos inéditas publicada na nova edição de “Gold”, revelando o formigueiro de homens que procurava ouro na Amazónia brasileira
© Sebastião SALGADO

Salgado, por outro lado, fotografou a preto-e-branco e viveu quatro semanas com os “peões” num “barraco”, acompanhou todas as fases daquele trabalho colossal, ouviu-os falar dos seus sonhos e dos monstros que os atormentavam.

Essa imersão nos assuntos retratados foi sempre condição essencial para o trabalho do brasileiro, mesmo quando fotografava para as agências de notícias (e a cores), em que iniciou a sua carreira, no final da década de 1970. Em 1983, durante a grande vaga de fome na Etiópia, por exemplo, fixou-se num campo de subnutridos e criticava os jornalistas que mal contactavam com a realidade que pretendiam retratar – viu 34 equipas de reportagem a chegarem e a partirem durante os dez dias em que ali permaneceu.

“A paciência e a concentração necessárias para permanecer num só lugar, para tentar ver além das primeiras impressões, para se forçar a olhar para um assunto de maneiras diferentes, sob diferentes luzes, e depois voltar e olhar novamente, é algo essencial”, considera o ex-diretor da Magnum, que, uma hora depois de receber as fotografias de Salgado, estava a entrar no gabinete do editor de arte do Sunday Times.

Michael Rand, um homem pioneiro na introdução da cor nos suplementos de fim de semana, seria, talvez, o pior interlocutor possível para a venda de um portefólio a preto-e-branco, e Neil Burgess não havia revelado nada sobre o trabalho que iria apresentar, temendo que Rand nem sequer aceitasse vê-lo.

© Sebastião SALGADO

Durante uns instantes, depois de dispor sobre a mesa algumas das fotografias da corrida ao ouro no Brasil, instalou-se um silêncio incómodo na sala e Burgess temeu o pior. Mas, quando olhou para o rosto de Michael Rand, percebeu que era “um silêncio bom”, quase reverencial. Poucas foram as vezes que ele sentiu nos editores internacionais esse respeito que se mistura com o encantamento, como uma espécie de feitiço que conduz à rendição total. “Perguntaram quanto custava e eu pedi o dobro do preço do portefólio mais caro que já tinha sido vendido pela Magnum… Estenderam-me logo a mão: ‘Ok’.”

A reação foi semelhante na revista do New York Times, quando o editor de fotografia, Peter Howe, mostrou as fotos de Salgado à direção do jornal. “Em toda a minha carreira, nunca vi os diretores reagirem a um trabalho daquela forma”, escreveu Howe, no mês passado, a propósito da nova edição em livro desta reportagem, com a chancela da Taschen.

Na manhã seguinte à publicação, os telefones da Magnum não paravam. Editores de todo o mundo queriam comprar as fotografias e, a partir de então, Sebastião Salgado teve financiamento garantido para percorrer o mundo e ir publicando, reportagem a reportagem, o portefólio que, anos depois, seria agregado na obra Trabalho.

© Sebastião SALGADO

O retrato da escravidão a que aqueles homens se sujeitavam viria a garantir a sua liberdade como autor. Quem viu as fotografias do formigueiro de homens cobertos de lama naquela mina de ouro nunca mais esqueceu o nome de quem estava atrás da câmara.

Salgado também guardou para sempre o que sentiu na serra Pelada. “Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho”, escreveu na introdução de Trabalho.

“Só se ouvia o rumor humano, murmúrios e gritos silenciados e o ruído de pás e enxadas impulsadas por mãos humanas, nenhum som de máquina.” Num local onde estavam proibidas as armas de fogo, o álcool e as mulheres, “havia uma indizível necessidade de tudo, de afeto, de calor humano. Havia um perigo constante e uma vida sem consolo. Escravos da ilusão, revolvendo a terra”.

Ali tive uma visão dilacerada e definitiva do bicho-homem: 50 mil criaturas esculpidas em lama e sonho

Sebastião salgado

Só permanecendo e conquistando a confiança dos homens que Salgado pretendia retratar foi possível fixar em película a esperança e a violência latentes naquela cratera com contornos irreais, de outro mundo ou de outros tempos.

Só assim foi possível ver além da lama que cobria aqueles milhares de corpos e conhecer histórias únicas, como a do dirigente sindical que liderava a ala dos mineiros homossexuais. “Era um valente, respeitado por todos, e sonhava encontrar ouro e ir para Paris”, recorda Salgado. O seu grande sonho era pôr seios de silicone. “Ninguém, como os franceses, para este tipo de operação. Os de Paris são os seios mais lindos do mundo”, dizia.

Provavelmente este mineiro nunca terá saído do Pará, como a grande maioria dos “peões” que ali perdeu anos de vida a correr atrás de uma miragem. A serra Pelada “secou” pouco tempo depois, e desses tempos restam apenas as lendas sobre pepitas do tamanho de couves – e as imagens que Salgado nos deu.

Dois livros e uma exposição

Sebastião Salgado voltou a olhar para os 400 rolos fotográficos que trouxe da serra Pelada, em 1987, para selecionar as 300 imagens (31 das quais inéditas) que integram o novo livro Gold, publicado, em novembro de 2019, pela Taschen, em três versões: uma para o público em geral (€50) e outras duas para colecionadores. A edição XXL custa €800 e cada livro está numerado e assinado pelo autor; a Art Edition, numa caixa em tons de terra, com uma fotografia impressa assinada pelo fotógrafo, custava 5000€ (já está esgotada). Editado em várias línguas, o livro tem uma edição trilingue (português, italiano e espanhol), com um texto de enquadramento do jornalista Alan Riding, antigo correspondente internacional do New York Times.

Em simultâneo, foi também criada uma exposição com 56 imagens inéditas, inaugurada em São Paulo, no Brasil, não havendo ainda informação sobre a sua passagem por Portugal, embora existam já datas para a sua apresentação em Londres, Talin e Estocolmo.

Sebastião Salgado formou-se em Economia, mas a paixão pela fotografia levou-o a arriscar uma carreira como fotojornalista, em 1973. Trabalhou para as agências Sigma e Gamma e, em 1979, passou a integrar a Magnum. Queria conhecer e dar a conhecer o mundo, compreender as motivações dos homens, documentar uma sociedade em mudança – e foi isso que fez nos últimos 40 anos. Depois de Trabalho, iniciado com as fotografias na serra Pelada, dedicou vários anos aos livros Terra, Êxodos, África e Génesis, entre outros projetos-causa. Da militância fotográfica passou à militância efetiva, em 1998, ao fundar o Instituto Terra (com a mulher, Lélia Wanick Salgado), promovendo a educação ambiental e a recuperação da mata atlântica e das florestas da Amazónia. Venceu o World Press Photo e o Prémio Príncipe das Astúrias, entre dezenas de distinções, e, em 2017, passou a ocupar a cadeira nº 1 das quatro existentes para fotógrafos na Academia de Belas-Artes de França. Tem 75 anos e, apesar de ter casa em Minas Gerais e em Paris, vive quase sempre em viagem.

“Temos a certeza que nenhum dos nossos associados esteve presente nessas referidas manifestações espontâneas”, diz à VISÃO Bruno Gonçalves, da associação Letras Nómadas, uma das associações de ciganos visadas nas declarações de André Ventura que, em reação à investigação de que está a ser alvo por alegadas declarações xenófobas contra esta comunidade, apontou o dedo às organizações que, em seu entender, não repudiaram atos de violência de que diz ter sido alvo durante a campanha das legislativas.

Bruno Gonçalves assegura que as associações que representam os ciganos em Portugal se demarcaram desses protestos. Para o provar, mostra uma notícia publicada no Expresso, no dia 10 de maio. O título é: “Associações de ciganos processam Ventura pelo ‘discurso de ódio’, mas dizem que manifestações contra o Chega são espontâneas’”.

Nesse texto, Gonçalves afirmava que os protestos “não têm nada a ver com as associações”, mas são “legítimos, porque as comunidades estão muito cansadas”. E defendia que esses protestos só ajudariam Ventura.  “Fazer manifestações ainda lhe dá mais votos, porque adora vitimizar-se”, afirmava Bruno Gonçalves ao Expresso, anunciando ter avançado com queixas-crime no Ministério Público por mensagens “de teor racista” e a “incitamento ao ódio” que o líder do Chega publicou nas redes sociais. “Vamos usar os instrumentos do Estado de direito, em que todo o prevaricador tem de ser alvo da justiça”, declarava.

O dirigente associativo diz agora à VISÃO que as queixas foram entregues no dia 17 de abril, muito antes dos protestos em que Ventura foi alvo de alegados ataques por parte de membros da comunidade cigana.

Mais uma vez, Bruno Gonçalves repudia as generalizações. “Durante uma entrevista conduzida por  José Alberto Carvalho, ao ser confrontado com os casos do Chega,  André Ventura respondeu com  uma pergunta: ‘Se o José Alberto Carvalho for roubar um carro, é a TVI a responsável?’, insinuando assim, que o partido não se pode responsabilizar pelos seus militantes ou deputados. Da mesma forma, estas associações ciganas, não podem ser responsabilizadas pelos comportamentos de alguns cidadãos ciganos…”, argumenta.

Bruno Gonçalves diz estar apreensivo com o aumento de casos de ataques verbais e agressões a ciganos depois do resultado eleitoral que reforçou a representação parlamentar do Chega. “Estamos muito preocupados. Há já vários relatos. Há uma desumanização total dos ciganos”, critica, notando que, ao contrário do que afirma o dirigente do Chega, a comunidade cigana está longe de ser privilegiada em Portugal. “Em média, os ciganos vivem menos 12 anos do que a generalidade dos portugueses. Isso tem que ver com vários fatores, entre eles a iliteracia, a falta de acesso a educação e saúde. São problemas que em 500 anos não conseguimos resolver”.

Queriam eliminar-me a mim e à minha família”, diz Ventura

Na sequência da abertura do inquérito por parte do Ministério Público, André Ventura deu uma conferência de imprensa para anunciar que irá apresentar à Justiça as ameaças que recebeu.

Ventura afirma ter sido “ameaçado de norte a sul” durante a campanha eleitoral, tendo mesmo sido alvo de lançamentos de material pirotécnico, que “passaram a centímetros” do deputado. “Queriam eliminar-me a mim e à minha família”, acusou.

Esta quarta-feira, em entrevista à TVI/CNN, André Ventura voltou a visar os ciganos.  “Não quero tirar direitos a ninguém. Quero é que todos cumpram os mesmos deveres que têm que ser cumpridos em Portugal. Não quero que ninguém tenha privilégios por ser cigano: não tem que ter casa por ser cigano; não tem que ter um regime especial na justiça e poder casar com 13 anos por ser cigano”, disse.

Ciganos sem regime especial

Como concluiu o jornal Polígrafo, não é verdade que os ciganos tenham algum regime jurídico especial que lhes permita casar antes da idade legal. De resto, a comunidade cigana não recebe nenhum apoio específico, acendendo a apoios sociais, como o RSI, de acordo com a condição de recursos, como qualquer outro português. Segundo dados de 2019, apenas 3,8% dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção eram de origem cigana.

Para contribuir para a ideia de que os ciganos são privilegiados, o Chega tem feito eco nas redes sociais de um projeto em Amarante de habitação para ciganos que viviam em barracas, aprovado em 2025. Apesar de haver programas específicos para albergar comunidades ciganas em zonas em que estavam a viver sem condições mínimas de habitabilidade, na generalidade dos bairros sociais em que vivem os ciganos acedem às habitações seguindo o mesmo procedimento que outros portugueses que se candidatam a receber essas casas.

O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 77 anos, habituou-nos a trabalhos fotográficos únicos e monumentais. Mal terminou Genesis, um projeto de oito anos em que documentou o planeta intocado (e que a VISÃO publicou em fascículos), mergulhou na Amazónia, onde tinha estado pela primeira vez ainda na década de 1980. O resultado das 48 viagens – será mais rigoroso falar em “expedições” – está reunido num livro e numa majestosa exposição que inaugurou a 20 de maio na Philharmonie de Paris, onde pode ser vista até 31 de outubro. A mostra, comissariada pela sua mulher, Lélia Salgado (que desta vez o acompanhou em algumas viagens), seguirá para Londres, Roma, São Paulo e Rio de Janeiro. Sebastião Salgado gostaria muito de a trazer a Portugal, e está a trabalhar nisso. A partir do seu escritório em Paris, o fotógrafo respondeu, via Zoom, às perguntas da VISÃO. “Estou satisfeito por as coisas irem direitinhas, mas triste com essa história da Covid, porque a gente não viaja mais. Ficou a vida meio sem perspetiva, né? Mas estamos aí!”

Quando surgiu a ideia de fazer um livro e uma exposição sobre a Amazónia?
Para o Genesis, trabalhei muito na Amazónia. Já lá tinha estado antes e constatei que a situação não era mais a mesma: o ecossistema estava realmente em perigo e as tribos estavam ficando expostas. Então, mal terminei a montagem de Genesis no Rio de Janeiro, em maio de 2013, voei para a Amazónia. Este é um trabalho que fiz durante sete anos, entre 2013 e o final de 2019. A Amazónia está muito ameaçada. O resultado é um livro grande, com mais de 500 páginas, editado pela Taschen; um segundo livro, mais pequeno, também da Taschen; e uma exposição. No total, fiz cerca de 48 viagens à Amazónia. Nos últimos sete anos, passei a maioria do meu tempo lá. Entreguei-me à Amazónia. Vivi com 12 tribos indígenas e tirei muitas fotografias aéreas, principalmente com o Exército brasileiro. Isso permitiu-me fazer uma outra representação da Amazónia. 

Que nova representação é essa?
Nas fotografias e nos filmes que conhecíamos, a Amazónia é uma enorme planície com grandes rios, mas, na verdade, tem muitas montanhas – aliás, o pico mais alto do Brasil fica lá – e eu apresento as montanhas da Amazónia. Trabalhei muito nos sistemas de águas, nos sistemas de chuvas, de rios e, principalmente, dos rios aéreos. Os rios aéreos são um conceito inteiramente novo, que apareceu há uns cinco anos: os cientistas constataram que o espaço amazónico é um dos poucos no planeta que não precisam da evaporação da água do mar para garantir o sistema das chuvas. É autossuficiente. Cada árvore evapora, em média, mil a 1 200 litros de água por dia – isso forma nuvens colossais. Uma parte delas precipita sobre a Amazónia e garante o ciclo, mas outra parte vai embora e garante a distribuição de humidade e chuva no planeta. Por isso, a Amazónia é primordial para a sobrevivência inteira da Terra. 

Chuva de rios aéreos, estado do Acre

Para este projeto, revisitou tribos onde tinha estado ainda nos anos 80, como os yanomamis e os xingus. Que diferenças encontrou? 
Eles adquiriram hábitos da nossa sociedade. Por exemplo, tribos onde as mulheres andavam inteiramente nuas já tapam o sexo e algumas, agora, usam sutiã. Houve esse tipo de influência, mas a cultura mantém-se. Sabe, os indígenas têm uma tradição muito grande. Os xingus foram contactados nos anos 40 e muitos foram para a cidade, porque tinham curiosidade; a maioria morreu de tristeza. Sentiram que não eram assimilados, que precisariam de gerações para se integrarem numa outra sociedade. Então, uma parte regressou, reassumiu a sua condição dentro da tribo e fez todo um trabalho de proteção da cultura e da língua. Hoje, os xingus são uma base forte da cultura indígena, mas uma cultura indígena que já experimentou a cultura ocidental e que optou pela sua. Isso é muito interessante. Outros indígenas, como os yawanawás, que vivem no Acre, bem longe, foram violados pela gente que veio do Nordeste do Brasil para a Amazónia no início do século passado por causa da exploração da borracha. Em frente à principal aldeia yawanawá, Nova Esperança, havia, do outro lado do rio, uma cidade com cerca de 3 500 brancos. Esses brancos usavam os índios como guias dentro da floresta, corromperam-nos, e os yawanawás foram quase dizimados. Mas tiveram uma vantagem: os brancos estavam lá não para destruir a floresta mas para extrair a seiva das árvores. Com a decadência da borracha, os brancos foram-se e os índios conseguiram o reconhecimento do seu território. Os yawanawás  passaram de uma centena a alguns milhares, hoje. Recuperaram a cultura, a língua, o modo de viver. São novamente índios totalmente integrados na Natureza. Há de tudo na Amazónia! Para ter uma ideia: só na Amazónia brasileira, há cerca de 102 grupos que nunca foram contactados. São a pré-história da humanidade que vive dentro da floresta. 

Aldeia de Mutum, território dos yawanawás, estado do Acre

Fez estas viagens sozinho?
Não. Para se andar na Amazónia, é mesmo preciso organizar expedições. E eu paguei do meu bolso todas as viagens. Antigamente, garantia o financiamento dos projetos publicando as minhas fotografias na Imprensa do mundo inteiro. Hoje, a Imprensa ou não tem dinheiro ou não está interessada em gastar dinheiro em fotografia, mas felizmente vendo muito para colecionadores e para museus. Paguei o projeto todinho, com dinheiro da fotografia. 

Quem levou consigo?
Éramos dez a 15 pessoas. Precisava de levar dois ou três canoeiros, porque,  como íamos com bastante carga, precisávamos de vários barcos. Navegar nos rios grandes, largos, da Amazónia não tem problema, é só uma questão de saber onde estão as ilhas. Mas os rios menores são complicadíssimos! Com as cheias, dá-se o solapamento dos barrancos e as árvores caem dentro dos rios. Então, para navegar, tem de se passar no meio das árvores. São necessários barcos especialíssimos, relativamente leves, com um tubo no fim do qual está uma hélice, a três metros de distância da proa. Quando se passa por cima de uma árvore, levanta-se o tubo, a hélice sobe e o barco desliza. Se a hélice tocar na árvore, acabou. Como íamos com bastante carga, tínhamos de levar três ou quatro barcos. Tinha também de ter, pelo menos, dois capitães do mato, homens que conhecem tudo da floresta e que se orientam dentro da mata tão bem quanto os indígenas.  Precisava de carregadores para ajudarem com todo o material, não só o material fotográfico mas também a comida: arroz, feijão, sardinha, linguiça defumada, cebola, alho, sal, panela, tudo… A lei não permite que nos alimentemos da comida dos indígenas. Além disso, tinha de levar um antropólogo, um sociólogo, às vezes um tradutor. Para chegar às tribos, precisava de uma autorização da FUNAI, a Fundação Nacional do Índio. Tinha de ir a Brasília, explicar onde queria ir, submeter o meu projeto… Hoje, a FUNAI é uma instituição que trabalha para o agronegócio, completamente deformada pelo sistema Bolsonaro. Mas a tradição da FUNAI é ter excelentes antropólogos, sociólogos, pessoas que cuidam a sério da proteção indígena. Quando o projeto era aprovado, a FUNAI tinha de enviar uma pessoa à tribo, reuni-la, propor-lhe a minha visita e regressar a Brasília. Se a tribo não aceitasse, eu não podia ir. Todas essas despesas foram assumidas por mim. Cheguei a esperar um ano e meio por uma autorização. E, às vezes, com a autorização na mão, eu partia e vinha de lá uma mensagem dizendo que, afinal, já não podia ir. Aconteceu-me isso com os suruwahás. São uma tribo em que se acredita que quando se morre jovem se vai para uma espécie de paraíso e, por isso, os mais novos fazem suicídios coletivos. Tinham-se suicidado seis jovens, e pediram para eu não ir. 

Montanha na região de Marauiá, território dos yanomamis, estado do Amazonas

E as fotografias aéreas?
Para as fazer, vivi com o Exército dentro da selva. O Exército tem 23 quartéis na Amazónia e 80% dos soldados são indígenas. Depositei 45 mil litros de combustível de helicóptero nos depósitos do Exército, de onde iam deduzindo o combustível de todas as missões que fizemos fora do circuito das operações do Exército. Não foi fácil de organizar… Eu tinha realmente de estar com muita vontade de ir para a Amazónia e fazer esse projeto.

Qual é a reação dos indígenas quando se veem nas fotografias?
Mandei fotografias para todas as tribos com quem trabalhei, sem exceção. Eles gostam de se ver, mas a grande curiosidade deles não era tanto pela fotografia – era pelo meu canivete suíço, pela minha faca, pelas coisas que lhes podiam ser úteis dentro da floresta. Mas a FUNAI pedia-me para de forma alguma lhes dar as minhas coisas, para não corromper a cultura deles.

Território indígena do Vale do Javari, estado do Amazonas

Houve viagens muito longas?
Houve viagens de três meses e meio. Às vezes, para chegar a uma tribo, navegámos oito dias. E, chegando lá, ainda tive de fazer quarentena na base da FUNAI. Também me aconteceu chegar ao lugar de uma tribo e não estar lá ninguém porque tinham ido caçar, e ter de esperar quatro ou cinco dias. 

E precisava de tempo para se integrar, antes de começar a fotografar?
Normalmente não. Quando você chega, é sempre feita uma grande reunião. Os indígenas são muito parlamentadores. Gostam muito de conversar, gostam muito de explicações. Querem saber exatamente quem é você e o que quer fazer. Às vezes, são conferências que duram cinco horas, porque há muitas participações. Depois da conversa, você já é aceite.

Seria possível fazer este projeto hoje, com a FUNAI sob a alçada do Governo de Bolsonaro?
Seria impossível. Hoje, a FUNAI só autoriza a penetração em território indígena de pastores pentecostais, porque Bolsonaro é ligado a essas religiões. Essas religiões acreditam que o regresso de Cristo à Terra só se vai realizar quando houver uma conversão do planeta inteiro. Portanto, a sua primeira missão é catequizar os indígenas, para trazer a alma deles para o Senhor… Uma dessas igrejas chama-se até Novas Tribos. A FUNAI tornou-se um facilitador do agronegócio e da violação do território indígena. Uma instituição que tradicionalmente era dirigida por sociólogos, antropólogos, académicos tem, hoje, à sua frente um delegado da polícia federal. E o novo presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o IBAMA, é um coronel de polícia, que retirou toda a proteção da floresta amazónica, mantida pelos fiscais do IBAMA, e colocou lá polícias da sua confiança para permitir a penetração total. A Amazónia está a ser destruída ao mais alto nível: as instituições que deveriam proteger tanto os indígenas como a floresta são facilitadores do agronegócio e das religiões pentecostais. Mas tudo isso é temporário. Acho que Bolsonaro não vai ser reeleito no próximo ano e a FUNAI voltará a ser a FUNAI, e o IBAMA voltará a ser o IBAMA. 

Território indígena do Vale do Javari, estado do Amazonas

Há esperança, portanto? A Amazónia ainda tem salvação?
Tem total salvação. Vinte e cinco por cento da Amazónia é território indígena protegido pela Constituição de 1985. Um juiz ou um procurador tem direito a solicitar a expulsão de qualquer invasor. Depois, 24,9% da Amazónia são áreas de preservação permanente, parques nacionais. Então, cerca de 50% da Amazónia está protegida por lei e, hoje, estamos a trabalhar muito perto do poder judiciário no sentido de fazer exercer a lei. A Amazónia tem 17,2% do território destruído, e essa destruição passou-se sobretudo nas terras públicas, que representam cerca de 49% da área. Sobram, então, cerca de 32% de terras públicas, das quais uma grande maioria são florestas inundáveis, que passam seis meses debaixo de água e não são adaptáveis, de forma alguma, à agricultura. Se conseguirmos defender as terras que a Constituição protege, quase garantimos o espaço amazónico. 

É possível garantir, no Brasil de hoje, que a lei é cumprida?
A lei é o nosso grande aliado. Bolsonaro tenta desestabilizar a lei e destruir as instituições, mas, para mudar a lei, precisa de aprovação nas duas câmaras. Temos grandes chances de proteger uma boa parte da Amazónia.

Floresta que fica submersa (igapó) nas margens do rio Negro, estado do Amazonas

No ano passado, lançou um manifesto, ao nível mundial, assinado por 67 personalidades, pedindo uma cintura sanitária que protegesse a Amazónia da Covid. Teve impacto?
A Lélia [Salgado, sua mulher] e eu pagámos do nosso bolso uma página inteira de anúncio nos principais jornais brasileiros para publicar o manifesto. E o impacto na opinião pública brasileira, que até podia ser o país do mundo menos preocupado com a Amazónia, foi incrível. Houve um despertar dos brasileiros em relação à extinção da comunidade indígena. Esse foi o primeiro lado positivo. O segundo lado importante: o manifesto era dirigido aos três poderes que compõem o Estado – o executivo, o legislativo e o judiciário. O executivo teve uma reação negativa; eu tinha feito uma doação de fotografias de tribos indígenas à FUNAI e a FUNAI fez questão de mas devolver, como se pudesse devolver algo que pertence ao Estado brasileiro. Consegui que a sexta sessão da Procuradoria-Geral da República aceitasse as fotografias até a FUNAI voltar a ser FUNAI. Quanto ao legislativo, não houve qualquer comentário, exceto o de um ou outro deputado ou senador a título individual. Mas o poder judiciário teve uma reação colossal. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça criou um grupo de videoconferência com juízes e procuradores, e começámos logo a trabalhar em cima da lei de proteção, ao ponto de, no momento de redigir a proposta de vacinação no Brasil, ter sido decidido que as comunidades indígenas seriam as primeiras a ser vacinadas. Oitenta por cento das comunidades indígenas foram vacinadas. Os outros 20% são índios que vivem em tribos isoladas e indígenas que não se quiseram vacinar, influenciados pelas seitas americanas. A reação a esse manifesto foi, portanto, fantástica. 

Comunidade de Piaú, território dos yanomamis, estado do Amazonas

Esta exposição tem características muito diferentes das suas outras exposições?
Completamente. É uma exposição muito especial, com música composta por Jean-Michel Jarre, que utilizou sons da Amazónia guardados no acervo do Museu de Genebra. É uma música longa, com 52 minutos, que funciona como fio condutor da exposição.

Porque sentiu necessidade de ter música?
Foi a Lélia. Ela queria absolutamente ter os sons da floresta na exposição. A Lélia desenhou essa exposição de uma maneira muito especial. As fotos não são colocadas na parede, mas penduradas a partir do teto, com uma fotografia na frente e outra atrás. O visitante entra e vai circulando entre fotografias de paisagens da Amazónia, como se estivesse dentro da floresta. No centro do espaço, Lélia colocou três construções em forma de maloca, as casas comunitárias dos índios, onde estão as fotografias dos indígenas. Os indígenas estão dentro da casa deles, na exposição. Há ainda duas projeções, cada uma com 110 fotos. Uma é de retratos dos indígenas (levei um estúdio para a Amazónia e fiz muito retrato); a outra, de paisagens. Nenhuma das fotografias exibidas nas projeções está na exposição. Ao todo, veem-se 425 fotografias. Dentro das malocas, podem ver-se vídeos de sete líderes de comunidades indígenas. São eles que trazem uma coloração política à exposição, ao falarem do quanto são ameaçados, da floresta destruída, da política agressiva de Bolsonaro. 

O facto de a Lélia o ter acompanhado nas viagens pela Amazónia foi importante?
Só uma pessoa como a Lélia podia conceber uma exposição como essa. Ela fez exposições lindas para mim, mas digo uma coisa: essa talvez seja a mais impressionante e mais bonita.

No prefácio deste livro, escreve: “Como fotógrafo, nunca tinha sentido tanto prazer visual.”
O conceito básico da nossa civilização cristã é o paraíso. E o paraíso existe. A Amazónia é o paraíso. Os indígenas vivem no paraíso: não têm maldade, não têm agressividade, não têm chefe, não têm religião, não têm propriedade… Não existe herança, não existe moeda, não existe troca. Eles vivem no paraíso.

Moradores da aldeia Towari Ypy, território indígena dos Zo’é, estado do Pará

Em 2010, numa entrevista a um jornal brasileiro, disse: “A fotografia está acabando. Hoje, temos imagens, mas não fotografias. Não acredito que a fotografia vá viver mais 20 ou 30 anos.” O facto de esta exposição ter características diferentes tem que ver com este sentimento de que a fotografia está a morrer?
Nada como um dia após o outro. Não acho que a fotografia esteja acabando. Já achei, hoje não acho mais. A fotografia está com total vitalidade. Resistiu a todos os instrumentos de intervenção. Os biliões de imagens feitas com o telemóvel não são “fotografia”, mas uma nova linguagem de comunicação através da imagem. A fotografia é a memória, é o espelho da sociedade. E isso só os fotógrafos são capazes de fazer. A fotografia vai acabar, sim, mas apenas para mim, porque estou ficando velho, com 77 anos.

Quando terminou o Genesis, também disse que era o seu último projeto…
A apresentação deste projeto vai levar-me dois anos. Quando terminar, terei 80. Não vou parar de fotografar, seguramente que não, mas realizar um projeto como este ou como o Genesis vai ser difícil. Já não tenho a mesma resistência e força. Voltei várias vezes doente da Amazónia. A floresta tem muitos vírus que não conhecemos. Uma das lideranças indígenas, um xamã, diz, num vídeo da exposição, que a sociedade dos brancos possivelmente vai desaparecer com a destruição da Amazónia, porque se os vírus que existem lá, em grande quantidade, entrarem no ciclo como entrou o SARS-CoV-2, podem levar à extinção da espécie humana.

Nos últimos anos, vários conflitos armados eclodiram ou agravaram-se, mergulhando o mundo num clima de crescente instabilidade e incerteza quanto ao futuro. Este cenário tem levado muitos países a reforçar os investimentos na área da defesa, de forma mais agressiva e estratégica. Em 2024, Portugal destinou 1,46% do PIB à defesa, de acordo com as estimativas divulgadas no relatório anual do secretário-geral da Aliança Atlântica, o neerlandês Mark Rutte. Este valor permanece abaixo da meta definida pela NATO, fixada nos 2%, mas o país já assumiu o compromisso de aumentar gradualmente esse esforço financeiro nos próximos anos, com o objetivo de impulsionar a produção e aquisição de equipamentos e tecnologia militar na Europa.

Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou uma proposta que permite aos Estados-membros aumentar os gastos com defesa em até 1,5% do PIB por ano, durante quatro anos, sem serem penalizados pelas regras orçamentais da União Europeia — nomeadamente aquelas que impõem limites ao défice público acima dos 3% do PIB.

Fundada em agosto de 2013 por uma equipa de engenheiros do Grupo PDM, a Beyond Vision tem-se destacado no desenvolvimento de sistemas aéreos não tripulados (UAV). O principal modelo, o HEIFU, é um hexacóptero de classe 3 capaz de transportar até 6 kg de carga útil. Equipado com um computador de bordo e um avançado controlador de voo, o HEIFU pode realizar missões totalmente autónomas, sendo utilizado em áreas como agricultura de precisão, inspeção de infraestruturas, vigilância e prevenção de incêndios. Em 2022, a empresa expandiu a sua gama com o lançamento do VTOne, uma aeronave híbrida com capacidade de descolagem e aterragem vertical (VTOL). Este modelo alia a versatilidade do HEIFU à maior autonomia necessária para missões de longo alcance, mantendo a capacidade de operar em ambientes exigentes.

Fazemos tudo cá. Desenhamos os chassis, criamos as placas eletrónicas, desenvolvemos o firmware, os algoritmos de navegação e o software de controlo baseado na cloud. Isso dá-nos total controlo sobre o produto e capacidade de o adaptar a diferentes contextos

Dário Pedro, CEO da Beyond Vision

Dois anos depois, em 2024, a Beyond Vision apresentou o BVQ418, um quadricóptero compacto e portátil, pensado para operações rápidas e mais leves, sem comprometer a eficiência nem a qualidade dos dados recolhidos.

Um rápido crescimento

Dário Pedro, diretor executivo (CEO) da Beyond Vision

Há 11 anos, provavelmente poucos imaginariam que a empresa que começou num espaço reduzido e discreto, com uma equipa curta, viria, nos dias de hoje, a desenvolver projetos com as Forças Armadas portuguesas, a exportar drones para a Arábia Saudita, Angola e Emirados Árabes Unidos, e a preparar-se para expandir operações para os Estados Unidos. Em pouco mais de uma década, a Beyond Vision tornou-se uma das mais promissoras empresas portuguesas de tecnologia de defesa e monitorização industrial, desenvolvendo drones de “ponta a ponta” — da estrutura ao software.

Dário Pedro, o diretor executivo da empresa (CEO), é doutorado em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade Nova de Lisboa e nunca pensou, originalmente, em criar uma empresa. Começou por integrar o grupo PDM, liderado por Luís Miguel Campos, com o objetivo de participar em projetos de investigação europeus. A Beyond Vision existia então como entidade de suporte para essa atividade. Com o sucesso de alguns desses projetos e após concluir a tese de doutoramento, foi-lhe proposta a hipótese de reestruturar a empresa e centrar a atividade nos drones.

“Nunca tive a ideia de criar uma empresa. A Beyond Vision já existia, mas sobretudo ligada à investigação. Com os projetos que desenvolvemos, achámos que fazia sentido reorientá-la para a área dos drones”, explica, em entrevista à Exame Informática, o executivo de 30 anos.

O crescimento foi gradual, com um foco inicial na investigação e no desenvolvimento de produto. Apenas, sensivelmente, em 2022 é que a empresa começou a encarar o mercado com uma ambição verdadeiramente comercial.

Quando a guerra abre portas

Um dos pontos de viragem surgiu com a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022. O Ministério da Defesa Português contactou então a empresa portuguesa e desafiou-a a adaptar as suas tecnologias ao setor da defesa. Até então, a Beyond Vision não tinha qualquer experiência nesse mercado. O desafio resultou num contrato com a Marinha Portuguesa para fornecer 12 aeronaves para o Centro de Experimentação Operacional da Marinha (CEOM), que está localizado em Tróia, Setúbal.

“Tivemos de aprender rapidamente o que era trabalhar com a Defesa, adaptar as aeronaves às necessidades da Marinha e garantir um desempenho ajustado ao contexto operacional. Foi um desafio tecnológico e organizacional”, explica Dário Pedro.

Veja abaixo imagens dos drones:

A Beyond Vision distingue-se por desenvolver os drones de forma integrada. A empresa tem quatro equipas técnicas principais: mecânica e aeroespacial, eletrónica, robótica e desenvolvimento de software na cloud (nuvem, em tradução livre).

O diretor executivo detalha que, “fazemos tudo cá. Desenhamos os chassis, criamos as placas eletrónicas, desenvolvemos o firmware (software interno que controla e gere o funcionamento do hardware), os algoritmos de navegação e o software de controlo baseado na cloud. Isso dá-nos total controlo sobre o produto e capacidade de o adaptar a diferentes contextos”.

Tecnologia modular e pioneirismo 5G

Uma das inovações mais marcantes da Beyond Vision foi a introdução do 5G nos drones ainda em 2018, numa parceria com a Altice para inaugurar a primeira antena 5G do país. “Na altura, não havia nenhum drone comercial preparado para o 5G. Tivemos de fazer o nosso. Foi isso que nos obrigou a passar de software para hardware”, conta Dário Pedro.

Outro elemento diferenciador é a modularidade dos “payloads” (equipamento que o drone transporta para concluir a missão). Os drones da Beyond Vision distinguem-se pela versatilidade, sendo capazes de se adaptar facilmente a diferentes tipos de carga e missão — desde câmaras de vigilância e sensores LiDAR ou multispectrais, até braços robóticos e sistemas de entrega.

A Beyond Vision quer tornar a troca de cargas úteis tão simples como ligar um rato a um computador, com sistemas que detetam, configuram e se adaptam automaticamente

Inteligência Artificial (IA) a bordo e exportação em força

Os drones da Beyond Vision incorporam vários algoritmos de IA, aplicados à evitação de colisões, reconhecimento de infraestruturas, identificação de problemas em estruturas e apoio à navegação. “Alguns algoritmos correm no drone, outros nos postos de controlo e os mais ‘pesados’ na cloud. A IA é essencial para dar autonomia e inteligência ao sistema”, destaca Dário Pedro.

A maioria das vendas da empresa portuguesa é para o mercado estrangeiro. A Arábia Saudita utiliza os drones da empresa portuguesa para inspecionar oleodutos; Angola, para monitorizar minas e realizar mapeamentos; e os Emirados Árabes Unidos, para proteger a fauna e monitorizar populações de falcões. Cada cliente requer uma adaptação específica do software e dos algoritmos. “Monitorizar falcões não é o mesmo que inspecionar um gasoduto. Temos de ajustar os algoritmos de reconhecimento e alerta a cada cenário”, explica o, ainda, jovem diretor executivo, natural de Lisboa.

A empresa está a explorar novas oportunidades, especialmente nos EUA e no Brasil. As tarifas impostas, recentemente, por Donald Trump ao setor tecnológico poderão levar a Beyond Vision a criar uma estrutura local para montagem e apoio a clientes, o que permitirá contornar custos e acelerar a penetração no mercado.

Cultura de longo prazo e crescimento acelerado

A cultura interna da Beyond Vision assenta na especialização e espírito de equipa. “Procuramos pessoas que sejam muito boas numa área concreta, mas que tenham capacidade de trabalhar em equipa e de querer ficar connosco no longo prazo”, A empresa conta atualmente com cerca de 50 funcionários, a maioria engenheiros nas mais diversas especialidades. Até ao final do ano, o objetivo é duplicar a equipa e chegar aos 100 empregados. “Começámos com três ou quatro pessoas. Hoje somos 50 e estamos a mudar-nos para instalações maiores, na zona de Alverca. Até ao final do ano, gostaríamos de duplicar este número. O futuro está a acontecer todos os dias”, finaliza Dário Pedro.

Tekever já é um ‘unicórnio’

A fabricante de drones portuguesa, Tekever, atingiu recentemente o estatuto de ‘unicórnio’, ao ultrapassar a marca de mil milhões de euros em valorização, graças a uma ronda de investimento que conta com a Ventura Capital (principal investidora), Baillie Gifford, o NATO Innovation Fund (NIF), Iberis Capital e Crescent Cove. Este feito consolida a posição da empresa como um dos principais fornecedores europeus na indústria aeroespacial e de defesa, com forte enfoque no desenvolvimento de drones para missões críticas de vigilância e segurança.

Ricardo Mendes, um dos fundadores, lidera a empresa que acaba de alcançar o estatuto de unicórnio

Com sede em Lisboa e presença internacional em mercados como o Reino Unido e França, a Tekever prepara-se agora para investir fortemente na expansão das suas operações, com especial destaque para um plano de cerca de 470 milhões de euros destinado ao território britânico. Fundada em 2001 por engenheiros do Instituto Superior Técnico, a Tekever especializou-se no fabrico de sistemas aéreos não tripulados. A gama de equipamentos inclui o AR3, o AR4 e o AR5, cada um com características adaptadas a diferentes cenários operacionais. O AR3, por exemplo, é utilizado para missões de média duração em ambientes terrestres e marítimos, com até 16 horas de autonomia.

Já o AR4 é mais compacto e portátil, pensado para operações táticas rápidas, enquanto o AR5 representa o topo da oferta da empresa, sendo capaz de operar a longas distâncias com recurso a comunicações via satélite, ideal para o patrulhamento de grandes áreas marítimas e terrestres. Os drones estão equipados com Inteligência Artificial (IA) e sensores avançados, estando atualmente ao serviço de várias entidades de relevo internacional, com destaque para a guerra na Ucrânia, em que os drones AR3 e AR5 da Tekever têm desempenhado um papel significativo em operações de vigilância e defesa. Desde 2022, a empresa tem colaborado com as Forças Armadas ucranianas, fornecendo sistemas não tripulados para diferentes missões de defesa.

O drone AR3, por exemplo, já acumulou mais de 10 mil horas de voo em condições de combate na Ucrânia. A Tekever passou a contar recentemente com um escritório de representação na Ucrânia, com planos para expandir a equipa e criar centros de formação, com o objetivo de reforçar o apoio técnico e operacional às forças ucranianas.

“Já tenho o que queria! DJ Bife a comer uma ostra”, exclama Domingos Coimbra, guardando o telefone no bolso e abrindo caminho através da multidão que, debaixo de um sol escaldante, espera a sua vez para degustar uma das dezenas de iguarias gastronómicas disponíveis nas bancas do Broadway Market, no bairro londrino de Hackney.

Avançando em direção a London Fields, à sua frente, Salvador Seabra [DJ Bife] e Diogo “Horse” Rodrigues riem-se ao recordar momentos semelhantes, vividos durante outras viagens feitas em conjunto, memórias construídas à mesa de restaurantes de beira de estrada, bares de aldeia e bastidores de salas de concertos.

Desta, com certeza, jamais irão esquecer o momento em que, nem há 24 horas, “por causa de um stresse burocrático”, julgaram todos que não iriam atravessar a fronteira entre França e o Reino Unido, correndo o risco de terem de adiar os dois últimos concertos da primeira digressão europeia dos Capitão Fausto, a banda que Salvador Seabra, Domingos Coimbra, Tomás Wallenstein, Manuel Palha e Francisco Ferreira fundaram há 15 anos.

Montagem do concerto em Londres, no The Victoria Dalston Foto: DR

“A main quest é sempre tocar, mas é a side quest que fica na memória. O concerto é o momento central, mas tudo aquilo que acontece entre pontos, as histórias e aventuras que temos, as festas onde vamos, as pessoas com quem falamos, o mal que dormimos, o que se diz na carrinha, é o que traz as vivências da banda e contribui, de certa forma, para as próximas coisas que acabamos por fazer”, assegura Domingos Coimbra. Salvador e Horse, um dos fundadores da editora Cuca Monga e que, desde 2021, é também técnico de frente dos concertos da banda, concordam.

Caminhamos em silêncio. Nele cabem mais memórias do que as que seria possível resumir nos 900 metros que nos separam do pub The Victoria Dalston, onde os restantes membros da equipa nos esperam para começarem as montagens de palco. Mais do que o lugar onde nasceu cada uma das canções dos Capitão Fausto (Teresa, Ideias, Santa Ana, Alvalade Chama por Mim, Boa Memória ou Amanhã Estou Melhor…), foi a forma como ecoaram, e ainda ecoam, em quem as ouve – uma geração nascida nos anos 1990 – que fez delas a sua companhia.

Crescer ao ritmo da amizade

Ano após ano, Tomás, Salvador, Manuel, Domingos e Francisco [que saiu da banda em 2023] foram dando as frases e os ritmos que, aos vinte e poucos anos, faltavam para explicar a vertigem que é saber-se adulto à beira de um mundo diferente daquele que se esperava, mas desejoso de fazer parte dele.

Quase 15 anos após o lançamento do primeiro álbum, Gazela, a vida, como as melodias, deixou de ser puramente rock, ganhou sonoridades novas, mais cuidadas, com mais instrumentos e harmonias. Aos 34 anos, há que fazer uma pausa nas montagens do palco para falar por videochamada com as mulheres, namoradas e filhos, que estão em Lisboa, saber cantar sobre a perda mas de pazes feitas com a mágoa, aprender, como diz Manuel, “a ouvir os detalhes das coisas”.

Quarteto Domingos Coimbra, Tomás Wallenstein, Manuel Palha e Salvador Seabra em Paris. Foto: DR

O que não mudou desde a primeira vez que tocaram juntos, em 2010, no casamento de um tio de Tomás, foi, continua Manuel, “a forma como nos desafiamos a fazer coisas novas, o controlo que temos na maneira como o espetáculo acontece e a preocupação em fazer um bom concerto, independentemente de ser para nove, 200 ou duas mil pessoas”.

“Acho que não estaríamos a fazer isto, passados quase 15 anos, se já não sentíssemos o encanto que é estar num palco e viver o momento em que a música, e tudo aquilo que fizemos, culmina com as pessoas que estão lá para querer ouvi-la, algo que, felizmente, tem sido uma constante na nossa vida”, comenta Domingos. “A vontade de fazer e a amizade prevalecem. Creio que não trabalhava com eles há 11 anos se não fosse assim”, acrescenta Horse.

A alegria de Paris

“A vontade de fazer e a amizade” parecem ser os alicerces do sucesso alcançado pela banda. Sempre com gente “lá para querer ouvi-la”, como dizia Domingos, o grupo cresceu dentro e fora de palco, lançando-se finalmente, em 2025, na sua primeira digressão europeia – um concerto na MEO Arena, a maior sala de espetáculos do País, foi, entretanto, anunciado para o dia 24 de janeiro de 2026.

Nos meses de abril e maio deste ano, os Capitão Fausto subiram aos palcos da Sala El Sol, em Madrid, da Sala Apolo, em Barcelona, do Melkweg Amsterdam, em Amesterdão, do Point Éphémère, em Paris, e do The Victoria Dalston, em Londres, num total de seis concertos, cinco dos quais completamente esgotados.

Juntámo-nos a eles a 8 de maio, em Paris, precisamente o único local onde ainda havia 17 bilhetes por vender. Ninguém diria, no entanto. À medida que o sol mergulha no Canal de Saint-Martin e a tarde se pinta de tons dourados, cada vez mais pessoas vão chegando ao Point Éphémère. Ocupam as mesas corridas junto da entrada e levantam copos de cerveja fresca, brindando ao concerto que, para muitas delas, já neste simples gesto, lhes traz um sabor a casa.

Acabados de chegar de Amesterdão, acompanhados de Horse e do manager Ricardo Coelho, Salvador, Tomás, Domingos e Manuel recebem efusivamente um grupo de amigos.

Há saudades a matar de quem se vê pouco, por morar em Paris há alguns anos, como Sofia e Inês, que conhecem desde os tempos do Liceu Francês, e agradecimentos a fazer aos sempre presentes, que voaram de propósito de Lisboa, como Haley e o namorado, Luís, um dos responsáveis pela editora Cuca Monga.

Fim de concerto Rostos sorridentes na despedida da banda de Paris. Também os fãs saíram felizes do concerto em Londres, como David (ao centro na foto), que conheceu os Capitão Fausto através da namorada portuguesa

Contam que “Amesterdão foi o melhor concerto até agora”, que o público veio das mais diversas cidades dos Países Baixos, “às vezes, fazendo horas de caminho”, e que esteve do lado da banda “desde a primeira nota”. No entusiasmo do relato, porém, pressente-se a dúvida sobre o que lhes reserva a noite de Paris.

Não têm nada a temer. Mal as luzes se apagam e se ouvem os primeiros acordes de Boa Memória, mais de duas centenas de pessoas começam a cantar em coro. “Sala cheia, coração cheio. Obrigado”, agradece Domingos. A energia mantém-se a mesma ao longo dos restantes 18 temas, acontecendo, inclusive, o primeiro moche da digressão, durante Santa Ana.

“A casa ardeu/ Ninguém parou de dançar.” Colado ao palco, Norberto, de 45 anos, canta e dança mais do que o resto da primeira fila toda junta. Há 30 anos em Paris, filho de emigrantes portugueses, descobriu a banda quase por acaso, através de uma notificação da aplicação de venda de bilhetes Dice.

“Foi um azar, porque comecei a ouvi-los anteontem, mas também uma sorte enorme, porque adorei o que ouvi e vim logo para a primeira fila. É a cultura que nos dá vida e nos salva, hoje saio daqui com mais energia para ir para a frente. Já fui segui-los no Instagram e inscrevi-me no site para os ir acompanhando”, conta Norberto, com um álbum debaixo do braço.

Já Vasco e Catarina, de 27 anos, vieram de propósito de Lisboa para assistir ao concerto daquela que é a banda preferida dele e a banda portuguesa preferida dela. Uma das coisas de que mais gostaram foi o tamanho intimista da sala, “em comparação com sítios como o Coliseu, a Culturgest ou o Campo Pequeno”, e o facto de Domingos ter descido do palco para tocar um solo mesmo ao seu lado.

Já depois de o público dispersar, a noite quente de maio convida a um passeio de bicicleta. Guiados por Inês e Sofia, pedalamos até ao espaço de concertos e discoteca La Gare – Le Gore, seguimos para o bar Connectable, onde, sentado a um piano disponível para utilização dos clientes, um homem cego oferece, segundo Salvador, “das melhores interpretações” que se poderia pedir de diversas canções, e terminamos a cantar La Bamba num bar de karaoke.

Nas conversas entre um poiso e o seguinte, forjam-se amizades com desconhecidos, aos quais a banda conta o que veio aqui fazer, para descobrir, mal as palavras lhes saem da boca, que o que vieram cá fazer foi afinal muito mais do que subir a um palco, escrever uma história ou ocupar-se do som de um concerto.

Subida infinita

Três dias e o tal “stresse burocrático” mais tarde, em noite de derby lisboeta, chegamos a Londres. Também na capital inglesa o sol decidiu brilhar com uma intensidade fora do normal. Após a manhã passada entre as ruas de Hackney e o relvado de London Fields, é tempo de montar o palco para os concertos dos dois dias seguintes.

A sala de teto baixo, revestida de madeira escura, põe à prova a imaginação de quem entra. “É engraçado que não tocávamos em venues tão pequenas há muitos anos”, comenta Tomás Wallenstein, com alguma nostalgia na voz. Caberão 250 pessoas num espaço tão exíguo?

Sim. Não só caberão 250 pessoas como farão a casa vir abaixo: cantam os parabéns a Manuel Palha, que faz anos no dia do primeiro concerto, dançam do princípio ao fim, independentemente de a sensação térmica ser de 40 graus centígrados, e pedem “só mais uma” vezes sem conta. Até mesmo David, que não fala uma palavra de português e conheceu a banda graças à namorada portuguesa, que lhe vai traduzindo alguns versos das canções. E tudo se repetirá, com o dobro da energia, na noite seguinte.

Longe vai o dia em que os Capitão Fausto rumaram às Caldas da Rainha para tocar para nove pessoas, quatro delas amigos vindos de Lisboa. “Foi provavelmente a vez em que vi este espaço mais cheio”, comenta, impressionada, Lucy, técnica de som do The Victoria Dalston. “As pessoas costumam ficar no meio da sala e as bandas têm de as chamar para avançar, mas, com eles, foi logo tudo para a frente e fartaram-se de dançar.”

“A proximidade com o público traz uma energia mais eufórica, as pessoas sentem o concerto de uma forma diferente e nós também”, explica Horse. É o caso de Mário, um fã de 29 anos, há cinco a viver em Londres, que marcou presença no The Victoria em ambas as noites. “Além do pessoal a cantar a plenos pulmões algumas das músicas, do que mais gostei de ver foi a atenção que o Salvador, o Manuel, o Domingos e o Tomás dão uns aos outros, em palco. Na banda todos têm o seu espaço para brilhar, como num grupo de amigos, sem egos à mistura.”

A adesão do público e o sucesso dos concertos têm gosto a vitória em dose dupla por terem sido organizados e produzidos recorrendo a uma equipa de seis pessoas, a “prata da casa”, como lhe chamam, e a uma grande dose de boa vontade.

“Digressões como esta, com muitos desafios e concertos que não sabemos como vão correr, são coisas que temos muito interesse em fazer, porque põem-nos fora de pé e geram-nos algum desconforto, uma coisa boa para a criação”, afirma Domingos, no backstage, momentos antes de subirem pela última vez ao palco do The Victoria.

Lá fora, Manuel, Salvador, Domingos e Tomás têm encontro marcado com os silêncios que dão forma à sua vida e à vida de quem ouve as suas canções. Essa Subida Infinita que vamos todos enchendo de música e memórias, como pistas lançadas ao vento, na esperança de que os que nos têm a retaguarda, mesmo que por vezes se distraiam, saibam sempre onde nos encontrar.

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