Na semana em que se inaugura mais uma legislatura, com a posse dos novos deputados, convém que nos caia a ficha: o espectro político partidário mudou completamente e a democracia, tal como a conhecemos, pode vir a sofrer, no futuro, alterações drásticas. Sem qualquer processo de intenção sobre o Chega, podemos, no entanto, basear-nos nas práticas de partidos da sua família política, como o Fidesz de Viktor Orbán, na Hungria, ou no discurso de dirigentes do partido – nem sempre o do seu líder e fundador, André Ventura… – que decalcam Donald Trump. Primeiro, há que definir dois tipos de democracia: a democracia liberal, que já conhecíamos, que garante direitos, liberdades e garantias às minorias (políticas, étnicas, religiosas ou sexuais) e às oposições. Recentemente, porém, surgiu um novo conceito, que é o das “democracias iliberais”, que define uma espécie de ditadura do vencedor, com a subjugação, ostracização, perseguição ou anulação de todos os que não seguem o líder ou a maioria circunstancial – que, por estas razões, se perpetua no poder – e que se aplica, no próprio partido, aos contestatários da sua liderança (como temos visto).
Diz-se – e dizem os partidos da direita radical e populista – que são forças democráticas, que observam as regras de democracia e que querem legitimar-se em eleições. O problema é o que fazem quando conquistam o poder. E a prioridade, pelos exemplos observados na atualidade e ao longo da História – a começar pelo movimento do “socialista” Benito Mussolini, nos anos 20 do século passado… –, é a da mudança das regras.
Não se faz aqui, repetimos, qualquer processo de intenção sobre o Chega ou os seus planos para o exercício do poder. Na verdade, ainda não abrimos o melão. Mas poderemos elencar o que faria qualquer partido da sua família política. Em primeiro lugar, se tivesse força ou parceiros, tentaria alterar a Constituição. Mas, como isso é difícil, há um monte de normas que poderiam, a jusante, ser manipuladas ou modificadas. Para isso, um tal partido e um tal governo seguiriam estes “dez mandamentos”:
1. A asfixia da imprensa livre e o banimento daquilo a que chamam o “jornalixo”. Isto feito por todos os meios fiscais e legais, apoios, contratos, publicidade institucional, pressão e chantagem sobre clientes privados que compram publicidade nos meios, etc.
2. A asfixia, nomeadamente, financeira, das universidades, com purgas de professores não alinhados com a situação.
3. A asfixia e o controlo dos órgãos de informação do Estado, e a chantagem com as televisões privadas – no plano de concessão das licenças, publicidade institucional, pressão e ameaça de punição sobre os anunciantes (com perdas de licenças, raides do fisco ou o fim de contratos com o Estado), etc.
4. Instrumentalização (em vez da privatização) da RTP, como grande veículo de propaganda do governo, com o ajustamento nas direções, na redação, nos analistas e nos comentadores.
5. Desrespeito pelas minorias (sobretudo, as minorias políticas), através da intimidação, no Parlamento, dos outros deputados, do bullying sobre estes parlamentares e sobre os cidadãos não alinhados, da perseguição da oposição, mediante bots e hordas nas redes sociais, do recurso sistemático à desinformação e da vingança pessoal sobre os “inimigos”.
6. Pressões sobre a Justiça, nomeações nas direções das polícias e nos tribunais, a começar pelo Constitucional, e controlo dos órgãos reguladores.
7. Encerramento de outros órgãos reguladores. Asfixia financeira de fundações e ONG independentes.
8. Subversão de concursos públicos do Estado para favorecer empresas amigas (e financiadoras).
9. Consciência de que o monopólio da violência garante o poder. Adulação das forças de segurança, aumento da arbitrariedade da polícia, encorajamento de milícias digitais e mesmo populares (informais), com fechar de olhos a ajustes de contas políticos, por via da ameaça, da violência física ou da eliminação de adversários, sobretudo, a nível local.
10. Tentativas de fraude eleitoral, incluindo intimidação dos delegados de partidos concorrentes em mesas de voto.
Com mais ou menos alterações, são estas as estratégias de um partido hegemónico e iliberal, dominado por um homem forte. De Mussolini a Orbán, de Putin a Erdogan, de Trump a Maduro. E a grande dúvida é se André Ventura entra neste registo ou se a institucionalização de um partido com 60 deputados – e uma progressiva diversidade de eleitores e apoiantes – acaba por diluir a natureza pura e dura do populismo de Estado.
Golpe de vista
A pedra no sapato
A escolha de Rui Rio para mandatário da candidatura de Gouveia e Melo é um lance arriscado, mas que pretende demonstrar a penetração do almirante num partido que devia apoiar, em peso, Luís Marques Mendes. Entretanto, o candidato independente continua a afastar-se do Chega, o que cria uma dificuldade a André Ventura: no pé em que as coisas estão, ou Ventura vai a jogo ou dá parte fraca. E esta é a principal pedra no sapato de um líder triunfante que só esperava boas notícias, este ano.
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