Uma visita guiada aos lugares de Leonor Teles

Muitos de nós imaginamos que o Tratado de Windsor foi o primeiro da aliança luso-britânica, a mais antiga ainda em vigor — mas enganamo-nos. O pacto fundador foi o Tratado de Tagilde, celebrado nesta vila do concelho de Vizela, a 10 de julho de 1372, e reconfirmado um ano depois em Londres. Assinado tanto por D. Fernando, como pela rainha com quem acabara de casar em Leça do Balio, sim, essa mesma, Leonor Teles. Mas a maior surpresa, aquela de que ninguém nos fala, é quem era o outro “personagem” fundamental envolvido nestas negociações que tinham por objetivo derrotar o usurpador Enrique de Trastámara, rei de Castela? Pois, nada mais, nada menos do que João Fernandéz, mestre de Andeiro, em Tagilde como procurador de John of Gaunt, pai de Filipa de Lencastre, e em Londres como embaixador dos reis de Portugal. Afinal aquele que nos venderam como o “mau da fita” era o homem de confiança de D. Fernando, com muito que contar…

1. O chamado “caso das gémeas” ultrapassa todos os limites. Não só da falta de sentido da medida e das prioridades, na ação política e no Parlamento, como na ausência do mínimo exigível de sensatez, inteligências das coisas, “humanidade”. A factualidade com que foi apresentado ou sugerido, justificava alarme e impunha averiguações que permitisse formular juízos, inclusive políticos, com as consequências que deles se devessem tirar. Como aqui escrevi.

Resumo dessa factualidade: as meninas eram brasileiras, tendo conseguido, mercê de influência política, a nacionalidade portuguesa em tempo recorde, para virem para o nosso país a fim de serem tratadas, o que não haviam conseguido no Brasil, com o medicamento “mais caro do mundo”, de que não havia notícia de antes já ter sido ministrado entre nós. Ou seja, tudo configurando favorecimento ilegítimo, via  Presidente da República, a pedido do seu filho, com enorme dispêndio para o erário público.

Ora, o que de essencial hoje se sabe é: as gémeas são, por direito próprio, portuguesas (luso-brasileiras); o processo administrativo para as formalizar como tal não violou qualquer regra ou prazo; as duas meninas não foram as primeiras a ser tratadas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) com aquele medicamento – nem, ao serem-no, ultrapassaram alguém que estivesse à sua frente para o efeito. Além disso, não há nada que proíba de no SNS, dadas as suas carências financeiras, serem ministrados medicamentos ou feitos tratamentos de elevado custo. 

2. Sendo assim, onde está a matéria que justifique todo o alarido com o “caso” e, sobretudo, haver uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre ele? Proposta, claro, pelo Chega, a que outros grupos parlamentares parecem ter cada vez mais dificuldade, ou menos coragem, para se oporem, pelo menos com eficácia.

De facto, o que está em causa é só saber se o pedido que o filho de Marcelo lhe fez teve teve influência em todo o processo – e até agora nem se apurou ter havido da parte do pai alguma conduta fora dos procedimentos normais da Presidência; e saber se a teve a marcação de uma consulta através do gabinete do secretário de Estado da Saúde, “arguido”, com um médico, na investigação criminal em curso.

Investigação criminal, de que crime? Porque se houve, chamemos-lhe “cunhas”, neste caso, o que é muito provável, pelo que resulta de tudo que se conhece foi para tornar mais rápido o tratamento para salvar a vida de duas meninas. Sem prejudicar ninguém, sem ultrapassar ninguém que a isso tivesse mais direito. Deve ser isto não motivo de, pelo menos, compreensão, mas objeto de perseguição penal e política? 

3. A isto chegamos. Culminando com a CPI e a audição nela da mãe das meninas. A recordar, com inevitável comoção, tudo o que fez para as salvar. E de seguida a ser “interrogada”, na diligência parlamentar mais lamentável e degradante de que na minha longa experiência tenho memória. Política e, o que é muito pior, humanamente inadmissível. E o espetáculo da CIP lá continuará, até com inesperadas atrações, como António Costa. A ser ouvido, de novo por proposta do Chega, aprovada, pasme-se!, pelo PSD, depois de admitir que ele não iria lá fazer nada.

Chega que continua a não olhar a meios para atingir os seus consabidos fins, demasiadas vezes parece que com a conivência, por ação ou omissão de não poucos, incluindo nos media – decerto, em geral, mais por falta de inteligência das coisas e de competência do que por convicção. Chega agora a convocar polícias e outras forças de segurança para o Parlamento, com a óbvia intenção de condicionar o que nele se vai debater. Chega a tentar, e já em parte a conseguir, conquistá-las, manipulá-las, aplaudindo com entusiasmo tudo que elas, e agora já também o MP, façam e possa servir para atacar ou fragilizar o regime democrático.

Mas estamos nisto: sem o mais ínfimo fundamento acusar um Presidente da República de “traição à pátria”, nenhuma  consequência, eventual “cunha” para salvar a vida de duas meninas, uma CPI. Quando se começará a debater e tratar a sério da “legítima defesa” da democracia? 

À MARGEM

O exemplo francês

As sondagens confirmaram-se e a extrema-direita foi a força mais votada nas eleições francesas. Face a tais sondagens, a esquerda teve a visão e capacidade políticas, aliás bastava o bom senso, de se unir, apesar de todas as suas diferenças. E ficou em segundo lugar, os centristas do Presidente Macron em terceiro.

O sistema eleitoral francês, a duas voltas, permite que acordos entre os dois blocos, de esquerda e de centro, impeçam que a extrema-direita venha a vencer  e governar o país, mantendo-se um governo “republicano”. Saliento a clareza e vigor com que o jovem primeiro-ministro, centrista, apontou logo nesse sentido, enquanto o líder da esquerda, antes de o fazer, salientou antes a derrota de Macron. Não gostei… – mas espero que tudo se resolva.

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Palavras-chave:

E pronto, nada de novo no reino de Sua Majestade: as sondagens não mentiram e as previsões confirmaram-se. O advogado Keir Starmer, 61 anos, o filho da working class, como o próprio gosta de sublinhar, o primeiro membro da família a ir para a universidade, chega a Downing Street. Como a democracia tem os seus preceitos (e ainda mais uma monarquia constitucional), se tudo continuar a correr conforme o previsto, durante o dia hoje, o recém-eleito primeiro-ministro britânico falará à nação a partir do número 10 e irá conversar com o rei, ao Palácio de Buckingham. Por essa altura, Starmer já deverá ter pronta a constituição do novo governo britânico.    

Turn right ou turn left? Quando a Europa vira à direita, o Reino Unido vira à esquerda, o que na verdade só surpreende quem se esquece que, da integração europeia à condução automóvel, os ingleses sempre fizeram questão de ser do contra. Perdoe-se-me a generalização: ter um pé dentro e um pé fora; de estar com os outros, mas não estar bem com os outros; de ser como os outros, mas não ser bem igual aos outros. Assuntos que, em parte, no meu modesto entender, se resolviam no divã, mas adiante.   

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– Disseste que precisavas de tempo para responder.

– Sim, para responder com sinceridade.

– A pergunta era: a solidão pesa-te?

– Não se trata de pesar ou não. A solidão é mais do que um fardo que carrego, é o próprio chão que não me liberta. Um buraco negro, às vezes.

– Foi isso que concluíste?

– Não. Isso já eu sabia. A solidão pesa-te? foi uma provocação vossa. A pergunta era: as palavras – as palavras escritas, as palavras lidas – têm o poder de me suspender sobre o abismo, uma espécie de poder antigravitacional? Foi nisso que estive a pensar.

– A solidão não é nenhum abismo. É esse o perigo: as palavras escritas transformam-se facilmente num jogo, uma brincadeira fora da vida.

– Acham, então, que vivo dentro de historietas de encantar, de conhecimentos inúteis, que ando perdida num delírio? Consideram-me alienada, é isso?

– Nós é que somos os aliens, os extraterrestres, uma espécie de extraterrestres.

Riem-se muito com as suas bocas desdentadas.

*

O Círculo de Leitores presenteava os novos sócios com um livro surpresa. Calhou-me Os Extraterrestres na História, de Jacques Bergier. Li-o de supetão, mais seduzida do que receosa com as visitas de alienígenas ao nosso planeta. Levei-o para a escola e passeei-me com ele nos intervalos como fizera com outros livros não aconselháveis para a minha idade. Quase nenhum dos meus amigos gostava de ler. Os poucos que liam, faziam-no sob a supervisão de adultos que invariavelmente sugeriam o Diário de Anne Frank ou O Meu Pé de Laranja Lima. Sentia-me superior aos meus colegas por ler livros que nos eram proibidos. (Muitas vezes, a rebeldia não é mais do que a solidão disfarçada.)

Quando me viu com o livro na mão, o André, um colega de turma que tirava negativa a quase todas as disciplinas e que se vestia como se fosse um punk precoce, abordou-me: estava eu a par das marcas quadriculadas que os extraterrestres deixavam na pele daqueles que abduziam e dos círculos de terra queimada que as naves faziam onde aterravam? Reconhecendo-me iniciante na matéria, o André propôs-me uma troca: eu ajudava-o com os trabalhos de casa e ele levava-me ao Clube dos Amigos dos OVNIS de que o pai dele, o Sr. Bernardo, era o presidente. O nosso acordo teria de ser secreto pela natureza do que estava envolvido. Fiquei a saber que as reuniões decorriam aos sábados à tarde na garagem da casa dos pais do André e que o Clube contava com nove elementos. Eu podia vir a ser o décimo. O Sr. Bernardo tinha um telescópio apontado ao céu e havia noites em que se viam passar naves de um lado para o outro. O André garantia que humanoides verdes de cabeça triangular, descendentes da Atlântida, estavam a favor dos Estados Unidos da América e que outros, cinzentos com olhos de sapo, herdeiros dos construtores das pirâmides do Egito, protegiam a União Soviética. Estes dois exércitos de humanoides existiam além do que os telescópios humanos conseguiam ver e eram eles que nos mantinham a salvo de uma Terceira Guerra Mundial. Como é que vocês sabem isso?, perguntei, Evidentemente que há humanoides que vêm cá controlar o que se passa, tens de me prometer que não voltas a fazer perguntas parvas como essa, senão não te posso levar para o Clube, repreendeu-me o André, Não podemos perder tempo com parvoíces, há muita coisa em jogo, percebes?

No sábado seguinte, em troca de um trabalho de História sobre a Rota da Seda, apanhei a camioneta para a Abuxarda e fui a casa do André participar no primeiro encontro do Clube.

*

Estão ofegantes de tanto se rirem. Receio que tenham uma apoplexia, que morram de novo e eu os perca de vez. Enfrento as sete gerações que precedem a dos meus pais. Sei que são eles, apesar de só reconhecer os meus avós. Cercam-me. Quase ameaçadoramente. Falta o meu avô António.

– Eis os últimos analfabetos da família. Espera-se que sejamos os últimos.

Mais risos.

– Histórias e conhecimentos. Então é por isso que te isolas nos livros, Dulcinha?

Reconheço a ironia.

– Isolar não será a palavra certa.

– Também nós, enquanto vivemos, precisámos de histórias e de conhecimentos – úteis ou inúteis – tanto quanto tu e os teus contemporâneos. Tivemo-los em quantidade bastante, que histórias e conhecimentos não têm de estar escritos para existirem. Passavam de boca em boca, vindos sabe Deus de onde, das profundezas da criação. As terras onde andávamos à jeira existiam com dono, mas as palavras pertenciam a todos por igual. Só sabíamos de onde vinham as que o padre dizia na missa: palavra do Senhor!

– Graças a Deus!,

respondem os outros, em uníssono.

– Nem livros nem autores. Bastávamo-nos uns aos outros. Em pessoa. Cada um ajeitava o que ouvia a seu modo e passava-o a quem quisesse.

– Era ainda assim com as anedotas quando eu era nova,

deixei escapar. Não resisti ao lamento,

– Já ninguém entretém os amigos a contar anedotas.

– As redes sociais também acabaram com isso. Nunca se leu nem escreveu tanto quanto agora, e as pessoas talvez nunca tenham estado tão sós. Vivem acompanhadas por uma infinidade de ausentes.

– Redes sociais?

– Escusas de fingir estranheza. Nós somos tu a pensar-nos. Conhecemos tudo o que tu conheces. Já o contrário não é verdadeiro: o passado visto do presente é omnisciente do presente que desconhece em grande parte o passado. Por isso podemos falar de aliens e de redes sociais.

Rimo-nos todos.

– Já estamos juntos há tempo bastante para podermos dizer o que nos apetece sem estarmos sempre a embrulhar tudo para oferta.

– Que não passe a ideia de que por termos sido analfabetos fomos mais felizes ou menos sós. Claro que gostaríamos de ter sabido ler e escrever.

– A vara que um homem estende a outro homem tanto serve para mantê-lo à distância como para guiar um em direção ao outro até as mãos se tocarem, até as bocas se beijarem.

Digo,

– O autor chega, arranca-me do quotidiano, chama-me para um encontro privado, íntimo, só ele e eu, como se não tivéssemos corpos estanques. Depois, devolve-me, diferente, ao sítio onde me apanhou. Coscuvilho o sucedido como quem inconfidencia proezas de amantes.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

O primeiro-ministro britânico eleito, Keir Starmer, declarou que “a mudança começa agora” para o país, depois de ter conquistado 410 deputados com assento parlamentar. “Tenho de ser sincero, sabe bem. Quatro anos e meio de trabalho, a mudar o partido. Foi para isto que o fizemos, um partido transformado, pronto a servir o nosso país, pronto a recuperar o Reino Unido ao serviço dos trabalhadores”, admitiu num discurso proferido em Londres.

“Em todo o nosso país, as pessoas vão acordar com a notícia, aliviadas pelo facto de um peso ter sido retirado, um fardo finalmente removido dos ombros desta grande nação”, continuou, referindo ainda que o mandato dado ao partido acarreta uma “grande responsabilidade” e que “as vitórias eleitorais não caem do céu, são conquistadas com esforço e com muita luta”.

“Há muito a aprender e a refletir”

Já Rishi Sunak, considerado o grande derrotado da noite eleitoral, reconheceu a vitória do Partido Trabalhista e pediu desculpa aos Conservadores. “Hoje, o poder vai mudar de mãos de forma pacífica e ordeira, com boa vontade de todas as partes. Isso é algo que nos deve dar a todos confiança na estabilidade e no futuro do nosso país”, disse.

O ainda primeiro-ministro demonstrou que este foi “o veredicto sóbrio” e que “há muito a aprender e a refletir”. “Assumo a responsabilidade pela derrota dos muitos candidatos conservadores que trabalharam arduamente e que perderam esta noite, apesar dos esforços incansáveis, do historial local de resultados e da dedicação às comunidades. Lamento”, declarou.

“Daqui a dez anos, terei 30. E só estou a pedir os básicos: um tecto sobre a minha cabeça, ser capaz de comer confortavelmente, sem me preocupar com o dia seguinte. E, se tiver filhos, não quero ter de me preocupar com a alimentação deles ou deixar de comer durante o dia para lhes dar comida”. Jamie-Lea não vive num país em guerra, não está numa parte do mundo em desenvolvimento, não é racializada, não é migrante. Vive em Leigh, no Reino Unido, um antigo bastião industrial, a poucos quilómetros de Manchester.

É a primeira da sua família a chegar à Universidade, mas para conseguir estudar tem de ter três empregos, que lhe ocupam 40 horas por semana. Sonha com a Suécia, um país aonde nunca foi. “Se tiver uma família, não quero que seja neste país, porque não os quero pôr nessa situação”, diz a Helen Pidd, jornalista do The Guardian, a quem conta estar há anos a tentar aprender sueco sozinha. Para o ano, se conseguir juntar dinheiro suficiente, vai finalmente conhecer o país que lhe parece hoje à distância uma promessa de prosperidade, tal como a consegue conceber quem vê como privilégio a garantia da sobrevivência.

Helen Pidd foi a Leigh em busca de perceber como é que o “último tijolo na parede vermelha” que sustinha o Partido Trabalhista iria votar quatro anos depois de ter guinado à direita, dando uma inédita vitória aos conservadores. Mas o que revela esta viagem é muito mais do que um sentido de voto.

Uma e outra vez, a jornalista encontra pessoas que lhe falam da dificuldade em alimentar-se a si e aos seus filhos e de como desejam ter de “deixar de pedir” para sobreviver. Há uma tensão no ar. E Helen Pidd tem dificuldade em encontrar votantes trabalhistas, apesar do desencanto total com o Partido Conservador. É mais fácil tropeçar em apoiantes do partido de extrema-direita Reform UK de Nigel Farage.

Porquê Farage? Porque não?, perguntam-se os eleitores desencantados de tudo, fartos de viver numa incerteza constante, atomizados nas suas indignações, desconfiados daqueles com quem possam vir a ter de ser obrigados a partilhar as suas migalhas.

O discurso é semelhante quando se ouvem as reportagens sobre as eleições francesas. Não é incomum aparecer um eleitor que confessa a impossibilidade de comer carne, a dificuldade de chegar ao fim do mês, a luta para se aquecer.

Há um fosso fundo entre a imagem projetada deste velho continente e o dia a dia concreto de muitos dos seus habitantes. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas”, dizia em 2022 o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, num discurso construído para alimentar a ideia de que este “jardim” deve ser protegido da “selva” do resto do mundo, com muros se preciso for.

O que é interessante é perceber o quão longe estão deste idílico jardim muitos daqueles que votam em quem quer construir os muros. A sua escolha não é, contudo, completamente irracional, ela decorre de uma narrativa poderosa que elude do discurso e das práticas a solidariedade e o sentido colectivo.

Os habitantes de Leigh estão a defender o seu jardim, mesmo que ele esteja cheio de pedras e ervas daninhas, porque é tudo o que têm, enquanto sonham com outras paragens mais verdes, sem contar com a cerca que outros por lá poderão construir para os afastar.

Estas classes empobrecidas, precárias, que se tentam agarrar aos escombros do que foram em tempos poderosos estados de bem-estar, são quase invisíveis para todos, menos para os que lhes oferecem no ódio um escape para o ressentimento. A sua luta diária pela sobrevivência não faz parte da imagem que temos dos europeus. A sua experiência está tão longe das bolhas políticas e mediáticas que nos parece grotesca e exagerada. Ela contraria as estatísticas oficiais de progresso, a ideia de mérito, a própria noção que temos daquilo que é a Europa. E, no entanto, eles existem. E, no entanto, eles votam.

Temos estado a ignorá-los. Em breve talvez seja impossível continuar a fazê-lo.

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+ Os de baixo contra os de cima, os de cima contra os de baixo

A obra emblemática do mandato de Carlos Moedas para acabar com as cheias em Lisboa já terá quase um quilómetro de extensão mas, à medida que a máquina tuneladora avança em direção às profundezas da cidade, aumentam os receios e a inquietação dos trabalhadores que estão a construir o primeiro dos dois túneis subterrâneos de drenagem da capital, entre Monsanto e Santa Apolónia.

Numa empreitada desta dimensão, adjudicada pela Câmara de Lisboa (CML) a um consórcio de duas grandes construtoras – a portuguesa Mota-Engil e a francesa Spie Batignolles –, com experiência em trabalhos subterrâneos no mundo inteiro, o planeamento em matéria de segurança no trabalho deveria ter sido feito com todo o cuidado. Mas esse não é o sentimento de quem passa metade do seu dia debaixo de terra. Faltam máscaras de respiração para fuga em caso de incêndio, a câmara de refúgio ainda não estará totalmente operacional, os simulacros de acidente no subsolo tardam a ser realizados e os turnos de trabalho estendem-se até 12 horas.

Obra a dois tempos  O enorme reservatório para recolher a água da chuva começa a ganhar forma à superfície, na Rua de Campolide (fotos à esquerda). Numa cota inferior, a abertura do túnel deixa antever o tapete rolante que transporta a terra para fora e a tubagem de ventilação (em cima, à direita). Em baixo, um pormenor do veículo onde os trabalhadores se deslocam até à frente de trabalhos

Os problemas não são desconhecidos do executivo municipal. Mensagens de alerta chegaram ao gabinete do presidente Carlos Moedas, e da vereadora Filipa Roseta, pouco depois de a tuneladora ter começado a perfurar o túnel entre Monsanto e Santa Apolónia, o maior dos dois previstos, com quase cinco quilómetros de extensão (ver caixa). Passados meses, está praticamente tudo igual, mas as versões dos diferentes responsáveis da obra são contraditórias.

A CML e a empresa de fiscalização TPF – Consultores de Engenharia e Arquitetura, reconhecem alguns atrasos no planeamento e admitem que uma obra desta complexidade exige uma “aprendizagem contínua”. A Mota-Engil afasta quaisquer irregularidades, afirma que “cumpre com a Lei”, assegurando “todos os recursos” e “procedimentos” previstos “nos processos internos que são auditados por entidade externa e independente”, e acrescenta que eventuais problemas seriam “alvo de sinalização por entidades externas”. E os bombeiros, embora se afirmem preparados para intervir em caso de acidente, ainda não conhecem as especificidades do terreno porque não realizaram simulacros dentro do túnel.

Armadilha mortal

Localizado a 50 metros de profundidade, o túnel Monsanto-Santa Apolónia mede 5,5 metros de diâmetro e assemelha-se a uma enorme manilha, de formato circular, por onde irá escorrer a água da chuva desde a parte alta da cidade até ao rio Tejo. As condições de trabalho numa galeria subterrânea deste tipo, com inclinação acentuada e sem saídas de emergência, são sempre difíceis. Para os peritos ouvidos pela VISÃO, um dos maiores riscos é a deflagração de um incêndio no sistema elétrico que alimenta a cabeça da máquina tuneladora. A libertação de CO2 e de outros gases pode tornar obsoleto o sistema de ventilação no espaço de minutos. Se não forem instalados equipamentos de proteção e fuga, o túnel ameaça transformar-se numa armadilha mortal para os trabalhadores – e socorristas.

Em Portugal, as normas para prevenir acidentes em obras subterrâneas são claras. O Guia de Boas Práticas de Segurança e Saúde para a Fase de Construção de Obras Subterrâneas, elaborado pela Comissão Portuguesa de Túneis e do Espaço Subterrâneo e pela Sociedade Portuguesa de Geotecnia, estabelece que deve existir “uma câmara de refúgio ou uma base de ar fresco” quando não houver outra maneira de escapar para o exterior em caso de acidente. Essa câmara (uma espécie de contentor à prova de fogo) deve “providenciar aos trabalhadores abastecimento de ar de longa duração” e fornecimento “ininterrupto de energia e água, abastecimento de comida e água, ar condicionado, telefone, uma janela que permita o contacto visual com o exterior da câmara, equipamento de primeiros socorros, extintor, meios de monitorização de qualidade de ar”, entre outros. Ainda, segundo o guia, “deverá existir uma reserva de máscaras de emergência, se o tempo para chegar ao local com segurança for superior à duração da máscara” que, supostamente, fará parte do equipamento obrigatório dos trabalhadores, tal como o capacete, botas de proteção e vestuário refletor.

Sem máscaras e sem simulacros

Entre o que dizem as recomendações e as condições que o pessoal enfrenta diariamente na obra há algumas diferenças. De acordo com os relatos transmitidos à VISÃO, o túnel ainda não dispõe de máscaras de fuga que, em caso de libertação de gases, forneçam ar aos trabalhadores até chegarem à câmara de abrigo (ou percorrerem o túnel em direção à saída). A única câmara de refúgio, instalada na parte traseira da tuneladora, chegou a Lisboa fora de serviço por falta de inspeção técnica, e só há poucas semanas foi preparada para receber pessoas (com água, alimentos, sanitários…), embora ainda não se encontre totalmente operacional. Também não terá sido dada formação aos trabalhadores para a sua correta utilização, quando a perfuração está já perto dos mil metros.

Onde está a “Oli”?

O trajeto da tuneladora gigante foi traçado em linha reta descendente, desde a zona alta da cidade até ao rio Tejo. Já passou as Amoreiras e segue em direção à Avenida da Liberdade

Mais de seis meses decorridos sobre o início dos trabalhos, não foram realizados simulacros no interior do túnel com o Serviço Municipal de Proteção Civil e a Companhia de Intervenção Especial do Regimento de Sapadores de Bombeiros de Lisboa (RSBL). Esta companhia, instalada no quartel de Marvila (situado a cerca de 12 quilómetros da entrada do túnel, na Rua de Campolide), é a unidade que responde aos pedidos de resgate de maior risco. À superfície, foram realizados pelo menos dois exercícios: a 10 de abril, foi simulado o resgate de um manobrador de grua em Santa Apolónia, e a 23 de novembro, antes do início dos trabalhos da tuneladora, foi testado o resgate de uma vítima após uma queda em altura, no estaleiro de Monsanto.

Quando a VISÃO questionou o executivo camarário sobre os problemas, recebeu um convite para conhecer a obra e observar as condições de segurança. Mas a nossa equipa de reportagem não entrou na galeria subterrânea e apenas visitou o estaleiro à superfície, alegadamente porque os responsáveis não estavam avisados e os trabalhos em curso nesse dia (11 de junho) não o permitiam. A visita ao túnel teve de ser adiada, encontrando-se, quase um mês depois, ainda sem data marcada.

Contradições sem explicação

Na conversa mantida durante a visita ao estaleiro, os dois responsáveis ‒ Silva Ferreira, coordenador da equipa de projeto da CML, e Nuno Ferreira, representante da empresa de fiscalização TPF ‒ reconheceram alguns problemas, como a inexistência de máscaras de fuga dentro do túnel. Ressalvando que não são obrigatórias por lei, ambos desvalorizaram a situação. Silva Ferreira explicou que “em caso de acidente, os trabalhadores terão de percorrer, no máximo, 50 metros” entre a cabeça da tuneladora e a câmara de refúgio (partindo do pressuposto de que todos se encontrariam junto à parte frontal da máquina, e não noutros locais).

Adicionalmente, o representante da TPF disse que a companhia de bombeiros do RSBL teria rejeitado um modelo de máscaras inicialmente proposto, e “solicitado outro modelo”, idêntico ao usado nas obras de expansão do Metro de Lisboa. As novas máscaras “estão encomendadas”, de acordo com Nuno Ferreira. Mas o chefe da Companhia de Intervenção Especial do RSBL, Rui Pego, mostrou-se surpreendido com essa alegada recusa. “Não damos esse tipo de… consultoria”, disse à VISÃO. Esclareceu que os bombeiros dispõem do seu próprio “material de proteção individual” para intervir numa obra subterrânea, material esse que inclui um “aparelho autónomo de respiração”, vulgo máscara de ar comprimido (semelhante à usada pelos mergulhadores), e “outra máscara de apoio para auxiliar e fornecer ar à vítima”. Os bombeiros “estão sempre preparados para intervir em caso de acidente e fazer o seu melhor”, disse ainda.

Dias depois do encontro com os responsáveis da CML e da TPF, a VISÃO questionou a Mota-Engil sobre as condições de segurança da obra. A empresa respondeu, por escrito, que a “instalação” de “máscaras de emergência/resgaste” de “ar comprimido, tipo rebreather”, “está em curso”, distribuídas pela “frente da máquina e em vários pontos estratégicos da mesma, no veículo de transporte e nas câmaras de refúgio, tendo em conta o número máximo de pessoas permitidas no interior do túnel”, que é de 20 trabalhadores em cada um dos dois turnos.

Aduelas de betão Serão precisas mais de 2400 peças destas para formar os anéis que vão suster o túnel. Cada uma mede 1,8 metros de largura e 30 cm de espessura

Acontece que os trabalhadores ainda não as viram, e continuam sem saber da sua existência, segundo indicam os testemunhos recolhidos pela VISÃO já depois de ter recebido essa informação da Mota-Engil. Através da assessoria de imprensa, a VISÃO solicitou à construtora uma visita ao interior do túnel para confirmar a instalação das máscaras, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.

A empresa garantiu também que “a câmara de refúgio está operacional e com capacidade de alojar 20 trabalhadores por um período de 24 horas. Possui suprimento de ar independente, água, alimentos secos, produtos e facilidades de higiene para o período considerado”. E afirma, tal como os dois responsáveis da obra, que “a formação é efetuada” em processo contínuo e “adequada ao desenvolvimento dos trabalhos.” Acrescentou ainda que vão ser instaladas novas “câmaras de refúgio, com capacidade para 12 pessoas, a cada 1 500 metros de túnel construído”, como “complemento à câmara de refúgio principal”.

Também Silva Ferreira afirmara à VISÃO que a câmara de refúgio tinha “autonomia para 24 horas, energia autónoma, ventilação, água e alimentos para abrigar 20 trabalhadores”. Mas a VISÃO sabe que, depois dessas declarações, decorreram trabalhos na câmara de refúgio com vista à sua certificação.

Confrontada com o atraso na realização de simulacros no interior do túnel, a Mota-Engil alegou que já foram feitos “exercícios internos e externos com a colaboração do Batalhão Sapadores de Bombeiros de Lisboa”, encontrando-se “previsto um simulacro completo acima dos 1 000 metros de extensão”. Desconhecendo essa intenção da construtora, o chefe Rui Pego disse confiar que tal acontecerá “na devida altura”, até porque as normas legais “assim o determinam”. Com ou sem simulacros, “os bombeiros estão sempre preparados para intervir em caso de acidente”, acrescentou. Mas reconheceu que o “planeamento do exercício de simulacro” é muito importante, já que “permite verificar o risco” de acidente.

Os trabalhadores com mais experiência de obras subterrâneas estão conscientes dos riscos. Com o piso do túnel em meia lua, inclinado e coberto de terra e lama, as possibilidades de fuga e saída para o exterior (ou mesmo para a câmara de refúgio) a partir dos mil metros, e sem máscaras de emergência, são praticamente impossíveis em caso de incêndio. O veículo de transporte para o exterior também ainda não estará equipado com máscaras ou sistema de ar comprimido. Além disso, os turnos de 12 horas, de segunda a sábado, são considerados muito longos e duros, e os salários são baixos, tendo em conta a dificuldade de uma obra que emprega mais de uma centena de pessoas, entre portugueses, franceses, luso-franceses e imigrantes de várias nacionalidades. Por agora, confiam na proteção de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros e “tuneleiros”, cuja imagem foi colocada à entrada do túnel para zelar pelos que lá entram.

Dois túneis para acabar com as cheias

Quando forem concluídos, em 2026, Lisboa não voltará a ficar debaixo de água

Tuneladora Silva Ferreira, coordenador da CML, mostra a réplica da máquina gigante que abre caminho debaixo de terra

“Não haverá mais cheias na Baixa de Lisboa e em Alcântara” depois da conclusão, em 2026, dos dois túneis previstos no Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL), garante José Silva Ferreira, o engenheiro de 72 anos, com vasta experiência de trabalho em Portugal, Alemanha, Angola e Macau, que foi nomeado pela CML para acompanhar aquela que será a grande obra da sua vida.

É ele quem nos mostra o enorme reservatório de 17 mil metros cúbicos que está a ser construído no estaleiro da Rua de Campolide, perto de Monsanto, para recolher a água dos picos intensos de chuva, nos pontos altos da cidade, e encaminhá-la para a galeria aberta cerca de 50 metros abaixo da superfície. Este túnel, que ligará Monsanto a Santa Apolónia, terá pontos adicionais de captação ao longo do percurso, na Avenida da Liberdade, Largo de Santa Marta e Avenida Almirante Reis (perto do Largo do Intendente), conduzindo de seguida o caudal até ao rio Tejo, sem causar inundações nos locais mais críticos da cidade.

Uma parte dessa água da chuva, depois de filtrada dos detritos no reservatório, será retida e usada para lavar as ruas e regar os espaços verdes da capital, ajudando a poupar água potável… e também a reduzir a conta da água da CML que, segundo o presidente Carlos Moedas, atinge €4 milhões por ano.

Lá dentro, a Oli, nome de batismo da tuneladora gigante com cerca de 130 metros de comprimento, avança perfurando o subsolo debaixo da cidade à razão de 18 metros por dia.  A galeria, depois de aberta, é sustida por uns colossais anéis formados por seis enormes aduelas de betão, pesando quase quatro toneladas cada. Em média, são colocados 10 a 12 anéis por dia, mas haverá alturas em que a máquina poderá ter de abrandar o ritmo, quando se aproximar das linhas do Metro ou do túnel do Marquês.

Se tudo correr como planeado, a Oli chegará a Santa Apolónia no primeiro trimestre de 2025, sendo de seguida transportada, por estrada, para o segundo túnel, a construir a partir do Beato até ao convento de Chelas, numa extensão de um quilómetro. Quando este estiver concluído, espera-se que as cheias em Lisboa sejam apenas uma (má) recordação.

Os resultados da primeira volta das legislativas francesas não surpreenderam ninguém, a começar pelo Presidente Macron. Depois de o partido de Le Pen ter vencido as europeias pela terceira vez consecutiva, de o governo assentar numa erosão da maioria relativa e de a popularidade do Presidente se manter estavelmente em baixa, este tinha de tomar uma de duas opções, ambas más: ou deixava acentuar o cerco das oposições ao seu projeto, as quais se apoiam nas ruas e num sentimento alastrado anti-Macron; ou se antecipava a uma prolongada agonia até final do mandato, permanecendo o alfa e o ómega de toda a raiva do sistema, podendo perder o governo e o Eliseu para o nacionalismo nos próximos ciclos políticos.

Só quem não percebe a natureza de Emmanuel Macron pode ficar surpreendido com o que fez. A sua natureza é de risco permanente, um ego que o projetou de um governo socialista para uma candidatura à presidência que acabou por destruir o seu partido de origem, transformando estruturalmente um dos hemisférios da V República. O outro, no espaço da direita gaullista, caminha para o mesmo fim, numa linha que caracteriza outros partidos da mesma família por esta Europa fora, canibalizados pela direita radical e pela extrema-direita, quer por esperteza desta quer por incompetência daqueles. A responsabilidade, porém, deve ser repartida também com Macron, que ao desnatar os dois hemisférios políticos – “nem de esquerda nem de direita” – acabou por desconectar eleitores com programas, desviando-os para um projeto híbrido, essencialmente orientado para si próprio. Ora, uma democracia saudável não deve cair num canto destes, sob pena de ficar refém dos inevitáveis bloqueios que o sistema emitirá para travar tamanha concentração de poder. Deste ponto de vista, o macronismo seria sempre um momento na história política francesa, mas o que podemos concluir é que a marcará por longos anos.

Com os dados em cima da mesa, Macron arriscou tudo. Dissolveu a Assembleia Nacional, sabendo perfeitamente o que daí poderia resultar: uma maioria absoluta ou relativa da extrema-direita, com o apoio da direita clássica. Apesar dos apelos a uma frente republicana, não estou certo de que a vitória desta seja, na verdade, o objetivo de Macron, que teria de continuar a tutelá-la, sendo ela de natureza negativa e por isso frágil, pouco coesa e de programa inconsistente, ou seja, geraria provavelmente mais raiva popular, poucas decisões eficazes e acentuaria a queda do Presidente até às eleições de 2027. Por seu lado, uma maioria das várias direitas radicais, com as limitações orçamentais em choque com as suas propostas económicas, além do levantamento de um clamor popular hostil, desviaria a raiva do Eliseu para esse novo governo, permitindo a Macron colocar-se como depositário dos valores da República e da Europa, reconquistando uma nova vida. É mais difícil fazer isto aos 82 anos, não é impossível com a energia dos seus 46 anos.

Se esta é a leitura cínica dos acontecimentos (mea culpa, mea culpa), são brutais os perigos da empreitada: transformação estrutural de um país fundador da União Europeia num continente em guerra e, ainda por cima, com uma Alemanha politicamente fraca e uma América tão disfuncional como democraticamente mergulhada numa crise profunda. É, por isso, uma tempestade perfeita que exigirá menos jogo de Macron e mais sentido de Estado do Presidente francês.

Além disso, uma coabitação Macron-Bardella (tutelado por Le Pen) abrirá clivagens sobre competências em política externa, europeia e de defesa, podendo gerar efeitos perversos ao funcionamento das instituições comunitárias e às suas fundamentais decisões dos próximos anos. A começar nas discussões orçamentais da União, passando por importantes relações bilaterais na área da segurança, como são os acordos com o Reino Unido e a Alemanha. O projeto de Le Pen passa por denunciá-los e revertê-los, forçando outros realinhamentos ou até nenhuns. Minar propositadamente o eixo franco-alemão é um mau prenúncio para a integração europeia, para os alargamentos, para o apoio à Ucrânia, para a resistência face a uma tenaz operada em sentidos múltiplos por Putin, Trump e Xi. Minar propositadamente a relação com Londres é deitar fora a oportunidade de, com um governo trabalhista menos problemático com a UE, reavivarmos o seu importante contributo para a segurança continental.

Em 2017, testemunhei, na praça do Louvre, a entrada-relâmpago de Macron na história francesa. Sete anos depois, virado o sistema do avesso e frustrados quase todos os objetivos, o Presidente sobe a parada. Esperemos que o risco, por uma vez, compense. É o nosso futuro coletivo que está em xeque.

Norte

O partido conservador e os seus líderes têm protagonizado um declínio que merece reprovação forte nas urnas. Um nacionalismo inglês bacoco, uma espécie de trumpismo de Eton, sem qualquer dignidade, apelo ou mínimos aceitáveis.

Sul

Na África do Sul, perdida a maioria absoluta do ANC ao fim de trinta anos, o novo executivo de Ramaphosa assegurou 20 ministérios para o partido de Mandela e 12 para os restantes seis partidos, de orientação variada e até contraditória.

Este

E ao décimo quarto pacote de sanções à Rússia, a UE finalmente tocou no nervo, o gás natural liquefeito, com foco nas importações por transbordo em portos europeus e por via terrestre para revenda nos Estados-membros. É melhor do que nada.

Oeste

As presidenciais na Venezuela, a 28 de julho, estão marcadas pelo total condicionamento à oposição, impedimentos administrativos e subterfúgios vários para beneficiar Maduro. A data coincide com os 70 anos de Hugo Chávez.

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A abertura da 41.ª edição do Festival de Almada coube a uma companhia portuguesa. Terminal (O Estado do Mundo), da Formiga Atómica, subiu ao Palco Grande, montado ao ar livre na Escola D. António da Costa, nesta quinta, 4, numa noite quente que pressagia um festival de temperaturas altas e público caloroso.

A VISÃO esteve à conversa com Rodrigo Francisco, 43 anos, diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada, organizadora do festival, a quem cabe a escolha dos espetáculos que, todos os anos, põem Almada em festa. Porque neste festival, como diz o seu diretor, “cabem as palavras festa e estival”, razão pela qual há muito a acontecer além de teatro.

Na sua apresentação do programa, diz que não procura “agrupar disciplinas, espectadores ou artistas em compartimentos estanques”. O que quer dizer exatamente?

O Festival de Almada inscreve-se numa tradição de festivais como o de Nancy e o de Avignon, que funcionam como locais de encontro e de diálogo, acho que é importante manter essa linha. Além de que é diferente ser uma companhia de teatro a organizar um festival ou ser um programador.

Em que aspeto?

É verdade que sou eu que tenho essa responsabilidade de escolher os espetáculos a apresentar, mas é a Companhia de Almada que constrói este festival. É diferente serem fazedores de teatro a acolher artistas, pois nós sabemos quais são as necessidades que têm ao vir apresentar um espetáculo num país estrangeiro, ou que tipo de relação é preciso estabelecer com o espectador. Damos, por exemplo, folhas de sala, não para explicar os espetáculos, mas para dar alguns elementos aos espectadores sobre o que vão ver.

Este festival é, no fundo, uma espécie de Natal em julho. É quando convidamos os espectadores que aqui vêm durante o ano a contactar com o teatro que melhor se faz. O que lhes permite crescer como espectadores e a ser também mais exigentes com o nosso trabalho.

Qual é o feedback que recebem das companhias estrangeiras que aqui vêm?

Aquilo que surpreende os artistas é chegar a um festival, que já é algo sonante – ainda há dias o El País publicava um artigo sobre o Festival de Avignon e o de Almada -, e deparar-se com uma organização de certa forma artesanal. Somos 33 pessoas na Companhia, e somos nós que montamos estes restaurantes, por exemplo. A Teresa Gafeira, atriz, é quem faz as ementas e também dá uma perninha a dirigir um dos restaurantes. Também fazemos um jornalzinho diário, alguns dos atores fazem parte das equipas de acolhimento que vão buscar as companhias ao aeroporto e as leva ao hotel… Não conheço nenhum outro festival da dimensão do nosso que mantenha esse cariz de despreocupação e de comunidade.

Como é que o festival se mantém financeiramente?

Somos financiados pelo Ministério da Cultura, através da Direção-Geral das Artes, e pela Câmara Municipal de Almada. E temos alguns apoios de parceiros como o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional D. Maria II, e também de alguns institutos estrangeiros. Este ano, o apoio do Instituto Italiano de Cultura foi substancial, pois constituiu um quarto do financiamento do Ministério da Cultura (o que recebemos é para a nossa atividade anual).

Um festival com 41 edições tem de se candidatar a cada quatro anos a um subsídio, e somos avaliados por um juiz de um concurso público que pode, simplesmente, decidir que isto não é muito interessante e, portanto, acaba-se.

Em relação à programação, qual a sua preocupação quando faz a escolha?

Quem faz a programação tem a obrigação de ser um intermediário entre o público e os criadores. Esse exercício e ter a humildade de perceber que o que conta não é o nosso gosto pessoal é importante. O Joaquim Benite [encenador e fundador da Companhia de Teatro de Almada] falava muito dessa capacidade elástica de percebermos que o teatro é muitas coisas, e que nós não somos detentores da verdade. O que é que têm em comum Bob Wilson e Peter Stein? Nada, mas um tem uma linha assente no texto e o outro é imagem, forma, som… E os dois são grandes génios.

Três espetáculos a não perder

A oferta desta 41ª edição do Festival de Almada é variada, com trabalhos de oito companhias nacionais e 11 estrangeiras, a apresentar até ao dia 18 de julho. Dos 19 espetáculos que vão a palco, Rodrigo Francisco destaca três. “Se virem estes trabalhos, já levam muito daqui!”, garante. São peças muito diferentes, com linguagens e estéticas distantes, que em comum têm, sublinha, a “mestria”.

1. Relative Calm

Foto: Lucie Jansch

A “joia da coroa” deste ano é o trabalho que resulta da colaboração da bailarina e coreógrafa Lucinda Childs e do encenador e multiartista Robert Wilson, que revisitam e reformulam Relative Calm, estreado em 1981, em Estrasburgo. “Vi este espetáculo três vezes, e é absolutamente hipnótico”, refere Rodrigo Francisco. “Quando fala desta peça, Bob Wilson refere-se a ela como um pôr do sol e, de facto, quando a vemos, há sempre qualquer coisa que se vai alterando, mas nós, público, não temos a perceção dessa ligeiríssima passagem do tempo. Ele é um mestre nisso, e este é um espetáculo incrível.” Centro Cultural de Belém > 12-13 jul, sex 21h, sáb 19h

2. Crises de Nervos, Três Actos Únicos de Anton Tchekov

Foto: Tommaso Le Pera

Com este trabalho, Peter Stein – que em 2023 trouxe a Almada O Aniversário, de Harold Pinter – oferece ao público uma visão diferente dos textos iniciais do dramaturgo russo. Dos Malefícios do Tabaco (1886), O Urso (1888) e O Pedido de Casamento (1889) são três textos curtos, anteriores aos grandes trabalhos de Tchekov, escritos na sua juventude. Peter Stein, que já encenou as suas grandes obras, debruça-se agora sobre estes três textos, num trabalho de “mestria absoluta”. “Sendo textos divertidos, ele põe-nos em cena de uma forma absolutamente realista e cheia de relações psicológicas entre as personagens.” Teatro Municipal Joaquim Benite >13-14 jul, sáb 21h30, dom 19h

3. A Tempestade

Foto: Archivio Grupporiani

Traduzido para napolitano por Eduardo De Filippo, o texto de Shakespeare ganha contornos inusitados. Desde logo porque os intérpretes são marionetas. “De Filippo traduziu a peça para napolitano, escrevendo logo uma versão para teatro de marionetas. Na década de 1980, a companhia Colla e Figli, de Milão [que traz a peça a Almada], foi convidada a apresentá-la na Bienal de Veneza. É um espetáculo maravilhoso, de enorme beleza, com 150 marionetas, algumas com mais de um metro de altura.” Auditório Fernando Lopes-Graça > 6-7 jul, sáb-dom 15h

Mais para ver e ouvir…

Todas as noites, a partir das 20h, a Escola D. António da Costa, vizinha do Teatro Municipal Joaquim Benite, transforma-se numa enorme esplanada, com restaurantes e um palco destinado à música. Sob as luzes e guirlandas que lhe dão um ar descontraído, há concertos com artistas que nos trazem géneros musicais tão diversos como o cante alentejano, o jazz com origens guineenses de Bissau-Lisboa (sex, 5, 20h), Rita Vian (sáb, 6, 00h), os sons balcânicos e do Próximo Oriente com os Balklavalhau (qua, 10, 20h), entre muitos outros.

O contacto entre o público e os artistas é possível todos os dias, às 18h, no mesmo local, onde acontecem os Colóquios na Esplanada, e onde se fala sobre os espetáculos apresentados e as circunstâncias em que foram feitos.

É também nas instalações da escola que podemos ver, das 18h às 24h, a instalação de homenagem à Barraca [fundada em 1976, em Almada, na Academia Almadense], Um Sonho de Federico García Lorca em Lisboa, da autoria de José Manuel Castanheira. Liberdade! Liberdade! A Revolução do Teatro, a exposição organizada pelo Museu Nacional do Teatro e da Dança, com curadoria de Nuno Costa Moura, pode ser visitada no mesmo local e horário.

Ao lado, no foyer do Teatro Municipal Joaquim Benite, está exposta uma coleção de documentos do Arquivo Ephemera, 25 de abril: Os dias, as pessoas e os símbolos. E no Convento dos Capuchos, a pintora Ilda David expõe Quando soubermos ouvir as árvores.

Festival de Almada > Teatro Municipal Joaquim Benite, Escola D. António da Costa e Convento dos Capuchos, Almada, e Centro Cultural de Belém, Lisboa > até 18 jul > programação completa aqui

A forma como os arquitetos responderam às aspirações da população e aos ideais democráticos, após o 25 de Abril, será o mote para a 9ª edição do Open House Porto (OHP), com o tema “50 Anos a Construir a Liberdade”.

Em cada edição é escolhida uma dupla de curadores diferente e, desta vez, o desafio foi lançado às arquitetas Teresa Novais e Margarida Quintã, de pensarem “em espaços-modelo neste processo de construção da democratização”, refere Nuno Sampaio, diretor-executivo da Casa da Arquitectura, a quem cabe a organização e a produção da OHP, em parceria com os quatro municípios envolvidos. “A dupla curatorial, que pela primeira vez está entregue a duas mulheres de gerações e percursos diferentes, respondeu de forma exemplar a este desafio de mostrar como os princípios de Abril foram concretizados. A arquitetura foi um instrumento de concretização dos princípios da Democracia”, acrescenta.

Caminho das Escadinhas, em Matosinhos. Foto: Ivo Tavares Studio

Nas cidades da Maia, Matosinhos, Porto e Vila Nova de Gaia, as curadoras selecionaram espaços “maioritariamente de iniciativa estatal, municipal, associativa ou cooperativista”, organizados “em nove categorias alusivas não só às grandes carências identificadas em 1974 ‒ Democracia, Habitação, Educação, Saúde, Cultura ‒ mas também aos temas que se consideram prementes no século XXI: Mobilidade, Reutilização, Ecologia e Comunidade”.

Foram escolhidas desde obras feitas ao abrigo da operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), a primeira política de habitação social do pós-25 de Abril (como o Bairro da Bouça, traçado por Siza Vieira), a projetos ligados às preocupações ambientais (de estações de tratamentos de águas a parques) e às questões de mobilidade (de linhas do metro a pontes). “Obras de qualidade inquestionável, quer pela sua riqueza espacial quer pelos seus atributos sociais, surgidas das boas decisões políticas dos seus promotores públicos e que resultaram de processos exemplares, nos quais se conciliou a arquitetura, o paisagismo e as diversas engenharias”, sublinham Teresa Novais e Margarida Quintã.

Bairro da Bouça, no Porto. Foto: Ivo Tavares Studio

Na bolsa de visitas gratuitas (algumas delas guiadas por meia centena de especialistas) estão incluídos 65 espaços, muitos normalmente escondidos do olhar do público. Uma oportunidade para, durante dois dias intensos, conhecer boa arquitetura.

Três visitas a não perder

Residência Universitária Ventura Terra Inaugurada pela Universidade do Porto em 2023, nasce da reabilitação e adaptação de um edifício desocupado

Cooperativa As Sete Bicas É um exemplo das inúmeras cooperativas de habitação formadas no pós-25 de Abril

Corredor do rio Leça Um caso de reabilitação e gestão de um elemento natural comum a quatro municípios

Corredor do rio Leça

Open House Porto > Vários locais de Matosinhos, Maia, Porto e Vila Nova de Gaia > 6-7 jul > grátis (algumas visitas sujeitas a pré-inscrição)

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