Tal como Friedrich Nietzsche, Carl Jung está, por estes dias, transformado em estrela pop das redes sociais, apanhado em movimentos que querem ensinar-nos a viver melhor, sobretudo a viver de forma mais fácil num mundo cada vez mais difícil. Talvez uma das citações mais conhecidas do psiquiatra suíço, que muito tem servido para alimentar teorias pseudocientíficas new age, é esta: “Tudo o que nos irrita nos outros pode levar-nos a uma melhor compreensão sobre nós próprios.”

Ora, não é preciso ter o curso de psicanálise nem conhecer a fundo toda a obra de Jung para entender a raiva, o desprezo e a irritação generalizadas contra as pessoas que integraram a flotilha humanitária que queria levar alimentos e medicamentos para Gaza. Começando no comentário do ministro da Defesa, Nuno Melo, de que os ativistas “já fizeram o seu número”, e acabando nos mais torpes insultos nas redes sociais.

Mas há aqui dois planos. Um é ideológico, como o do ministro da Defesa, que chegou mesmo a colocar os cidadãos portugueses em perigo quando se referiu, na semana passada em Mondim de Basto, a “um conjunto de pessoas que se dirige à Faixa de Gaza para apoiar uma organização assim [o Hamas]”.

O outro plano é o das pessoas que não negam as atrocidades que estão a ser cometidas em Gaza, não negam as mortes nem a fome, apoiam o Governo no reconhecimento do Estado Palestiniano, mas ficam irritadas com os ativistas que chegam lá sem conseguir entregar comida nenhuma e acabam detidos pelas forças israelitas. Fizeram o seu número, sim, e foram bem-sucedidos, pois agiram para chamar a atenção – que é muito mais do que qualquer um dos que destilam o seu ódio faz. E não, gritar nas redes sociais não é agir.

O mesmo para as raivas que desperta Greta Thunberg em pessoas que não negam as alterações climáticas. O que há em Greta que tanto enerva esta gente? Talvez o facto de ser uma miúda de ação, que aos 22 anos já fez muito mais pelo planeta do que estes irritados fizeram a vida toda. Jung explica…

Agir é sair à rua, como milhares e milhares de pessoas fizeram no sábado, por toda a Europa, apelando ao fim do genocídio em Gaza, condenando Israel por ter intercetado a Flotilha Global Sumud. Agir foi o que os portugueses fizeram em 1999, de forma espontânea, por Timor. Mariana Mortágua resumiu bem a ideia quando aterrou em Lisboa, depois de ser repatriada: “Não somos heróis, somos pessoas que estão a fazer aquilo que os nossos governos não estão a fazer.”

O que estava a nosso Governo a fazer quando três caças F-35, que os Estados Unidos venderam a Israel, fizeram escala na Base das Lajes, nos Açores? Portugal entrou na guerra do Médio Oriente? As explicações são atabalhoadas e, numa primeira reação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros culpou o Ministério da Defesa, acabando por recuar. Agora o Governo diz que a culpa é dos serviços que não comunicaram o acontecido ao “nível político”, tentando poupar os ministros.

Enquanto a guerra entra na nossa campanha eleitoral para as autárquicas, à hora de fecho desta edição, Israel e Hamas conversavam no Egito, depois de o Hamas ter anunciado estar disposto a libertar todos os reféns ainda em sua posse. Conseguirão os Estados Unidos o seu tão almejado acordo de paz?

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À sua sétima obra sobre África, o jornalista e escritor António Mateus, 65 anos, conta, em Angola – Vidas Quebradas, que agora chega às livrarias, a épica e desconhecida história da megacaravana automóvel que, em agosto de 1975, encetou um perigosíssimo trajeto para as chamadas Terras do Fim do Mundo, para fugir ao horror que tomara Nova Lisboa (atual Huambo). A “esmagadora maioria” dos integrantes, diz, tinha a esperança de que a independência reporia a ordem, e de que poderia regressar a casa. Meio século depois, o essencial do problema subsiste, acusa o autor nesta entrevista à VISÃO: MPLA, UNITA e FNLA “negam barbaridades cometidas pelos seus”, mas “nenhum deles foi parte inocente” em “inadmissíveis violações de direitos humanos”.

Como e quando soube do caso da “maior caravana de fuga ao caos que precedeu a independência de Angola”, conforme a apresenta no seu livro?
Foi em 1995, quando chefiava a delegação da Lusa em Joanesburgo. António Figueiredo, que era à época o presidente da Casa de Angola na África do Sul, deu-me conta dessa história, absolutamente de filme, da maior caravana automóvel que tinha fugido da então Nova Lisboa [atual Huambo] para as que são conhecidas como as Terras do Fim do Mundo. E de que grande parte das pessoas que a integraram eram já nascidas em Angola. Não se viam, portanto, no que era apodado como “retornados”.

O que mais o espantou quando soube da história?
Duas coisas em simultâneo. A primeira foi a noção, que eu não tinha, de que houve muita gente que não quis vir para Portugal. Os média portugueses falavam em cerca de 300 mil pessoas que tinham vindo de Angola para Portugal, na ponte aérea ou por via marítima. Mas não fazíamos a mínima ideia do impacto extramuros do colapso da ordem e da segurança em Angola, que teve uma escala muito maior do que a que era contada em Portugal. Por outro lado, eu também não tinha noção de um paradoxo, muito refletido no livro: as únicas pessoas que, às tantas, se condoeram dos fugitivos e os ajudaram foram os então proscritos sul-africanos. Proscritos porque a África do Sul na altura tinha em força um regime de segregação racial, o apartheid.

Percebe-se perfeitamente a decisão daquelas pessoas de fugirem de Nova Lisboa naquela altura, em agosto de 1975…
Quando a polícia deixa de existir, quando quem tem uma arma é que manda na rua, seja essa pessoa quem for, quando uma Kalashnikov custa dois euros ou menos – digo assim para que se perceba –, quem a tem pode fazer o que quiser. Angola estava assim, a saque. As pessoas fugiram das suas casas para se refugiarem, aos milhares, no recinto da FINOL [Feira Internacional de Nova Lisboa], onde tinham o apoio da Cruz Vermelha, e os movimentos políticos angolanos começaram a ocupar essas residências vazias e a transformá-las em sedes suas, bem armadas. E começaram a ter escaramuças entre si, a disparar entre aquelas casas. Ou metiam-se em jipes, com metralhadoras em cima, para ir fazer uma retaliação qualquer. E as Forças Armadas portuguesas tinham instruções para não se envolver em situações de confronto com os subscritores do Acordo de Alvor [de janeiro de 1975], o MPLA, a FNLA e a UNITA…

Mas a ponte aérea para Portugal, além de Luanda, também abrangia Nova Lisboa. Porque é que essas pessoas resolveram encetar uma perigosíssima fuga por terra para a África do Sul?
Muitas dessas famílias achavam que a situação se resolveria com a independência e a reposição da ordem em Angola. Depois, na ponte aérea apenas podiam levar 20 quilos dos bens de toda uma vida. Quanto ao dinheiro que podiam levar, a quantia permitida era muito reduzida. As pessoas começaram a ficar aflitas, a dizer que preferiam ir para as Terras do Fim do Mundo por estrada numa carrinha, e aí refugiarem-se, porque assim conseguiam, ao menos, levar a mobília da sala de jantar ou as camas dos filhos. Também pensavam no dinheiro que tinham deixado no banco, com a esperança de que mais tarde poderiam levantá-lo. Foi isto que aconteceu.

Diria que a maior parte destas pessoas alimentou a esperança, até determinada altura, pelo menos, de que poderia voltar à sua terra, à sua casa?
A esmagadora maioria. Não tenho dúvidas nenhumas disso. E até eram a favor de uma Angola autónoma ou independente de Portugal, que consideravam uma evolução lógica. Tive acesso a cartas escritas dos campos de refugiados, em que essas pessoas depois foram colocadas pelos sul-africanos, pelas quais se percebe que amavam profundamente aquela terra. Houve até algumas famílias que ficaram a viver na linha de fronteira entre Angola e o Sudoeste Africano, na Faixa de Caprivi, junto ao rio Cubango, porque sonhavam com que a guerra parasse, para poderem voltar para casa. Quando Jonas Savimbi [líder histórico da UNITA] morreu [em fevereiro de 2002] e houve o cessar-fogo em Angola [acordo assinado em abril daquele ano], alguns pais das famílias que ficaram na Faixa de Caprivi, apesar da idade avançada, regressaram e tentaram refazer as suas vidas, quase 30 anos depois da fuga. Mas grande parte deles já tinha morrido.   

Ainda hoje mantém contacto com bastantes membros dessas famílias…
Sim.

Que opinião maioritária lhes observa sobre a forma como hoje olham para Angola?
Olham com muita tristeza. Sentem que o que aconteceu em Angola foi um tempo perdido. Às vezes, o sofrimento ajuda-nos a crescer. Tornamo-nos mais fortes quando sobrevivemos a uma situação de teste a nós próprios. Mas Angola teve décadas até parar uma guerra entre irmãos e está a demorar demasiado tempo a reconciliar-se, a pôr-se no caminho certo. O MPLA, a UNITA e a FNLA têm de se olhar olhos nos olhos e pedir desculpa por se terem atropelado uns aos outros. É a única maneira de terem um futuro sem rancores. 

Mas Angola tem formalmente hoje um sistema multipartidário e democrático. Ou não o vê assim?
A questão não é essa. O problema de Angola é que, até hoje, todos se culpam reciprocamente pelo colapso da ordem após o 25 de Abril de 1974, pelo desencadear e o alimentar de uma guerra que durante duas décadas destruiu o país. Negam barbaridades cometidas pelos seus nesse processo, e mentem quando afirmam que só procuraram apoios militares externos depois de a outra parte o ter feito. É verdade que, à volta disso, houve um aproveitamento por interesses externos, mas nenhum deles foi parte inocente no sucedido e em inadmissíveis violações de direitos humanos. Só assumindo as nossas nódoas e pedindo desculpa pelos nossos excessos poderemos reconciliar-nos com um adversário a quem matámos entes queridos e destruímos sonhos de vida. Este meu livro procura traçar esse caminho – sem filtros.

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Angola 1975: A coluna dos esquecidos
A partida: Entre ficar e fugir
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Dois anos após o início da guerra em Gaza, o conflito consolidou-se como uma das mais severas catástrofes humanitárias do século XXI e como um símbolo incontornável da falência ética e política da ordem global.

O que começou como um confronto localizado evoluiu para uma espiral de devastação contínua — um processo de degradação moral que desafia os próprios fundamentos do direito humanitário. A cada dia, acumulam-se as vítimas, expandem-se as ruínas e cristaliza-se o silêncio diplomático — como se a dor palestiniana tivesse tornado rotina.

O prolongamento da ofensiva, assente em bombardeamentos incessantes, deslocações forçadas e no colapso das infraestruturas civis, revela o esgotamento da diplomacia global e a impotência das grandes potências para conter a lógica da violência. Gaza transformou-se no espelho mais implacável da apatia coletiva: uma sociedade sitiada onde sobreviver é o último exercício de dignidade.

Segundo as Nações Unidas, mais de dois terços das habitações foram destruídas ou gravemente danificadas, deixando cerca de 1,7 milhão de pessoas sem abrigo. Os hospitais operam à beira do colapso, dependentes de geradores e sem medicamentos essenciais; os abrigos, outrora refúgios, converteram-se em novos alvos de ataques.

A água potável escasseia, a eletricidade rareia e a fome alastra em silêncio, atingindo sobretudo crianças e idosos. De acordo com dados recentes da OMS e da Unicef, cerca de 1,2 milhão de menores necessitam de apoio psicológico urgente, e mais de 23 mil sofreram ferimentos físicos graves — muitos com amputações ou sequelas permanentes.

Estudos indicam que mais de 90% das crianças exibem sintomas de trauma, desde insónias e pesadelos a crises de ansiedade e mutismo seletivo. Em Gaza, a infância converteu-se na primeira vítima do colapso humanitário, e o trauma colectivo é hoje a herança mais devastadora da guerra.

A destruição das escolas — com mais de 80% das instalações educativas danificadas — e o encerramento das universidades mergulharam uma geração inteira num vazio sem futuro, num limbo entre a sobrevivência e a desesperança.

Enquanto a tragédia humana se aprofunda, a comunidade internacional oscila entre a inação e a dissimulação. O Conselho de Segurança das Nações Unidas permanece bloqueado por vetos, reduzido à emissão de comunicados sem efeito.

Os Estados Unidos sustentam o discurso do “direito à autodefesa” de Israel, ignorando a desproporção abissal entre as partes e a destruição sistemática de infraestruturas civis. A União Europeia, dividida entre a culpa histórica e o cálculo político, hesita em adotar uma posição firme, permitindo que a prudência diplomática se confunda com complacência.

O resultado é uma neutralidade que, sob o pretexto da moderação, normaliza o horror. No mundo árabe, o imobilismo também domina: o Egito gere Rafah como quem controla o fluxo de uma ferida aberta; a Jordânia e o Líbano enfrentam as suas próprias crises, e as monarquias do Golfo preferem o silêncio conveniente à solidariedade efetiva. A causa palestiniana, outrora símbolo de unidade, tornou-se um incómodo político.

A guerra desenrola-se igualmente no domínio simbólico. O Ocidente alimenta-se de uma linguagem de eufemismos — “danos colaterais”, “operações cirúrgicas”, “zonas seguras” — que dilui a brutalidade dos factos. As redes sociais, saturadas de imagens de destruição, banalizam o horror e anestesiam a empatia: quanto mais se vê menos se sente.

A repetição da tragédia converte a dor em ruído, e o sofrimento deixa de comover. A paralisia moral global é hoje tão letal quanto as bombas. Gaza não é apenas um palco de guerra, mas o ponto de fratura de uma civilização que se habituou a assistir à morte sem reagir.

A persistência do conflito expõe o colapso das instituições multilaterais e o uso seletivo do direito internacional — implacável com os fracos, condescendente com os poderosos. Quando a justiça se transforma numa moeda política, o seu valor evapora-se.

Passados dois anos, Gaza já não é apenas um território devastado: é o retrato mais nítido da decadência ética do nosso tempo. Cada ruína, cada criança órfã, cada hospital em cinzas denuncia a contradição de um mundo que proclama os direitos humanos enquanto observa a sua violação diária.

O que se destrói não é apenas uma cidade, mas a própria ideia de humanidade. Se o século XXI começou com a promessa de uma ordem baseada em valores universais, Gaza demonstra o inverso: a erosão silenciosa da compaixão e a indiferença erigida em norma. Talvez essa seja a ferida mais profunda — a certeza de que, diante do abismo, o mundo preferiu desviar o olhar.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Serpa Pinto, 25 de Agosto de 1975.

Sempre a direito, só no mapa! Porque, em rigor, foi quando começou, de todas as formas, o maior teste à resistência daquela multidão em fuga. A verdade é que as obras de pavimentação estavam a transformar a EN140 numa autêntica pista onde poderiam até aterrar, em segurança, aeronaves de pequeno/médio porte. Só que as obras, no sentido norte-sul, mal se tinham acercado de Serpa Pinto (Menongue). Daí para baixo, fazia-se jus, em termos descritivos, a uma rota para as chamadas Terras do Fim do Mundo.

A meio da segunda jornada já se antevia que os três a quatro dias de viagem que inicialmente se previa durasse a viagem até à fronteira seriam largamente excedidos, dada a frequência de paragens provocadas pelos mais diversos motivos. Desde avarias de viaturas até bloqueios por militantes armados, como o ocorrido ainda antes de Serpa Pinto. Elementos da UNITA, num controlo de estrada, endureceram mesmo a sua posição após saberem que tinha sido pago um valor substancial à escolta da FNLA.

Só no dia seguinte, após sucessivas negociações rompidas e retomadas, no limite de emoções, se chegou a acordo que, mesmo assim, quase abortou à última hora.

Pausa Uma família durante uma paragem no percurso entre Nova Lisboa e Katwitwi

O levantamento do bloqueio seria feito a troco de pagamento adicional, significativo, restrito às viaturas que contribuíssem para esse fundo, o que era impossível cumprir por inúmeras famílias. A questão acabou por resolver-se através de peditório, de carro em carro, por elementos da organização.

Sobre as dificuldades do percurso, é precioso o registo para memória feito a 26 de Agosto pela mais velha dos irmãos Ferrão, a Amélia, ao terceiro dia completo de viagem, depois de a caravana ter voltado a parar, agora 200 quilómetros a sul de Serpa Pinto: “Estou a começar esta carta e não sei quando nem onde a poderei pôr no correio, mas tenho fé em Deus que esse dia chegará e vocês poderão receber notícias nossas desta viagem que não sei onde e quando terminará.

Estamos parados desde ontem à noitinha, pois daqui para a frente não se pode andar. Neste momento são 15h00. A estrada é só areia, o calor abrasador, o que nos vale é o rio Cubango que passa aqui perto e onde nos fomos todos lavar, lavar a loiça e buscar água para fazer a comida e beber. A areia está quente, parece que estamos em Luanda. As máquinas que andam a fazer a estrada estão desde ontem de manhã a rebocar os carros, numa extensão de oito quilómetros, mas hoje rebocaram poucos, parece que é por falta de gasóleo.”

O registo de Amélia é particularmente gráfico: “Estou sentada na carroçaria da camioneta, a escrever em cima de um colchão. De vez em quando, olho e o espectáculo é impressionante. Só vejo carros parados e gente dentro e fora destes. Muitos nem os alcanço, a estrada faz uma curva. Aqui perto há uma clareira, mais ou menos lisa, e juntaram lá os carros que couberam. Os outros continuam em fila na estrada.”

A alimentação de toda aquela gente começa a revelar-se um problema
de resolução cada vez mais complicada, mesmo apenas à escala familiar

Quatro dias depois escreve que já passaram Serpa Pinto (hoje Menongue), 418 quilómetros a sul de Nova Lisboa, uma viagem que noutras circunstâncias levariam cerca de cinco horas a percorrer, mas entretanto a caravana voltou a parar, para desânimo geral, devido às obras naquele troço da estrada.

“Todos barafustam, dizem asneiras, um dá uma opinião, outro dá outra e ninguém se entende. Nós somos agora os da frente da coluna. Primeiro, a camioneta e, a seguir, os carros. As niveladoras têm andado a tirar areia para ver se os turismos passam sozinhos para no fim resolverem as camionetas. Os carros dos nossos foram dos primeiros a passar; se conseguiram chegar ao fim da areia estão a uns cinco ou seis quilómetros à frente.”

A alimentação de toda aquela gente começa a revelar-se um problema de resolução cada vez mais complicada, mesmo apenas à escala familiar; “Até ontem cozinhei para todos, em cima da camioneta, no meu fogão. Até fritei batatas e fiz uns pastéis para servir de pão, aqueles bolos fritos com uns ovos, mais por causa do Jorge e da Tita. Hoje, coitados, vão passar mal. O mata-bicho, ainda fui eu quem lhes o deu, mas não os vi mais hoje. Até aqui ainda ninguém nos incomodou com revistas e temos dormido todos juntos. Mas esta noite vamos ficar sozinhos, as outras camionetas estão distanciadas de nós!” – descreve a mais velha dos manos Ferrão.

Soam tiros próximos. Um dos elementos da escolta diz terem sido disparos de aviso para o condutor de uma camioneta que queria ultrapassar outras viaturas à sua frente. Amélia pensa na família que ficou para trás: “Não sei se a explicação é real ou algo dito para nos sossegar. Se tivéssemos trazido a avó connosco, ela já teria morrido. Ontem disseram-nos que estão dois homens em perigo de vida e uma senhora com dores de parto, e que um homem foi apanhado por um jacaré no rio onde se tinha ido lavar. “Este rio é muito grande e dizem que tem muitos jacarés.”

No dia seguinte retoma a escrita da carta, que já parece um diário da fuga: “Hoje não sei mais nada, estamos isolados, não falámos com ninguém. A tropa que vem connosco é toda da FNLA e são quase todos brancos. Muitos são nossos conhecidos e o Nando, Jorge e Tita conhecem-nos quase todos. Alguns trazem a família, deve ser para já ficarem do outro lado. Estou a escrever esta carta aos bocados, se calhar quando chegar ao fim vocês não percebem nada.”

A ESCOLTA DA CARAVANA

Precioso para se entender o ocorrido, nos incidentes de segurança no percurso, é o testemunho de Armando Valério (1), como foi o caso da emboscada feita à caravana, já depois de Serpa Pinto: – As FALA (braço armado da UNITA) já tinham tentado antes impedir-nos de prosseguir a viagem, mas chegou-se mesmo a vias de facto quando atingiram a tiro vários carros da coluna, entre os quais uma carrinha Renault 4 do padeiro do Assango, o senhor Gomes.

Valeu aos refugiados a prontidão e eficácia de resposta de um antigo “flecha”, atirador, que se internou no mato e identificou na origem dos disparos três indivíduos posicionados na copa de árvores. Armando descreve depois que o ex-militar sacou de uma carabina 30.6 e abateu os agressores dos civis em fuga.

– Eu viajava em reconhecimento no meu Ford Capri, vários quilómetros à frente da coluna, sempre acompanhado por um ou dois camaradas (da FNLA). Éramos obrigados a parar nos controlos de estrada da UNITA e por várias vezes chegámos mesmo a estar de armas apontadas uns aos outros e prontos a disparar. Umas vezes, prevaleceu o bom senso. Outras, tive de chamar por rádio o “tira-teimas”, que era uma (metralhadora pesada) Browning 12.7 montada num reparo em cima de um Toyota Land Cruiser, operada por um ex-flecha que integrava a escolta e seguia sempre no meio da caravana, para poder acorrer à frente ou atrás, o mais rápido possível.

A retoma do diário de Amélia deixa a nu os efeitos do desgaste sobre os civis em fuga: “São 4h da tarde do dia 27, mas nem sei se é quarta ou quinta-feira. Há mais de duas horas que estou a ver passar carros. De tantos em tantos a niveladora volta para tirar areia e o ciclo repete-se. Ninguém pode imaginar as aventuras desta viagem, só quem passa por elas. Quem me dera poder passar por um sítio onde pudesse meter esta carta no correio, pois sei que devem estar ansiosos por ter notícias nossas.

Instantâneos Campo de refugiados no Sudoeste Africano (atual Namíbia); Armando Valério, membro da escolta armada da caravana; Carlos Serra, um dos organizadores da caravana, na sua casa em Joanesburgo, na África do Sul, em 2000; Manuel Coelho no campo de refugiados de Grootfontein, onde assumiu o comando militar do mesmo, ao serviço das forças armadas sul-africanas, em 1975

Dia 28, sete horas da manhã, faz muito frio pois estamos numa baixa à beira de um rio. Ontem à noite esteve aqui um jipe com tropas e disseram que os carros já tinham passado todos e estavam fora da areia. O Jorge, com um filho da dona Luísa, seguia mais à frente. Disse que hoje começavam a rebocar-nos, mas ainda não apareceu ninguém. Levantei-me às 6 horas e vim para a cabine, embrulhada num cobertor, ver nascer o sol. Soaram tiros muito perto e estou com medo.

O Mário foi falar com os das outras camionetas, queira Deus que nos tirem daqui depressa. Julgo que já não devemos estar muito longe da fronteira, talvez 200 km. Mais tiros, mas agora parecem de caçadeira; com certeza, foi alguém que foi à caça. O Nando muito tem falado da arma que deixou e que, com esta demora toda, ainda dava para ir à caça. O Mário queria uma cana de pesca, pois há bastantes dias que vamos sempre à beira do rio Cubango, a maior parte do tempo parados.”

“Dia 29, 16.30 h. Saímos ontem às 9 horas, rebocados pela niveladora. Entrámos depois num desvio onde ficámos outra vez enterrados e desta vez sem máquina para nos desatascar. Fartei-me de trabalhar debaixo de um calor horrível e uma poeira medonha. Por fim, lá conseguimos sair com auxílio de um rapaz do Bailundo a quem o Mário também ajudou. O caminho era horrível e eu estava sempre a ver quando é que a camioneta se virava. Até que entrámos numa estrada em que por ter pedras, já não nos enterrávamos, mas fazia muito pó.”

Sábado, 30 de Agosto. A caravana chega ao arame da fronteira com o Sudoeste Africano. São sobrevoados por um helicóptero militar, em voo rasante. Acenam aos militares e estes respondem-lhes da mesma forma. Pouco depois, aproxima-se um jipe. Um dos ocupantes, todos eles fardados de verde, pergunta-lhes em português se alguém precisa de médico porque está um disponível um pouco mais à frente para cuidar de quem necessite, num campo de refugiados, improvisado, ainda em território angolano.

(elemento da escolta da caravana)

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Angola 1975: A coluna dos esquecidos
A partida: Entre ficar e fugir
António Mateus: “As únicas pessoas que, às tantas, se condoeram dos fugitivos e os ajudaram foram os então proscritos sul-africanos”

Palavras-chave:

Nova Lisboa, 10 de Agosto de 1975. Véspera da data apontada para saída pela rota de Sá da Bandeira. Fernando e o cunhado mais novo, o Beto, irmão de Otília, foram sequestrados num controlo de estrada da FNLA em plena cidade, e ficaram sem o seu Fiat 128, amarelo, a viatura que estavam a preparar para a fuga.

– Tínhamos começado a carregar o carro com tudo de valor para a viagem que lá conseguíssemos encaixar. Incluindo, no porta-bagagens, um vasilhame adicional de combustível, além de conservas, roupinhas, farinhas e leite em pó para a Paula. Aproveitámos todos os espaços, tirámos inclusive os forros das portas e até ali guardámos coisas. – Recorda Otília. – Como os meus pais estavam a viver connosco no centro da cidade decidiram acompanhar-nos. Só que tinham deixado em casa, no Bairro de São João, um contentor de gasolina para o carro deles. Por isso na véspera, o Nando e o Beto foram lá buscá-lo no nosso Fiat!

A memória do marido sobre o pesadelo que se seguiu mantém-se até hoje vincada ao pormenor, mais parecendo cena de Hollywood; – De início resisti um pouco à ideia de sair àquela hora, por já estar a cair a noite e o risco de problemas aumentar nessa altura. Mas decidi avançar quando o meu cunhado se ofereceu para ir comigo.

Só que, a meio do caminho, surgiu-lhes pela frente um indivíduo armado que os mandou parar. Fernando ainda pediu ao cunhado que se mantivesse calado e o deixasse lidar com a situação, mas assim que abriu a janela o outro ordenou-lhe que lhe entregasse o relógio de pulso e os dois saíssem da viatura. Beto tentou então aligeirar o ambiente, saudando em termos típicos da MPLA, um segundo “militante” que entretanto se aproximara do seu lado. Só que os dois eram da FNLA.

– Se antes já estávamos em apuros, depois disso as coisas pioraram, com gritos, ameaças, apontar de armas e eles a chamarem o resto do grupo. Percebemos logo que caíramos num atoleiro, de saída difícil e consequências imprevisíveis. Levaram o carro com tudo o que tínhamos para a viagem e, sempre sob ameaça de armas, mandaram-nos aguardar no passeio por novas ordens – descreve Fernando.

Coleta Cada carro, ligeiro ou pesado, teve de pagar cinco mil escudos à escolta de proteção armada do “batalhão Chipenda”

Foi nessa altura que se aperceberam da presença de um grupo da FNLA numa moradia próxima. Indivíduos armados observavam-nos do quintal e de uma pequena varanda.

O que aparentava ser o líder mandou Fernando e Beto ficarem de pé no passeio fronteiro. Posição em que permaneceram, durante a hora seguinte, servindo de escudos humanos, enquanto o grupo ia assaltando e violentando passantes.

À medida que aumentava o número de capturados, Fernando resguardava a serenidade invocando imagens da mulher e da filha. Até que o condutor de um carro ignorou as ordens para imobilizar a viatura e foi atingido por uma chuva de balas. O único ocupante do automóvel não teve a oportunidade de contar a história.

– Desde o primeiro minuto em que fomos capturados, pensei que seria preferível arriscar a fuga a acabar por ser executado e morrer, sem glória, às mãos daqueles tipos. Uma intenção que partilhei com o Beto assim que pude! – prosseguiu o recém-desmobilizado militar.

Do ponto onde se encontravam vislumbrou pelo menos uma dúzia de indivíduos armados. À frente havia uma rua larga e, nas traseiras, além dos prédios dos caminhos-de-ferro, um enorme descampado apenas quebrado pela mata e a linha do comboio. Eram uns bons 150 metros de distância, sem cobertura, que não oferecia muitas hipóteses de sucesso a uma tentativa de fuga, pelo que resolveu aguardar.

Por volta da meia-noite, ouviram os militantes combinar levá-los para outro local; uma casa cada vez mais conhecida entre os habitantes que ainda permaneciam em Nova Lisboa como o “matadouro”. Pela fama de que quem lá entrava prisioneiro já não saía pelo próprio pé.

– “Levantem-se! Os quatro! E vão para o jipe”, ditou um dos sequestradores, com ar de desdém, enquanto apontava sucessivamente a arma a mim, ao Beto e a dois negros, que tinham espancado à nossa frente, depois de lhes terem pedido identificação da FNLA e eles não a terem. – relata Fernando. – E lá subimos nós, de corações apertados, para um Land Rover estacionado do outro lado da rua.

– Uma pessoa é tomada por uma sensação avassaladora quando compreende que, possivelmente, não estará vivo por muito mais tempo. O cérebro inunda-se de pensamentos estranhos e imaginários, mas também, e ao mesmo tempo, de outros bem vivos e reais. A nossa vida parece tornar-se, de repente, um filme que roda a velocidade diabólica.

A boca quase seca. E o que resta da saliva assume um gosto amargo, difícil de engolir. Segue-se uma sensação de impotência, fraqueza e falta de ar. É o momento em que a imagem da morte nos invade e com ela começamos a debater-nos, a imaginar o que se irá passar ou possa vir a acontecer. Será dolorosa? Lenta ou rápida? Seja o que for, melhor ser rápida, sem torturas.

O coração bate a um ritmo violento, qual bomba de água em máximo esforço. E o sangue parece correr ao dobro da velocidade normal. Por instantes, Fernando perde transitoriamente o controlo das emoções. Sente tremuras e uma onda de fraqueza subir-lhe pelas pernas, voando e explodindo no peito ao ponto de se tornar difícil respirar.

CORRER PELA VIDA

Em Agosto as noites em Nova Lisboa são frias. Três dos sequestradores preferiram o conforto da cabina do Land Rover e só um deles trepou na carroçaria para vigiar os prisioneiros. E foi essa a janela de oportunidade aproveitada pelo recém-desmobilizado da “tropa” portuguesa.

Pela primeira vez, Fernando apercebe-se do justo valor do treino militar recebido e agradece-o, interiormente. É agora apenas uma questão de tentar pôr em prática o aprendido. Entre o risco de vida, a tentar fugir, e a morte quase certa, se nada fizer, aproveita uma ligeira descontracção, de alívio, dos sequestradores, quando o motor do Land Rover pega à quarta tentativa.

– Observei o meu guarda; a mão esquerda segura uma G3 – a arma do Exército português, que eu tão bem conhecia – atravessada nos joelhos enquanto a direita agarra o tubo da carroçaria do jipe. Assim que arrancámos, olhei para o Beto, toquei-lhe com o cotovelo, para lhe ganhar a atenção. Dei um pontapé no peito do guarda e, com o impulso, saltei para fora do carro.

Como a rua era a descer, naquele sentido, e o jipe já adquirira alguma velocidade, o impacto no alcatrão foi duro. Fernando caiu de lado no alcatrão, rolou uma série de vezes até conseguir levantar-se e, fazendo uso de todas as suas reservas de energia, correu pela vida enquanto soavam na escuridão disparos, silvos e impactos próximos de balas.

– A certa altura descalcei os sapatos, deixei-os para trás, porque, no silêncio da noite, pareciam fazer um barulho infernal, e despi o blusão Wrangler, de cor creme, que me tornava um alvo fácil na escuridão, e corri, corri… como se a minha vida disso dependesse. E dependia mesmo.

Na fuga desenfreada trepou muros e vedações até chegar a uma casa onde viu luz e pediu abrigo. Mas, através da porta fechada, além da recusa uma voz ordenou-lhe que saísse, de imediato, do quintal. Sem alternativa, voltou a correr, primeiro em terreno aberto e, depois, através da mata de eucaliptos que o separava do apartamento onde a família os aguardava, em choque. Alimentado pelo troar de disparos que soavam na noite sem sinal de ambos. Derreado, bateu finalmente à porta.

Secreto Pieter Botha (ao meio), então ministro da Defesa do governo do “apartheid” de Pretória, junto ao hospital da Cela, em Angola, em outubro de 1975, quando o executivo sul-africano assegurava ao seu próprio Parlamento não estar envolvido em operações militares no interior angolano

– Tinha chegado a um tal grau de exaustão que levei uns minutos a recuperar o fôlego. Recordo a Luísa, minha sogra, a perguntar pelo Beto. – “Não sei… ficou no jipe”, – respondi-lhe, após sumariar o sucedido. Ela deu então um passo atrás, gritou em agonia e desmaiou, amparada pelo Rui, como se tivesse sido atingida por um raio. Até que, ao recuperar os sentidos, desatou num pranto.

De repente, tornara-se sufocante a noção, cortante, de impotência. Por um lado não era aconselhável sair para a rua àquela hora, em busca de ajuda ou do Beto. Por outro, ninguém sabia o que fazer em alternativa. Todos paralisados com medo, sem reacção, em silêncio, não fosse quem procurava o Fernando andar ainda nas proximidades.

Uma boa meia hora passou ou provavelmente mais – nessas alturas o tempo ou passa vertiginosamente, sem darmos por ele, ou desesperadamente devagar para nosso gosto – quando subitamente, a quebrar o silêncio, alguém bate à porta.

– “São eles, seguiram-me e estão lá fora!” – pensa Fernando. – Mas não. Não eram “eles”. Uma voz familiar soou baixo, do lado de fora; – Sou eu! – disse. Abriram a porta, cautelosos, e, para alívio geral, ali estava o Beto. Que descreveu ter também saltado do jipe em andamento, logo a seguir ao cunhado. E escutado balas zunir à sua volta antes de conseguir, finalmente, despistar os perseguidores.

EMBOSCADOS NA PRÓPRIA CIDADE

Com o apartamento transformado em abrigo familiar alargado, Fernando pediu o carro emprestado ao sogro e foi com a mulher à cidade alta, tentar comprar pão na Nandinha, pastelaria com fabrico próprio. Mas ao entrarem na Avenida Norton de Matos, vindos pela Rua da Granja, tiveram o caminho cortado por uma troca de tiros de armas automáticas, de um lado para o outro da via.

– Fizemos inversão de marcha e voltámos para casa! – relata Otília – Só que ao estacionar apercebemo-nos de três indivíduos fardados a sair do prédio. Estranhámos porque não morava lá nenhum militar. Nem nunca os víramos antes. O instinto dizia-nos para voltarmos a sair, mas como os meus pais, os meus irmão e a nossa filha estavam no apartamento, esperámos que o carro dos tipos virasse a esquina e desaparecesse e só depois avançámos.

Os visitantes não tinham molestado ninguém, mas o pai de Otília, mal abriu a porta, disse-lhes para fugirem, porque os militantes andavam à procura do genro. E eles assim fizeram. Primeiro ainda procuraram abrigo na casa em São Pedro da Maria, irmã do Fernando, mas assim que se soube do sucedido toda a família passou a temer represálias.

Naquele tempo era obrigatório, no espaço português, os veículos com matrículas terem identificado no tablier (e os veículos de duas rodas, no quadro) o nome e o endereço do respectivo proprietário. Norma facilitadora da vida dos sequestradores que, na posse do carro, ficaram a saber assim quem era e onde residia o Fernando. Não havia volta a dar. Aquela fora a última vez que o casal viu o seu primeiro apartamento de casados.

Álbum O casal Otília e Fernando Ferrão no dia do casamento em Nova Lisboa (1973); imagem da caravana durante uma paragem em Pereira D’Eça; militares sul-africanos da “Operação Savana” (invasão de Angola) junto ao hospital da Cela

– Ainda fomos à Cruz Vermelha pedir abrigo, mas já não tinham meios de no-lo darem. Estavam a rebentar pelas costuras com refugiados de outras cidades e do interior! – sublinha Otília – Nem sequer um copo de leite para a nossa filha de um ano! Foi aí que nos ocorreu procurar protecção, ou qualquer forma de apoio possível, no quartel onde o meu marido servira e ainda conhecia muita gente.

Para chegarem ao Regimento de Infantaria 21 (RI21), situado para lá do Bairro de Santo António, tinham de passar frente ao recinto da Feira Internacional (FINOL), onde já se acotovelavam na altura, em condições sub-humanas, dezenas de milhares de deslocados, vindos de outras localidades a norte de Nova Lisboa e do interior de Angola.

– Nesse percurso voltámos a testemunhar tiroteios, de ambos os lados da via. Mas estávamos tão desesperados que, desta vez, arriscámos seguir em frente. Nem sei como passámos sem ser atingidos… foi um milagre! – prossegue. – Quando chegámos ao quartel, o comandante – um homem de quem não recordo o nome, mas apenas que tinha um enorme coração – disse-nos que podíamos ficar próximo da entrada. Explicou-nos que nos dariam todo o apoio ao seu alcance, mas, por sermos civis, não podia abrigar-nos lá dentro.

Estacionaram então o carro, um Morris 1300 GT, a umas dezenas de metros da porta de armas do RI21. Área onde foram dos primeiros fugitivos a encontrar abrigo, mas que passado um par de dias, com o rápido degradar da segurança na cidade, já estava à cunha com todo o tipo de veículos.

Só o “núcleo Ferrão” ali acampado era composto por seis adultos e a bebé (Fernando, Otília, os pais e irmãos desta e a menina). Demasiada gente para se abrigarem na viatura. Valeu-lhes a oferta de uma tenda de dois quartos feita pelo Zé, irmão do Fernando. Num deles ficaram a dormir o casal e a bebé e, no outro, os manos de Otília; Rui e Beto.

Uma pessoa é tomada por uma sensação avassaladora quando compreende que, possivelmente, não estará viva por muito mais tempo. O cérebro inunda-se de pensamentos estranhos e imaginários, mas também de outros bem vivos e reais

Fernando Ferrão, integrante da megacaravana de fuga de Nova Lisboa

Durante as duas semanas em que ali permaneceram, o comandante manteve a sua promessa; todos os dias faziam-lhes chegar alimentos e água potável e era-lhes permitida entrada no quartel para satisfação de necessidades fisiológicas e higiénicas. Incluindo tomarem banho.

– Como receávamos que os tipos da FNLA continuassem à procura do Fernando e eu era das poucas loiras na cidade, pedi a um dos militares para ver se me arranjava tinta para pintar o cabelo mais escuro! – acrescentou Otília. – No dia seguinte, trouxe-me uma tinta preta. A minha imagem mudou totalmente e, graças a isso, senti-me mais segura por já não ser tão diferenciável.

Enquanto isso, ainda sem o saberem, um grupo de chefes de família, que incluía os Serra, os Agrias e os Borgas, ultimava a organização da que se tornaria uma mega caravana automóvel de fuga para o Sudoeste Africano, através das chamadas “Terras do Fim do Mundo”, no vector interno sul de Angola. Mas as notícias que lhes chegavam de Luanda e de Lisboa estavam longe de os serenar.

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Imagine-se a estupefação de quem testemunhou a chegada ao quartel do Regimento de Infantaria (RI) 21, em Nova Lisboa (atual Huambo), de “dezenas de militares portugueses em trajes menores”, como conta o jornalista e escritor António Mateus na sua nova obra, Angola – Vidas Quebradas, já nas livrarias. “Tinham sido desarmados e obrigados a despir e entregar as fardas e respetivo calçado” a uma força da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), de Jonas Savimbi, que os emboscara, ao final da tarde de 17 de agosto de 1975, quando escoltavam, desde o Luso, uma coluna de refugiados, com 200 veículos civis, destinada a evacuação de Angola através da ponte aérea para Portugal, acrescenta o autor.

Como António Mateus dá a conhecer no seu livro, o comandante da unidade em causa, uma companhia de artilharia composta por 100 efetivos, escreverá no relatório oficial sobre o incidente o seguinte: “Assaltaram o Land Rover de transmissões que seguia à frente, junto aos carros ligeiros, não tendo estes possibilidade de alertar o resto da coluna. Aí, dado o elevado número de militares da UNITA, que surgiram de todos os lados, não foi possível resistir. Por outro lado, dada a dispersão de militares em pequenos grupos, espalhados ao longo da coluna, foi impossível reagir. Além disso, dado o elevado número de crianças e mulheres que seguiam na coluna, qualquer resistência nossa provocaria um morticínio total, dado que estávamos emboscados dos dois lados da via por grande número de militares da UNITA.” Lista depois, ao pormenor, o que foi roubado àqueles militares portugueses, além dos camuflados e das botas – 160 G3, mais de 60 mil cartuchos de munições, 800 granadas, 35 dilagramas, dez metralhadoras FBP 9 mm e outras tantas pistolas Walther 9 mm. 

Média António Mateus no terreno, e notícias sobre a chegada por terra à África do Sul de refugiados de Angola

O Acordo do Alvor, de janeiro de 1975, tratado de paz arquitetado pela ingénua “boa-fé” do Movimento das Forças Armadas e assinado por Agostinho Neto, pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), por Holden Roberto, pela FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), e por Jonas Savimbi, pela UNITA, depressa se estilhaçou. “Um mês após assinarem o compromisso de transformar os respetivos exércitos privados e milícias em forças armadas unificadas e com um comando aceite (…), já estavam envolvidos em combates pelo controlo do país”, recorda António Mateus.

Os confrontos, naquela altura sobretudo entre forças do MPLA e da FNLA, desciam de norte para sul do território, com a população civil obrigada a fugir da violência, da destruição e das pilhagens. Nova Lisboa vivia, por esses dias, sob uma calma de alta tensão, e centenas de famílias de deslocados já se tinham refugiado junto do RI 21. Assistiram, claro, à chegada em cuecas dos soldados da companhia de artilharia. “Bastou-lhes ver os militares portugueses passar à sua frente e entrar no quartel naquele estado humilhante para perceberem que mesmo ali onde estavam a segurança relativa tinha os dias contados”, escreve António Mateus.

A ESCOLTA DE CHIPENDA

Ainda assim, havia quem se debatesse com o dilema de ficar ou fugir. Atente-se nos Agria, uma das dez famílias em cujos testemunhos António Mateus assenta, no seu livro, o relato da arrepiante, e até agora desconhecida, megacaravana automóvel que, em agosto de 1975, se pôs em fuga de Nova Lisboa, em direção às chamadas Terras do Fim do Mundo.

Ernesto Agria “trabalhara toda a vida nos Caminhos de Ferro de Benguela, empresa onde chegou ao posto de chefe de estação, reformando-se depois em 1973”, conta António Mateus. Não o dizia, mas “via com muitas reservas” a saída de Nova Lisboa, que podia implicar “perder o fruto de uma vida de trabalho, incluindo a reforma dos caminhos-de-ferro”. Acima de tudo, porém, não sabia como convencer a mulher, Zita, “a alma da família, a sair não só de Angola, mas, ainda mais penoso, da cidade onde dera à luz as duas filhas”, Célia, à época com 17 anos, e Yolanda, à beira de completar os 15. “Célia e Yolanda eram as filhas-milagre de Zita, geradas quando já acreditava ser infértil e depois de perfilhar Albertina, nascida do irmão Adelino e da negra Luciana, por quem ele se enamorara durante uma empreitada no interior”, descreve António Mateus. Yolanda contará ao autor de Angola – Vidas Quebradas: “(…) A minha mãe ainda achava que aquilo era passageiro e depois melhoraria. Ao ponto de ter começado a montar um anexo, provocando reparos de vizinhos que naquela altura já se interrogavam sobre o que fazer das suas vidas.”

No entanto, a sucessão de episódios aterradores esmoreceu a determinação de Zita e Ernesto de ficarem. Por exemplo, as filhas Célia e Yolanda viram da varanda da sua casa um rapaz ser levado por homens armados, que o esmurravam e pontapeavam, para uma zona de mato nas traseiras, onde o executaram a tiro. E, ao verem as raparigas na varanda, gritaram-lhes: “Nem uma palavra! Vão para dentro antes que vos aconteça o mesmo!”

O casal envolveu-se então na organização da caravana automóvel de fuga por terra de Nova Lisboa para Katwitwi, na fronteira de Angola com o Sudoeste Africano (atual Namíbia), território à época ocupado pelo regime sul-africano do apartheid, contra determinações da ONU. A opção da família foi assim explicada por Yolanda a António Mateus: “A sair para Portugal, seria para não voltar. Ficava muito longe, teríamos de levar muito poucas coisas.”

A organização implicava arranjar uma escolta armada de proteção da caravana, durante os cerca de 900 km do percurso até Katwitwi. António Mateus conta que, “depois de sucessivas negas do contingente militar português destacado na cidade”, a solução foi encontrada com Daniel Chipenda, então na FNLA, que comandava dois mil guerrilheiros, e que aceitou o “serviço” a troco de cerca de 13 mil contos, quantia elevada naquela altura, coletados entre os integrantes da caravana.

A 22 de agosto de 1975, mais de 2 500 viaturas, com cerca de oito mil pessoas, saíram de Nova Lisboa, para chegarem a Katwitwi oito dias depois, a 30, numa viagem que, em condições normais, duraria cerca de dez horas. O sofrimento pelo qual esta gente passou pode ser espelhado no dia do 15.º aniversário de Yolanda Agria, no campo de refugiados de Katwitwi, que o contou assim a António Mateus: “Foi um dia muito triste. (…) Olhávamos para a direita, estava um a chorar. Olhávamos para a esquerda, era o mesmo. Olhávamos mais para a frente e estavam pessoas sentadas no chão, com a cabeça em cima dos joelhos… Não havia lugar para festas nem nada.”

Daniel Chipenda, então na
FNLA, e que comandava dois
mil guerrilheiros, fez a escolta armada de proteção da caravana a troco de 13 mil contos, quantia elevada à época

A 11 de novembro seguinte Agostinho Neto proclamou a independência de Angola, com combates às portas de Luanda. Mas muitos dos integrantes da megacaravana “escreveram cartas ao comandante Vossie Nell”, o oficial sul-africano que organizou os campos de refugiados para eles, no fim do percurso, diz à VISÃO António Mateus. “Essas cartas agradecem a generosidade dos sul-africanos, que os acolheram, alimentaram-nos, prestaram-lhes cuidados médicos, enquanto eles estiveram ali numa situação de perda total.”

Não há notícia, porém, de que o casal formado por Adelino, mulato sonoplasta de uma rádio de Nova Lisboa, e Filomena Alves, rapariga branca, tenha alguma vez escrito a Nell. Os casais mistos eram proibidos pelo apartheid e foram rapidamente recambiados para Windhoek, a caminho da ponte aérea para Portugal.

Angola – Vidas Quebradas, de António Mateus, é editado pelo Clube do Autor, tem 320 págs. e custa €19

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O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem um fascínio pelas notas que atribui ao longo da vida. Começou na Faculdade de Direito de Lisboa e com os maquiavélicos cenários políticos da página 2 do Expresso nos anos quentes da revolução, até se tornar num comentador conhecido do grande público, primeiro na rádio TSF e depois, durante longos anos, circulando entre canais de televisão até ao Palácio de Belém.

Não perdeu o gosto pelo comentário de verve afiada, que exercita com surpreendente frequência deixando de lado a gestão parcimoniosa da palavra própria da gravitas presidencial, nem resiste amiúde a pronunciar-se sobre os méritos da ação governativa, opinando ainda antes de os resultados das medidas estarem demonstrados ou antes de as iniciativas legislativas lhe chegarem à secretária para a promulgação.

Surpreende, por isso, o sucessivo adiamento da avaliação pré-anunciada do desempenho da ministra da Saúde para depois das eleições autárquicas, a que Ana Paula Martins não é candidata.

O Plano de Emergência para a Saúde foi a grande bandeira eleitoral de Montenegro em 2024. Foi apresentado no final de maio, e de entre as suas 210 páginas cheias de ousadia e de promessas de mudança, os dois primeiros eixos estratégicos vistos ao fim de 18 meses de governação são a imagem da frustração de expectativas e de descalabro nos resultados.

Os dois primeiros eixos estratégicos intitulavam-se “Resposta a tempo e horas” e “Bebés e Mães em Segurança” e parecem hoje peças de humor negro produzidas por um crítico do Governo.

Montenegro e Ana Paula Martins eram peremptórios a anunciar o final das listas de espera das cirurgias oncológicas e determinados a visar uma “alteração radical” nas listas de esperas para cirurgias e consultas. Passado um ano, segundo números oficiais, cerca de 1500 doentes oncológicos tinham ultrapassado o prazo estabelecido para realização de cirurgia e, segundo a entidade reguladora da saúde, 80% ultrapassaram os tempos de espera previstos para a primeira consulta.

Quanto à segurança de bebés e mães, os dados são ainda mais constrangedores para Ana Paula Martins, com a roda da sorte em que se tornou o acesso às urgências de obstetrícia e de pediatria, dependentes de um acesso telefónico prévio, com uma total imprevisibilidade quanto ao calendário das “portas fechadas” e alvo de sucessivas promessas não cumpridas sobretudo na Península de Setúbal.

A meta histórica já superada em 2025 é o de nascimentos na beira da estrada, na rua ou em casa a aguardar encaminhamento para o hospital aberto, cabendo o destaque à unidade de bombeiros-parteiros da Moita que já realizou este ano 15 partos em ambulância com sucesso.

Perante este quadro, surpreende a benevolência presidencial que primeiro deu um voto de confiança ao Governo no verão de 2024 com uma célebre visita ao hospital de Santa Maria, esperou crédulo pela melhoria da situação no inverno e tem, desde julho, adiado sucessivamente a avaliação final com uma misericordiosa esperança que o próximo anúncio bata certo.

Era para ser feito o balanço por Marcelo Rebelo de Sousa no aniversário da visita ao maior hospital do País no início de agosto, foi adiado para o final do verão que já lá vai, depois para daí a duas ou três semanas que já passaram e agora a ansiedade terá de ser contida até depois das eleições autárquicas, misturando-se com os votos piedosos para 2026 que certamente irão aparecer na proposta de Orçamento do Estado.

Entretanto, a reforma do INEM vai sendo adiada, o terceiro Diretor Executivo do SNS foge à prestação de contas e ao diálogo com as entidades que tutela e os famosos quatro helicópteros de emergência médica que deveriam estar a operar, desde julho, 24 horas por dia ao fim de três meses são só 3 e só voam de dia. A capacidade de apoio da Força Aérea tão saudada por Nuno Melo apenas cumpriu pouco mais de 10% das missões e desde o início de outubro deixou de ter equipa médica própria passando a operar com pessoal do INEM.

Nos cuidados primários de saúde, o número de utentes sem médico de família tem vindo a aumentar, superando já os 1,7 milhões, e 60% das vagas abertas no último concurso para médicos de família ficaram por preencher.

Durante o verão, foi feito um promissor anúncio sobre a moralização do recurso a médicos tarefeiros no SNS para reduzir a iniquidade que gera entre equipas permanentes dos hospitais e profissionais à hora sem qualquer conhecimento do historial clínico dos doentes que assistem e para conter uma despesa que ascendeu ao valor recorde de mais de 850 milhões de euros em 2024, mas mais uma vez desde a “cacha” antecipada pelo Expresso nada mais aconteceu.

Sem ofensas aos inocentes citrinos, o prémio Laranja mais Amarga da temporada vai para a ministra dos bombeiros-parteiros Ana Paula Martins.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Nas organizações políticas e outras de caráter eletivo, a permanência dos mesmos protagonistas anos a fio na liderança é negativa, uma vez que tendem a cristalizar, por falta de iniciativa e criatividade, quando não por razões mais graves como falta de transparência, amiguismo, nepotismo e mesmo corrupção.

Não foi por acaso que a lei da limitação de mandatos surgiu nas autarquias. É suposto que a vivência democrática no poder local gere novas competências e abrir caminho a novas ideias, protagonistas e equipas, de modo a evitar os vícios do sistema.

Quando temos diante de nós a escolha entre alguém que se candidata ao mesmo cargo público que já desempenhou durante oito, dez ou quinze anos, e que deixa dúvidas em termos de transparência, ou então quem se revelou uma nulidade em termos de liderança e de gestão, e alguém que, sendo de uma nova geração, apresenta ideias, projetos e uma energia contagiante, qual deve ser a escolha inteligente? Premiar quem se agarra desesperadamente ao poder, quem já provou ser incompetente ou quem pode trazer renovação, ar fresco e sangue novo?

As campanhas autárquicas são pródigas nas guerras de comadres que não levam a nada nem resolvem os problemas das populações. Os munícipes merecem muito mais. Embora as suspeitas de abuso de poder ou corrupção não possam ser ignoradas, o que importa entender é se existe uma ideia para o município e que tipos de propostas a sustentam. Quem está no poder e volta a candidatar-se tem a tendência para atirar para o debate com milhões aqui e ali. Pois bem, isso não diz nada às pessoas. Para elas não importa se são tostões ou milhões, querem é ver os seus problemas resolvidos, a sua qualidade de vida assegurada e a afirmação da sua cidade.

Uma boa forma de lançar o voto ao lixo é desperdiçá-lo com formações políticas sem equipa, estrutura ou projeto. A outra maneira de tornar o voto inconsequente é fazer dele uma manifestação de protesto, votando em quem mais grita e faz discurso de ódio, mas que não merece um pingo de credibilidade e nem sequer de seriedade.

Depois há o fenómeno dos trânsfugas. Pessoas que saem dum partido que não lhes faz a vontade e encontram logo aconchego noutro. O Chega está pejado destes oportunistas que apenas pretendem cavalgar a onda populista, que parece estar a dar, até que surja outra oportunidade. Uma vergonha.

Mas os piores ainda são os falsos independentes. Pessoas que militaram anos a fio num partido que depois abandonam, tentando a sua sorte em candidaturas independentes que de independentes nada têm. Como se apercebem que existe alguma frustração no eleitorado com os partidos tradicionais tentam agora vestir o fato de independentes, ainda que nunca na vida o tenham sido. Chegam até a atraiçoar os princípios ideológicos que defenderam toda a vida, em impressionantes golpes de rins, de modo a ir buscar apoios de áreas políticas que sempre combateram.

O imperativo de mudança precisa de ser operacionalizado num voto de futuro, mas com segurança e não no regresso ao passado, ainda que agora esse passado se apresente travestido de outras cores. Tal circunstância faz lembrar a metáfora que Jesus um dia usou, dizendo que remendo novo em pano velho não funciona porque acaba por rasgar o pano e o resultado é ainda pior.

Mas também é de evitar um salto no escuro, embalados pela canção do protesto pelo protesto. Seria uma infantilidade política, seria loucura. A velha estória diz que os ratos, cansados de serem mal governados experimentaram a votar no gato pela primeira vez. Foi o seu fim.

Mas as Escrituras oferecem uma boa metáfora para este caso. Nas palavras de Jesus, o Cristo, é pelos frutos que se conhece a natureza da árvore. E já conhecemos qual é a “fruta” da árvore da extrema-direita em Portugal, uma vasta panóplia de crimes, desde furto de malas no aeroporto, pedofilia, condução sob efeito de álcool, prostituição de menores agravada, injúria, incitamento ao ódio, violação de regras de emigração, dívidas, fraude fiscal qualificada, violência doméstica, burla e furto a casas e igrejas. É mesmo este “gato”, para não dizer “bando de malfeitores”, que queremos a governar as nossas comunidades?

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Ao longo do penoso e atribulado processo de insolvência da Trust in News (TIN), empresa proprietária da VISÃO, que se arrastou desde o final do ano passado até à decisão de liquidação e encerramento, na semana passada, impus-me uma regra sempre que me sentava para escrever esta página: mesmo contrariando alguns impulsos, tentei evitar, neste espaço do diretor, quaisquer comentários ou considerandos sobre o evoluir da situação e as suas implicações para o futuro da revista. E fi-lo por uma razão: queria blindar a imagem da VISÃO e a sua relação construída durante décadas com milhares de leitores, dos problemas que afetavam a TIN e a sua gestão. Os problemas eram nossos e embora afetassem o nosso trabalho e o nosso modo de funcionamento, não precisavam de ser “impingidos” aos leitores nem transformados em assunto principal, ainda para mais no atual estado do mundo, em que não faltam motivos para análise e discussão. Com os leitores, a nossa responsabilidade é a de sempre: entregar-lhes uma revista que eles tenham gosto em ler e, em muitos casos, até em guardar. Uma revista que fortaleça os laços de confiança entre quem a faz e quem a lê.

O que sempre me interessou – a mim e a um grupo coeso e magnífico de jornalistas e outros trabalhadores que têm mantido a revista viva nos últimos meses – foi manter o foco e os esforços na luta mais importante para nós: salvaguardar a VISÃO, o seu jornalismo livre, independente e que queremos que seja, todos os dias, fiel à sua história de rigor, de credibilidade e de qualidade.

A luta tem sido intensa e repleta de obstáculos. Temos salários em atraso. Deixámos de ter um espaço físico para reunirmos a redação. Mas continuamos a resistir e a insistir. Fazemo-lo, encorajados em três suportes essenciais: a resposta entusiástica dos nossos leitores (a VISÃO tem estado, consistentemente, a vender mais exemplares em banca do que no ano passado, contrariando as tendências do resto do mercado); as contas que conhecemos e os estudos que fizemos indicam-nos que a VISÃO não só tem viabilidade económica como pode ser, rapidamente, um negócio sustentável e, porventura, inspirador para muitos outros no atual estado da comunicação social; e, finalmente, a convicção, que nos anima e alimenta, de que, mais do que a proteção dos nossos empregos, temos de lutar pela defesa de um projeto jornalístico já histórico e que consideramos relevante para o País, para a democracia e para a liberdade.

Foi por tudo isto que, na assembleia de credores, um grupo de 15 trabalhadores da VISÃO apresentou e viu aprovada uma proposta que permite que a revista continue a ser publicada, mesmo depois de a TIN ser encerrada – e até que os seus ativos, entre os quais a VISÃO, sejam vendidos.

Além disso, manifestámos também o nosso interesse e a nossa disponibilidade para nós próprios adquirirmos a VISÃO – uma ideia que nasceu e foi desenvolvida ao longo das últimas semanas, e que tem acolhido manifestações de apoio, que muito nos sensibilizam, orgulham e… encorajam ainda mais.

A luta vai continuar a ser intensa e é, como todas, de resultado incerto. Mas era importante que tivesse regras justas. E bom senso por parte dos credores Estado (Segurança Social e Autoridade Tributária), que detêm a maioria da dívida e possuem o poder principal de decisão. A insistência que aqueles dois organismos têm manifestado em apenas permitir a venda em conjunto de todos os títulos da TIN e de fazer depender o início do procedimento de venda de uma avaliação externa, a preços incomportáveis para a falta de liquidez financeira do que resta da empresa, é uma teimosia que pode ter consequências dramáticas e, no fim, agravar ainda mais as perdas dos credores.

Não pedimos favores nem tratamentos de exceção. Apenas desejamos manter o projeto jornalística da VISÃO – da mesma forma que um dos nossos fundadores, José Carlos de Vasconcelos, já manifestou igual intenção em relação ao Jornal de Letras, que dirige há 45 anos. Para isso, é imperioso que a SS e AT permitam propostas de compra para cada título e a agilização de todo o processo, porque já se perdeu tempo demais. O valor de um título jornalístico está intimamente ligado à redação que o produz. E o seu maior valor é a relação de confiança estabelecida entre essa mesma redação e o público leitor. É por isso que, enquanto nos deixarem, vamos continuar a fazer a VISÃO. Com o vosso apoio.

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