Diz-se que o corpo é uma máquina complexa. Não é verdade. É uma supermáquina ultracomplexa. É difícil termos noção da quantidade de microações que acontecem dentro de nós para conseguirmos respirar, caminhar, comer ou até dormir. Mas, como em todas as máquinas, o uso constante faz com que as peças comecem a ficar desgastadas. Que, volta e meia, alguns sistemas comecem a falhar. E quando isso acontece, vamos à reparação. Pode ser através da adoção de hábitos de vida mais saudáveis. Pode ser com uma ida ao médico e a prescrição de um medicamento. Pode ser com uma operação de emergência.
A questão é que existem problemas que afetam as pessoas e para os quais ainda há poucas ou nenhumas respostas. Não temos forma de reparar o que está estragado. E há dois exemplos bem conhecidos de doenças neurodegenerativas que têm sido um verdadeiro quebra-cabeças para as comunidades científica e médica: a Parkinson, que afeta a capacidade do cérebro em controlar os movimentos do corpo; e a Alzheimer, que causa uma perda gradual de funções cognitivas como a memória e o pensamento. Diogo Feleciano, um bioquímico português de 33 anos, acredita ter a resposta para combater o avanço progressivo destas doenças. E a solução que a sua startup, a Booster Therapeutics, propõe, está mesmo à frente de todos – ou melhor dizendo, está dentro de todos nós.
‘Serviços de limpeza à célula 3, por favor’
Os proteassomas são estruturas complexas proteicas que existem nas células do nosso corpo e que têm uma função muito específica e importante: destruir proteínas que estão danificadas ou já não são necessárias. Pense nos proteassomas como máquinas de reciclagem que existem no nosso corpo. Quando identificam uma proteína degradada, o proteassoma agarra nessa proteína e ‘desmonta-a’ em peças (aminoácidos), peças estas que podem ser novamente usadas pelas células em novas proteínas.
“Os proteassomas estão a fazer este trabalho a toda a hora e em todos os segundos, estão a partir proteínas em partes mais pequenas. E estão a tentar regular a quantidade de proteínas tóxicas nas células”, explica Diogo Feleciano, cofundador e diretor científico (CSO) da startup alemã Booster Therapeutics, em entrevista à Exame Informática.
Acontece que com o passar do tempo, os proteassomas não conseguem acompanhar o ritmo de proteínas maliciosas que se acumulam no corpo e, com a idade, a própria ‘equipa de reciclagem’ também perde parte das suas capacidades e eficácia. O que significa que as células do corpo começam a acumular muito ‘lixo’, o que por sua vez abre portas ao aparecimento de doenças. E todo este desequilíbrio celular que se vai acumulando no corpo também contribui para o nosso envelhecimento biológico.
Mais. A perda de funções dos proteassomas em locais específicos, como no cérebro, está correlacionado com o aparecimento de algumas doenças. “Existe uma acumulação anormal de proteínas que são tóxicas, não é uma, são muitas, e levam a que os neurónios comecem a falhar e a morrer. E nas doenças de Parkinson e Alzheimer, há áreas do cérebro que decrescem, porque os neurónios estão a morrer e isso está associado à acumulação de proteínas tóxicas”, adianta explicar Diogo Feleciano. “Em pacientes que tiveram Parkinson, nos cérebros destes pacientes, depois de morrerem, os proteassomas na zona onde está a doença, estão a funcionar a baixa capacidade”.
Por esta altura já deve ter percebido a lógica: se houver maneira de garantir que os proteassomas mantêm as suas funções de limpeza de forma mais eficaz e por mais tempo, isto significa que conseguirão ‘limpar’ melhor as proteínas tóxicas que se acumulam no corpo, o que por sua vez poderá impedir o aparecimento ou a evolução de doenças, sobretudo as relacionadas com o cérebro. Parece simples, certo? Mas se é tão simples, como é que ninguém se lembrou disto antes? É aqui que entra a Booster Therapeutics.
A chave-mestra
Nas últimas décadas já foram gastos milhares de milhões de dólares, aplicados em alguns dos melhores laboratórios e mais consagrados investigadores do mundo, na tentativa de encontrar uma solução para doenças como a Alzheimer ou a Parkinson. Mas não tem funcionado. Não pelo menos de uma forma significativamente eficaz. Isto porque, de forma simplificada, os métodos que têm sido criados, inclusive na área dos proteassomas, têm-se focado na remoção de proteínas tóxicas específicas e não numa remoção mais abrangente desse material malicioso para o corpo. É como se depois de um casamento, um funcionário de limpeza apenas arrumasse os copos, deixando os pratos, os talheres e os guardanapos sujos na mesa. A abordagem da Booster Therapeutics é diferente e pretende arrumar a mesa toda. “Estas doenças são muito complexas, existem muitas proteínas a acumular ao mesmo tempo”, avança o CSO.
Para isso, a startup fundada pelo português Diogo Feleciano e pela norte-americana Darci Trader, está focada em reativar o proteassoma 20s, que é a unidade central do complexo proteassoma. “O 20s consegue eliminar naturalmente as proteínas tóxicas e faz a limpeza no corpo todo”, analisa o bioquímico natural da aldeia de Gaio, em Alcobaça.
O segredo está justamente na reativação deste núcleo. “Queremos usar uma nova molécula, uma nova terapia, para se ligar aos proteassomas nas células e reativá-los para a sua capacidade normal. Se conseguirmos fazer isso, podem novamente começar a partir em pedaços as proteínas que são tóxicas e reduzir a toxicidade das proteínas”, diz-nos.
Mas dito é mais simples do que feito. Isto porque o proteassoma 20s é, na realidade, ele próprio a combinação de 28 estruturas diferentes. O que significa que tem uma estrutura física altamente complexa. E para ser possível reativar a função deste elemento, é preciso criar uma chave (um químico, na realidade), que se agarre ao núcleo do proteassoma, restaurando novamente as suas capacidades. “A nossa molécula é desenhada para se agarrar a ele e aumentar a atividade dessa máquina de degradação. (…) Encontrar uma chave que se ligue ao nosso proteassoma e o ative, que faça o restauro da função, é bastante complicado. A ciência em si é bastante complexa, mas desenvolver sistemas para descobrir essas chaves tem muitas barreiras até se conseguir”, comenta o investigador português.
Para conseguir criar a chave-mestra para a máquina de limpeza das proteínas do corpo, a Booster Therapeutics criou uma plataforma, chamada DGRADX, que funciona como um conjunto de ferramentas que permite criar muitas combinações de chaves. E a equipa da startup, que conta com dez pessoas, além de vários laboratórios subcontratados para a investigação, analisou centenas de milhares de moléculas para ver se alguma encaixava na estrutura do proteassoma 20s. “Encontramos várias e estamos a otimizá-las”, revela Diogo Feleciano.

“E isto põe-nos numa posição bastante diferenciada. Criamos esta plataforma que ninguém tem. Esta plataforma tem algo importante. O proteassoma é uma estrutura muito grande, encontrar uma chave que se ligue e o ative, é complexo. E também desenvolvemos uma tecnologia para ver a estrutura do proteassoma. Conseguimos tirar a estrutura de células humanas, purificá-las, e conseguimos ver a estrutura a nível atómico, ver os aminoácidos, conseguimos ver as 28 estruturas que compõem este complexo”, adianta o porta-voz da empresa.
“Conseguimos ter várias moléculas que conseguem ativar este mecanismos, e estamos mais próximos de um potencial medicamento. Temos moléculas com propriedade favoráveis a serem transformadas num medicamento ou numa terapia”, acrescenta.
Mas há outra questão que falta responder – por que razão a Booster Therapeutics está tão confiante na sua abordagem para problemas que além de verdadeiros quebra-cabeças que são fatais para os pacientes, já viram tantos outros tentar e falhar?
Muitos milhões e um gigante por trás
Diogo Feleciano fez o ensino escolar, básico e secundário na zona de Alcobaça, tendo depois ido estudar Bioquímica para a Universidade de Coimbra. Aí começou a entrar, aos poucos, no mundo da investigação. “Fui para Bioquímica com o objetivo de tentar fazer investigação, para descobrir algo novo que ainda ninguém tinha visto”.
Candidatou-se depois a uma bolsa Leonardo da Vinci, que permitia fazer investigação no estrangeiro, tendo entrado no Imperial College de Londres, no Reino Unido. Acabou por receber uma proposta de trabalho, tendo ficado por terras de sua majestade durante mais de um ano. E foi aí que percebeu que queria aprofundar ainda mais os seus conhecimentos na área, o que o fez mudar-se para Berlim, na Alemanha, para um doutoramento em Bioquímica, mas focado em envelhecimento e neurociências. “Comecei a estudar animais que também têm doenças neurodegenerativas e um dos caminhos que investiguei foi o proteassoma, começou aí a concretização que havia um problema nesse sistema”, recorda.
Depois começou a crescer em si a ideia de tornar a investigação num projeto que pudesse converter a teoria em prática. Foi nessa altura que o português integrou a empresa de capital de risco Apollo Health Ventures como empreendedor residente. “Vinha com ideias, eles vinham com potencial suporte de investimento”. Enquanto tudo isto acontecia, conheceu uma professora norte-americana, Darci Trader, que também era especialista na área dos proteassomas. Faltava começar a provar que havia mérito naquela ideia de criar uma chave de ativação para esta máquina de limpeza de células.
A Booster Therapeutics começou em 2020, mas só agora é que acredita ter o trabalho suficiente para se mostrar ao mundo (e antecipar movimentos da concorrência). A startup anunciou uma ronda de investimento de 15 milhões de dólares, cerca de 13,8 milhões de euros ao câmbio atual, e além da Apollo Ventures, há outro peso-pesado entre os investidores. A Novo Holdings, braço de investimento da Novo Nordisk, o gigante dinamarquês que criou o medicamento para a diabetes Ozempic (e que também é usado na luta contra a obesidade), acredita que o português e a sua equipa estão, de facto, num caminho promissor para combater a Alzheimer e a Parkinson.
As moléculas descobertas pela Booster Therapeutics já lhes permitiram “reativar os proteassomas que antes estavam bloqueados, terem uma função normal outra vez ou até um pouco melhor”. “E fazendo isso conseguimos reduzir o nível de múltiplas proteínas que são tóxicas – não uma, mas várias, reduzimos várias proteínas. Conseguimos chegar a um nível de proteção celular, fazer um reequilíbrio, a célula fica num estado mais saudável. (…). Temos uma compilação de resultados que mostram que estamos no caminho certo”.
Se arranjar um tratamento que impeça a evolução de doenças neurodegenerativas não fosse, por si só, já muito ambicioso, o método que a Booster Therapeutics está a desenvolver pode ser aplicado a outras doenças – cardíacas, hepáticas (fígado) e de reguladores do corpo, como a diabetes. “Aquilo que temos autorização para dizer neste momento é que temos resultados pré-clínicos em vários modelos de doença. É o máximo que posso dizer agora”.
E, como explicámos recentemente, encontrar soluções para evitar doenças contribui, de forma colateral, para melhorar o tempo e a qualidade de vida das pessoas. Viver mais e melhor, no fundo. Pelo que o trabalho da Booster Therapeutics poderá ter como potencial efeito secundário aumentar a nossa longevidade. Nada mau, certo?
“Já foi tentado aumentar a atividade do proteassoma, em células e organismos, e quando isso é feito, os animais ficam mais resistentes a doenças e vivem mais tempo. E existem alguns resultados a ligar humanos que são centenários a proteassomas que têm atividade mais elevada”, explica Diogo Feleciano sobre o potencial que esta nova terapia pode ter do ponto de vista da longevidade.
A startup vai agora continuar a testar as suas moléculas em modelos de doenças animais, também para perceber “a dose necessária e a frequência da dose para ter o efeito desejado”. Isto porque a ideia é que a reativação dos proteassomas possa ser feita com um simples medicamento. E, se tudo correr como planeado, começar a primeira fase de testes clínicos em humanos daqui a três anos.
“Estamos a descobrir coisas que ninguém viu antes. E é algo que nos deixa motivados”.