Sobre a comunicação ao País de Luís Montenegro, já quase tudo foi dito, no que diz respeito ao conteúdo e à forma. O primeiro-ministro falou à hora dos telejornais para recordar um facto evidente e, de imediato, contribuir para alimentar a perceção contrária. “Portugal é um país seguro, Portugal é um dos países mais seguros do mundo, mas é preciso não viver à sombra da bananeira de uma performance passada”, afirmou Luís Montenegro, a partir de São Bento.
Deixo de lado as questões da política de segurança, centro-me na escolha das palavras (um exercício que pode ser considerado trivial, concedo). E arrisco dizer que terá sido a primeira vez que um chefe de governo – não propriamente num ato solene, mas numa comunicação importante, porque inédita, desde logo – terá usado a expressão “à sombra da bananeira”. São só palavras – e palavras, como dizia o outro, leva-as o vento? São apenas palavras e, sobretudo, no tempo da escrita automática, do ChatGPT e da disseminação viral, as palavras não importam assim tanto?
Tanto importam que, em dezembro, ainda é costume eleger-se a palavra do ano. Não sei se, no atual ambiente mediático, acelerado pelas lógicas algorítmicas, a velha tradição jornalística de fazer balanços continua a suscitar grande interesse. Admito que sim, pelo menos junto dos leitores e das leitoras da VISÃO, para os quais ainda é capaz de fazer sentido abrandar o ritmo para ler e, em dezembro, refletir sobre a passagem inexorável do tempo.
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A Oxford University Press acaba de anunciar que, em 2024, a sua equipa de linguistas escolheu brain rot como a palavra do ano. Em português, a expressão quer dizer qualquer coisa como “podridão cerebral” e, segundo os especialistas da editora, a sua utilização aumentou 230% nos últimos meses, em particular no TikTok, entre os utilizadores da Geração Z e da Geração Alfa. Porém, o primeiro registo de brain rot foi encontrado, em 1854, no livro Walden, de Henry David Thoreau, a propósito da importância de levarmos uma vida simples, rodeados de natureza. Pergunta o escritor, crítico do rumo que então levava a industrialização americana: “Enquanto a Inglaterra se esforça por curar o apodrecimento das batatas, ninguém se esforçará por curar o apodrecimento do cérebro – que prevalece de forma muito mais generalizada e fácil?”
Os linguistas da Oxford University Press consideram que, na era digital, o termo brain rot ganha um novo significado. Aplicam-no aos impactos negativos do consumo excessivo de conteúdos online e definem-no como “a suposta deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa”, resultado sobretudo do contacto com conteúdos “pouco desafiantes” e de “baixa qualidade”. No século XIX, Thoreau, por seu lado, criticava a tendência para desvalorizar ideias complexas e via nisto um sinal de um certo declínio cultural.
Em 2023, a palavra escolhida pela Oxford University Press também estava associada às redes sociais: rizz, uma abreviatura de charisma (em português, “carisma”). A esse propósito, Casper Grathwohl, presidente da Oxford Languages, entende que, a partir desta eleição, é possível “ver a crescente preocupação da sociedade com a forma como as nossas vidas virtuais estão a evoluir, a forma como a cultura da internet está a permear muito daquilo que somos e do que falamos”.
Entre nós, a Porto Editora também tem levado a cabo uma iniciativa semelhante. O processo de escolha é diferente: baseia-se nos meios de comunicação e nas redes sociais, mas também nas pesquisas dos dicionários online da Porto Editora. No caso português, as palavras eleitas relacionam-se menos com tendências e estão mais ligadas à atualidade. Ora veja-se a lista das vencedoras: esmiuçar (2009), vuvuzela (2010), austeridade (2011), entroikado (2012), bombeiro (2013), corrupção (2014), refugiado (2015), geringonça (2016), incêndios (2017), enfermeiro (2018), violência doméstica (2019), saudade (2020), vacina (2021), guerra (2022) e professor (2023). Para 2024, até ao fim do ano, estão a votos os seguintes termos: auricular, conflitos, fogos, imigração, inclusão, INEM, jovem, liberdade, polícia e transportes.
Também a The Economist já escolheu a palavra do ano, na sequência da vitória de Donald Trump: kakistocracy, ou seja, “o governo dos piores”. Como escreve o jornalista inglês, a expressão não era usada na Antiguidade, mas é um antónimo moderno de “aristocracia”, da ideia do “governo dos melhores”. Acrescenta ainda que kakistocracy tem a sonoridade do vidro quando se parte – o som das palavras vulgares e, muito provavelmente, o cheiro insuportável das batatas quando estão podres.
Breviário
Há quem queira ser europeu
Tem sido comovente ver as imagens das manifestações nas ruas de Tbilisi e de outras cidades da Geórgia, antiga república soviética que pretende seguir os passos da Moldova e da Ucrânia na aproximação à União Europeia (UE). Um verdadeiro exemplo, os milhares de georgianos que se opõem à decisão governamental de suspender as negociações de adesão e, contra as cargas policiais, orgulhosamente, erguem bandeiras da UE. E uma lição, sobretudo, para os cidadãos europeus que, no momento do voto, se têm refugiado nas respostas dos partidos nacionalistas.
Não sou daqueles que encontra nos portugueses qualquer género de excecionalismo. Claro que somos como todos os outros povos moldados pela nossa história, localização geográfica, riquezas ou pobrezas do nosso território e mais umas dezenas de et cetera. No entanto, não encontro, por exemplo, no meu povo características inatas ou históricas que o levem a apreciar mais a autoridade ou um salvador do que qualquer outro. Não há povo que em determinadas circunstâncias não tenha sentido o apelo por figuras de autoridade ou que tenha visto num qualquer indivíduo o prometido. O Sérgio Godinho tem razão: só neste país é que se diz só neste país.
No mesmo sentido, as circunstâncias não acontecem no vazio. Há sempre um conjunto de fatores que as propiciam. No entanto, há sempre um fator mais decisivo do que os outros. Tomemos o caso do almirante Gouveia e Melo.
Antes de ser designado responsável pelo plano de vacinação do Covid-19, ninguém sabia quem era o homem. Pergunte-se a qualquer cidadão quem é o chefe do Estado-Maior de qualquer ramo das Forças Armadas e a resposta será na sua esmagadoríssima maioria um “não faço ideia”. É, aliás, saudável que assim seja. Aos responsáveis pela defesa do País exige-se recato e discrição, são servidores públicos com tarefas delicadas, que têm de estar absolutamente afastados de qualquer tipo de jogo, seja político, mediático ou qualquer outro.
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Com a campanha de vacinação tornou-se conhecido. Claro que conduziu bem o processo, mas convém lembrar que, num país onde a população acredita nas vacinas e o esquema regular da sua aplicação é dos melhores da Europa, era previsível que corresse bem.
A partir daí nunca mais saiu dos escaparates. O almirante não perdeu uma única oportunidade para se tornar popular e teve a ajuda de muita gente (a quantidade de entrevistas foi inacreditável), mas ficou claro que a dado momento se montou uma boa operação de promoção.
Desde o fim da pandemia, não houve semana sem notícias sobre os mais variados feitos de Gouveia e Melo (alguém se lembra de um chefe de Estado de Armada ser elogiado por apreensões de droga?), entrevistas, análises das suas características pessoais e um nunca acabar de encómios. Digamos que aquela conversa de que tinha uma missão (a vacinação) e que depois regressaria ao quartel não resistiu ao tempo.
Resumindo, a construção da imagem do almirante nada teve de fortuito, e tanto aqui como na Cochinchina, se se vender bem a imagem de alguém como eficiente, austero, probo e com capacidade de liderar, temos candidato a qualquer cargo político. E, claro, a campanha foi avançando sem que durante muito tempo ninguém questionasse um militar usar o cargo para se autopromover, sem debater o tal papel discreto que um membro das Forças Armadas tem de ter ou a evidente sobrevalorização do comum desempenho de um cargo militar.
Há, no entanto, o tal fator decisivo para a popularidade do almirante: não ser político. E o facto de isto ser o que faz a diferença não pode ser assacado nem ao almirante – apesar de se aproveitar dela. Também não há característica nenhuma tipicamente portuguesa contra os políticos, foi sim algo que teve o contributo de muita gente e que se foi edificando ao longo dos anos.
Há muitos responsáveis por a mais nobre atividade que há numa comunidade ter caído em desgraça. Sim, não há nada mais importante numa comunidade do que as pessoas que são responsáveis pelo bem comum.
Os primeiros a contribuir para o desprestígio da classe foram os próprios políticos.
Chegaria lembrar que o político que mais eleições venceu no Portugal democrático continua a renegar essa qualidade. A afirmação constante de Cavaco Silva deste contrassenso é uma excelente contribuição para todos os populismos. Mas há mais.
A forma como os próprios desmereceram a carreira, promovendo salários baixos para cargos fundamentais de interesse público, levou ao afastamento de muita gente de qualidade, mas é sobretudo atentatória à responsabilidade da tarefa. Depois, através duma insana quantidade de incompatibilidades, fez-se com que praticamente só seja possível à gente das Jotas e a professores aceder à carreira política, nomeadamente ser deputado. Pior, ir para ministro de um setor que se conhece representa sobretudo não se poder regressar durante muito tempo à carreira que se tinha.
Tudo isto foi feito pelos próprios políticos, mas sob o aplauso dos cidadãos. Sim, nós também temos feito a nossa parte, e de que maneira. Ajudamos a que seja impossível para uma pessoa que queira preservar o seu bom nome e a sua honra fazer um percurso político, ajudando os pasquins que têm como modelo de negócio difamar e insultar; fazemos generalizações sobre “os políticos”, confundindo o trigo com o joio; olhamos com nojo os partidos e associações cívicas, deixando-as entregues a quem se quer aproveitar delas e não as usar para o bem comum.
Queremos alguém por não ser político diz muito do nosso amor pela democracia. Mas diz sobretudo muito sobre aquilo que fizemos para desprestigiar quem é essencial para o seu funcionamento. Gouveia e Melo agradece.
Nos últimos dias, as taxas de juro da dívida pública francesa atingiram máximos que não se registavam desde 2012, ultrapassando as da Grécia. Estes termos – Grécia, dívida pública, 2012 – são de má memória. Para a Europa e para nós. Acordam fantasmas chamados “troika”, “crise económica”, “alto desemprego”, “viver acima das possibilidades”, “cortes salariais na Função Pública”. Arrepios de um tempo em que se viveu mal por aqui, era Pedro Passos Coelho primeiro-ministro.
A “França não é a Grécia”, tem repetido o governo (e ainda haverá governo quando o leitor estiver a ler estas linhas? Já lá iremos). O facto é que o país de Emmanuel Macron está metido em apuros. A dívida pública deve aumentar de 112,7% para 117,1% do Produto Interno Bruto (enquanto a de Portugal se encontra agora nos 97,4% do PIB e sempre a descer; e a da Grécia está nos 153%) e o défice (lá vem ele, de novo) deverá fixar-se nos 6,1% este ano. Lembramos tão bem o máximo imposto pela União Europeia, 3% do PIB!
Vem aí “uma grande tempestade e uma turbulência muito grave nos mercados financeiros”, foi avisando o primeiro-ministro Michel Barnier, não se sabendo ainda se a frase nos deve assustar mesmo ou se faz parte da dramatização de quem quer ver o seu Orçamento do Estado aprovado.
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O facto é que estas percentagens todas do PIB não são bonitas. E a crise política que se segue vem numa altura que não serve a Europa, como analisa a Reuters, quando diz que “um colapso do governo deixará um buraco no coração da Europa, com a Alemanha também em modo eleições, semanas antes de Donald Trump voltar a entrar na Casa Branca”.
Seja qual for o desfecho das moções de censura anunciadas na segunda-feira (e a VISÃO fecha a sua edição semanal à terça, estando as votações previstas para quarta), a turbulência atual da política francesa é só um culminar da forma insensata como Emmanuel Macron tem liderado o país.
Recordando: depois de perder as eleições europeias para a Frente Nacional de Marine Le Pen, Macron arrisca tudo ao dissolver a Assembleia Nacional e a convocar eleições legislativas antecipadas. Estaria confiante da jogada política, mas perdeu à grande, de novo. Na primeira volta, a 30 de junho, a Frente Nacional ganhou as eleições com 33,21% dos votos, seguindo-se a esquerda unida na Nova Frente Popular. A coligação que apoia Macron, o Ensemble, ficou-se pelo terceiro lugar.
Depois do susto, a segunda volta mudou as dinâmicas. A esquerda unida ganhou as eleições, o Ensemble ficou em segundo e a extrema-direita desceu para terceiro. A “despromoção” foi só aparente. Não tendo a Nova Frente Popular maioria dos assentos, Macron nomeou, há pouco mais de três meses, como primeiro-ministro, o conservador Michel Barnier, apesar de o seu partido, Os Republicanos, ter ficado em quarto lugar nas eleições, com apenas 5,4% dos votos. Na Assembleia Nacional, tem “governado” Marine Le Pen.
Só que a necessidade, ditada pelos mercados, de um Orçamento austero, com aumento de impostos e corte de despesa, para travar a dívida pública, fez a extrema-direita pensar duas vezes antes de aprovar e se associar às políticas de Macron. E, de novo, está a França nas mãos de Le Pen. Aconteça o que acontecer esta semana, com ou sem a perspetiva de novas eleições, uma coisa é certa: Emmanuel Macron é, sem dúvida, o grande protagonista do caos.
A queda do Governo francês era esperada, mas foi um golpe duro para Macron e Barnier. A coligação negativa venceu na Assembleia. Resultado: a França mergulha novamente na instabilidade crónica dos últimos anos.
Barnier tinha o perfil. Era o “negociador do Brexit”, o homem da experiência e da maturidade. Mas isso não chega. A direita francesa sente o cheiro do poder e está pronta a ocupar o espaço. Macron, por sua vez, sai ainda mais enfraquecido, fragilizado, estonteado.
Isto é mau para a Europa. Pior para Portugal. Mas a política decide-se nas urnas. Se Macron não encontrar rapidamente uma solução sólida, o poder passará para a direita populista. E não há volta a dar.
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O papel da esquerda
A gente que hoje se reclama de Esquerda tem de perceber que, no mundo globalizado e injusto em que vivemos, a Europa é a grande utopia do séc. XXI. Sem uma Europa unida e atuante não podemos resolver os problemas da paz, no nosso Continente, e dar um contributo sério para os resolver no Mundo, bem como os problemas ecológicos que hoje tanto nos afligem. Também sem uma Europa Política não poderemos conservar o nosso modelo social, nem seremos capazes de lutar, eficazmente, contra a criminalidade internacional organizada, introduzindo regras éticas indispensáveis na globalização, de forma a acabar com pobreza e com as grandes desigualdades que tanto afetam os Povos e as Nações. (29 de março de 2007)
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Ser de Esquerda hoje, a meu ver, para um europeu, não é só ter um passado coerente, antifascista, anticolonialista, a favor dos Direitos Humanos e da igualdade entre homens e mulheres; é ser a favor de uma democracia económica e social (e não de uma “democracia liberal”); é lutar contra as desigualdades sociais; ser a favor de uma Europa Política e Social, capaz de ser solidária com todas as outras Regiões do Mundo onde se sofre; e a favor das grandes causas da defesa do Ambiente, dos Direitos Humanos e da igualdade de todos os seres humanos, independentemente do sexo, opção sexual, raça, religião ou condição social; é ser pelo primado da política sobre a economia, da ética, contra a mistura explosiva do negocismo e da política; é ser tolerante e aceitar o outro, como diferente de nós, partidário do multiculturalismo e da laicidade, ou seja, a favor da separação do Estado e das Igrejas; a favor de um sistema capaz de corrigir as desigualdades, de um Estado de direito, interveniente, mormente no campo da saúde, da justiça, do ensino, do conhecimento e do aproveitamento dos melhores. (11 de outubro de 2007)
Contra a banalizaçãoda política
É necessário reagir, apelando à razão, com objetividade e bom senso, recusando todos os fanatismos. No início do novo milénio, enquanto a memória das ditaduras do séc. XX, de sinal contrário – e dos seus horrores – permanece viva, saibamos defender os princípios que decorrem da Razão e da Ética. Recusemos a falsa ideologia neoliberal, o mito de que a “mão invisível” do mercado resolve tudo, o domínio do dinheiro e do sucesso – a qualquer preço – como valores supremos. Lutemos contra a banalização da Política e os políticos de marketing, feitos artificialmente como subprodutos vendáveis. Saibamos voltar aos valores da Liberdade, da Justiça e da Solidariedade. Para construir um mundo mais humano e melhor, a que aspiram, legitimamente, todos os Povos da Terra. (30 de janeiro de 2008)
Sistema neoliberal está podre
A crise rebentou, à vista de todos. O sistema neoliberal está podre. A economia de casino dos offshores e das roubalheiras só trouxe desastres e escândalos. É preciso mudá-la! Quanto mais depressa melhor. As últimas semanas têm sido arrasadoras para os que pensavam – e alguns ainda pensam – que era possível evitar a crise financeira mundial anunciada e a recessão para que caminham os EUA. Contudo, todos os sinais nos mostram que não é possível. A turbulência nas bolsas, nos EUA e no mundo inteiro, não obstante a queda da taxa de juros decretada, em desespero, pela Reserva Federal, e as medidas tomadas à pressa pelo Presidente Bush – um neoliberal extremista e ultraconservador obrigado, pela lógica dos acontecimentos, a recorrer aos ensinamentos de Keynes. Remédio tardio e de pouca dura. A Europa, não obstante as pressões políticas, não seguiu o passo da América. Fez bem, ao que julgo, em tomar as suas distâncias… Já não era sem tempo.
O principal é perceber-se que o neoliberalismo entrou em descrédito irremediável e a globalização selvagem, com as desigualdades a crescerem em flecha, dentro de cada Estado e entre os diversos Estados, tem de ser regulamentada, no plano mundial, pela ONU, se queremos fazer face aos desafios com que estamos confrontados. Se percebermos isso, rapidamente, na União Europeia – e agirmos em conformidade –, poderá então, a Europa, vir a ter um papel decisivo, a que aliás tem jus, no contexto das Nações. O essencial é, contudo, compreender que o sistema financeiro-económico em que temos vivido no Ocidente – e quisemos impor ao mundo – está esgotado e tem de mudar. Rapidamente. Os países emergentes estão atentos e têm cartas importantes a jogar… (31 de janeiro de 2008)
“A Justiça não funciona”
A crise da Justiça está aí, é uma evidência incontornável. Não pode deixar de preocupar os cidadãos responsáveis. A Justiça, em demasiados casos, não funciona, nomeadamente quando envolve políticos mediáticos ou desportistas igualmente mediáticos. Os juízes não se entendem com os procuradores e estes não se entendem com os responsáveis da Polícia Judiciária. Há a sensação de que disputam, entre si, para aparecerem nas televisões, como vedetas. Não resistem a responder a perguntas disparatadas ou mal-intencionadas e nem sempre o fazem com o bom senso que seria de esperar.
Assim sendo, perdem a distância – tão necessária à profissão que exercem – e desacreditam as magistraturas. Parece não perceberem que o silêncio é de ouro e a palavra, em certas circunstâncias, lhes é bastante inconveniente. O que contribui, com alguma frequência, para o descrédito da Justiça, nos espíritos dos telespectadores, que nas suas casas, num contexto diferente, os veem, escutam, avaliam. E não gostam…
Ora, o bom funcionamento da Justiça é essencial aos Estados de direito, como o nosso. Sem um Estado de direito eficaz e que mereça o respeito dos cidadãos não há Democracia. A questão é, portanto, muito séria e não pode ser ignorada pelos órgãos de soberania. (28 de maio de 2009)
Europa em risco
O Ocidente e a União Europeia (UE) em especial estão a atravessar um período muito difícil e perigoso, a caminho de poder deixar de ser o centro do mundo, como já tenho escrito. Por culpa própria, fraqueza dos seus atuais dirigentes, pela crise económico-financeira que não tem sabido dominar e, ainda, pelo progresso acelerado, em contraste com a Europa, dos países ditos emergentes, não só a China, a Índia e o Brasil, mas também a Rússia, o Japão e alguns outros.
A UE está perante um dilema, a que não pode fugir, mas que tem procurado ignorar: ou dá um passo em frente, reforçando a solidariedade entre os 27 Estados que a compõem, definindo uma estratégia comum, concertada, para atacar a crise, ou corre o risco de se desagregar. O que seria, a prazo, a morte do mais original e importante projeto de paz, de entendimento entre os Estados e de bem-estar para as populações de que o mundo tem experiência.
O euro está a ser atacado, por especuladores que só pensam no lucro. Mal ou bem, graças também às novas orientações e ajudas concedidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) – dirigido, desde 2008, pelo inteligente e hábil Dominique Strauss-Kahn, neo-keynesiano e inovador – e, obviamente, pela ajuda da Europa, Portugal incluído, a Grécia tem possibilidades de se recompor. Mas há outras preocupações e outros países europeus em dificuldades, como a Espanha, a Irlanda e Portugal, não o esqueçamos.
É preciso reagir. Os europeus com consciência da importância da cidadania europeia devem reagir, pacífica e esclarecidamente. Os jovens da geração do Erasmus, que são europeístas, devem estar na ponta desse combate, tão decisivo para o seu próprio futuro. Apelo, pois, para a cidadania europeia, para que mulheres e homens de todos os países e de todas as idades pressionem os respetivos governos nacionais para mudarem de política e de modelo económico e social. Em democracia a voz dos cidadãos, desde que se faça ouvir, conta muito, porque os governantes sabem todos que dependem do voto, que é a arma da democracia. É dela que depende a legitimidade e o poder dos governantes… (22 de abril de 2010)
Putin é um homem perigoso
Putin quis ter um relacionamento privilegiado com a senhora Merkel, que era comunista quando estava na Alemanha de Leste. Contudo, os europeus obrigaram-na a estar com a Ucrânia, cortando a relação especial que tinha com o Presidente russo. No domingo, 10, a seguir à parada militar, houve em Moscovo uma homenagem ao soldado desconhecido. Ao lado de Putin, a senhora Merkel, pressionada pelos europeus, disse: “Foram a anexação criminosa da Crimeia e os confrontos militares no Leste da Ucrânia, que violam o Direito Internacional, que fizeram com que a cooperação tenha sofrido um sério revés…”
Sendo um homem difícil e hoje Presidente da Rússia, Putin tem o seu poder, que não é pequeno. Terá deixado de ser comunista, porque hoje, partidos comunistas, só há em raríssimos Estados, como em Portugal.
Putin sabe disso muito bem e é um homem voltado para o futuro e não para o passado. Mas a questão da Ucrânia criou-lhe um grande problema. E isso pode vir a ter consequências mais graves como a do assassínio de Boris Nemtsov, líder da Oposição russa, ocorrido em 27 de fevereiro deste ano. Veremos. Mas tudo leva a crer que Boris Nemtsov tinha provas da participação da Rússia no conflito do leste ucraniano.
Em conclusão, Vladimir Putin é um homem perigoso. Ou, como dizem os brasileiros, um homem astuto, perigoso e imprevisível. (14 de maio de 2015)
Quem era Mário Soares? Que homem era este, capaz de recuperações políticas impossíveis, de enfrentar as forças mais adversas e de arriscar nos combates mais difíceis? Quem era este político a que ninguém ficava indiferente, que se odiava ou adorava – e vice-versa no dia seguinte? No fundo, o seu segredo foi o de ser um homem como nós, que nas palavras da jornalista americana Marvine Howe, que o conheceu bem – e, há quem diga, mesmo na intimidade… –, era o “português típico”, amante do bacalhau, da dobrada com feijão-branco, e cultor de um certo marialvismo machista que hoje, seguramente, lhe garantiria o cancelamento – não fosse ele, como Eusébio, um jogador capaz de ser fora de série em qualquer época. Português típico, sim, mas acrescentando aos traços dos seus concidadãos o suplemento das suas características pessoais: mais ousado, mais atrevido, mais irreverente, mais “sim ou sopas”. Mais preguiçoso, mais manhoso, mais egocêntrico, mais intuitivo. Ele era uma caricatura, uma aresta vincada dos traços da personalidade portuguesa, um espelho côncavo que expunha o lado melhor e o lado pior do homem lusitano.
Teve uma vida excessiva. Na política, nas amizades, no amor. Mário Soares (1924-2017), falecido aos 92 anos, continuava a ser uma força da Natureza, pouco tempo antes do seu desaparecimento. E mesmo quando, nos últimos meses, perdeu a lucidez, continuou, quase até ao fim, fisicamente robusto. O seu trunfo foi o do paradoxo: a sua bonomia conferiu-lhe a alcunha pela qual os portugueses sempre o recordarão: o “Bochechas”. O que não invalida a sua verve combativa a que outro epíteto acrescenta um cariz profundamente contraditório: o de “Velho Leão”.
O estudante O aluno Mário estudava pouco, passava sempre à “rasquinha” e o pai teve de lhe arranjar precetores
Ele, que só podia ser amado ou odiado, foi, mesmo neste aspeto, uma espécie de contradição nos próprios termos e, durante dez anos em Belém, foi o mais consensual dos portugueses vivos. O paradoxo desponta: autoritário, mimado e prepotente, no plano pessoal e político, arriscou a vida por valores humanistas, pelo pluralismo e pelo primado da tolerância. Confiável mas instável, simpático mas irascível, foi sucessivamente comunista, socialista radical, antissocial-democrata – “sou profundamente contra um regime social-democrata do tipo sueco”, disse, após o 25 de Abril… – marxista, anticomunista, social-democrata do tipo europeu, pró-americano e antiamericano, defensor do bloco central e de alianças à esquerda, ideológico mas pragmático, teórico no discurso, prático na ação, ignorante mas literato, capaz de mudar de opinião “convictamente”, mas extremamente coerente no que definiu como linha política: democracia pró-ocidental, república civilista e de partidos politicos, integração europeia. Homem de família, marido estável, mas infiel, amante do belo sexo e da boa vida, gostava de comer e de dormir bem, dos amigos, das tertúlias – desde que tivesse o lugar principal no palco. Habituado ao conforto e a mordomias de menino bem, revelou-se adaptável aos ambientes mais sórdidos, na prisão ou no exílio, sem perder a fleuma ou o sono. Camaleão de pele, sabia estar num salão com reis e rainhas ou no mercado com vendedores ambulantes e peixeiras, dominando, como um nativo, as respetivas linguagens.
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Vistos retrospetivamente os últimos anos da sua vida, é difícil acreditar que dele tenha escrito Ronald Reagan, no seu diário, numa entrada de 16 de fevereiro de 1983: “Passou por cá Soares, de Portugal (será provavelmente primeiro-ministro após as eleições). É um socialista, mas completamente anticomunista e pró-América.”
Mário Alberto Nobre Lopes Soares inicia a sua vida cheia e inteira de árdua luta política quase no berço, na Rua Gomes Freire, em Lisboa, quando ouve as heroicas histórias dos velhos republicanos, amizades do seu pai, João Soares. Respira, assim , política – e política conspirativa –, por todos os poros, desde que nasce, por influência de um pai tão ausente como seria, no futuro, o próprio Mário, entre prisões e deportações e, apesar disso, uma espécie de herói-modelo como ele próprio viria a ser para os filhos João e Isabel. Passando por sucessivas dificuldades, o Colégio Moderno, no Campo Grande, negócio e ganha-pão da família, sobreviverá graças ao matriarcado iniciado por Elisa Nobre Baptista (1888-1955), mãe de Soares, e continuado por Maria Barroso (1925-2015), sua futura mulher e, nos nossos dias, pela filha, Isabel, aos comandos da, finalmente, rentável instituição.
Pai-herói
As ideias de Mário Soares vêm do pai e dos seus amigos: um republicanismo inicial, mas não jacobino, que se vai transformando numa ideia vaga de igualdade, passando pelo comunismo (instrumental para fazer uma oposição enquadrada) e a futura pista própria de um “socialismo democrático” (conceito difuso) e europeísta. Nos anos 60, as suas ideias passam a ser, também, as que bebe dos amigos europeus, quando se torna conhecido, na sequência do assassínio de Humberto Delgado, de cuja família foi advogado.
O pai, João Soares, oriundo de Leiria, ainda é um padre católico quando, em 1907, engravida uma rapariga da localidade de Valado de Frades, nascendo um filho, de nome Tertuliano, que perfilha, mas sem se juntar com a mãe. Ainda vivemos no tempo da monarquia. O donjuanismo, que há de passar para o filho, é quase obsessivo – mas ele detém, de facto, um estranho poder hipnótico sobre as mulheres, que costumam render-se, embasbacadas, a seus pés. Mais tarde, implantada a República, há de renegar os votos do sacerdócio, mas manter-se-á, sempre, profundamente crente. Mário, educado no agnosticismo da mãe, só há de saber da história aos 11 anos. Habituado, já, a interiorizar, o republicanismo dos amigos reviralhistas do pai (estamos em 1935, no apogeu do jovem Estado Novo), isso há de perturbá-lo profundamente.
O pai de Mário Soares, nascido em Leiria, é ainda um padre católico quando, em 1907, engravida uma rapariga de Valado de Frades (entre Alcobaça e a Nazaré). A relação não vingou, mas João Soares perfilhou o filho, a quem deu o nome de Tertuliano, o meio-irmão, mais velho 17 anos, que viria a livrar Mário da tropa…
Na jovem República, João Soares exercerá diversos cargos, indo de deputado a, por três vezes, governador civil (Guarda, Braga e Santarém). No currículo republicano conta com uma detenção por ter entrado, em janeiro de 1908, na conspiração contra o ministro de D. Carlos, João Franco, tendo sido libertado após o regicídio, em fevereiro do mesmo ano. Já a morar em Lisboa, na zona de Picoas, durante o golpe que implanta o sidonismo (1917), procura corrigir, por telefone, o tiro dos navios leais à República, estacionados lá em baixo, no Tejo, e é temporariamente preso.
Nos primeiros anos da República, João Soares alojara-se numa pensão, no Chiado, tomando-se de amores pela dona, que geria, com o companheiro (marido?), o estabelecimento. A senhora, Elisa Nobre Baptista, revelará sempre um sentido prático muito distante do idealismo sonhador do marido. Elisa já tinha um filho, de nome Cândido, que será, assim, um segundo meio-irmão de Mário Soares, depois de Tertuliano. Fogem (casar-se-ão anos mais tarde) e ficam a morar na Rua Gomes Freire, onde Mário Soares há de nascer, no dia 7 de dezembro de 1924. É Presidente da Republica Manuel Teixeira Gomes. As coincidências da História fazem das suas: este Presidente, ao sair do cargo, proferirá uma frase que Mário Soares repetirá, cinco décadas mais tarde, quando é demitido do cargo de primeiro-ministro: “Sinto-me tão livre como um pássaro fora da gaiola.” Os governos sucedem-se, mas João Soares mantém-se como uma das figuras mais influentes do regime. Todavia, embora a mãe, Elisa, não quisesse nada com a Igreja, o pai impôs que o futuro Presidente “republicano, socialista e laico” fosse baptizado, tomando por madrinha Nossa Senhora da Conceição, a pedido da madrinha terrena, a tia Júlia, irmã de João Soares.
O 28 de Maio
O 28 de Maio de 1926, que institui a ditadura militar, apanhara João Soares como deputado por Leiria, tendo-se confrontado com o encerramento do Parlamento. Foi também demitido do seu lugar no Conselho Superior de Finanças. Começava a longa caminhada de oposição reviralhista que lhe valeria algumas passagens pela prisão, longas fugas para a clandestinidade e até um desterro, nos Açores. A intermitência da presença paterna exige a presença de uma mãe cheia de força e sentido prático. Elisa vai gerindo sucessivos colégios que João Soares vai abrindo, até se fixar no projeto de maior sucesso no Campo Grande, em Lisboa (Colégio Moderno, em 1935). Mas isso não impede que o pequeno mantenha fortes laços com a figura tutelar paterna. O pai, pela sua coragem e pelo seu idealismo aventureiro, torna-se um ídolo. João Soares, bem à frente do seu tempo, é um pai carinhoso, fisicamente carinhoso. Mário Soares não se lembrará, apesar das dificuldades financeiras da família, de que alguma vez lhe faltasse nada. Muito mimado, acompanha as discussões dos adultos e fascina-se com as reuniões conspirativas promovidas pelo pai, sempre que vai a casa. É uma criança enfermiça, afetada, desde os 3 anos, pela asma, uma complicação respiratória de que terá sequelas no final da vida. Dócil, atento, sossegado, o pequeno Mário trava amizade com o vizinho de baixo, um tal Mário Moniz Pereira, então adolescente, que virá a ser uma lenda como “pai do atletismo nacional”. Mas Mário Soares não é dado ao exercício físico e apenas observa, da janela, as provas desportivas que o futuro treinador de Carlos Lopes (mais velho quatro anos) já vai organizando com os seus amigos. Em casa é familiarmente tratado por Gigi, um petit nom inventado pelo pai. Em 1933, os pais de Mário casar-se-ão pela Igreja. Este é o ano do plebiscito constitucional fundador do Estado Novo. António de Oliveira Salazar, no auge, é um dos mais reconhecidos e prestigiados líderes autoritários europeus.
O comunista contrafeito
De uma curiosidade lúdica profunda e irrequieta, Mário Soares patina quando se trata dos estudos e, inicalmente, chumba a admissão ao liceu. Pela vida fora, evitará ler dossiers e sustentará que qualquer ideia complexa pode ser explicada numa folha A4 (terá isso em comum, por exemplo, com outra figura expansiva com quem se dará particularmente bem: o futuro Presidente norte-americano Ronald Reagan…). Embora dizendo-se, grande parte da vida, marxista, nunca conseguirá passar da página 40 de O Capital, obra fundmental do pensador alemão de origem judaica. E apregoará que a obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels, é o livro mais chato que leu na vida. Amante, sim, da leitura, mas só por prazer e nunca por obrigação, e conhecedor das artes, aberto à cultura, sensível à pintura, nunca há de, porém, entender-se com números – apesar de perceber bem os mecanismos da economia e dos seus diversos ramos, como ciência social – e boceja perante programas culturais na televisão. No final da vida, será o fã nº1 d’O Preço Certo, na RTP, programa de Fernando Mendes, apresentador e ator que considera, a fazer aquilo, “genial”.
A consciencialização política, digamos assim, mais madura, surgira durante a Guerra Civil de Espanha. Através de emissões clandestinas de rádio, ouve-se, em casa, a voz de Dolores Ibárruri, a Passionaria, e o pré-adolescente Mário começa a despertar para a alternativa do comunismo, contra a vontade do pai, que sempre desconfiou dos comunistas. Mais virado para outros aspetos da vida, João Soares patrocina o batismo de fogo do filho, em matéria sexual, encaminhando-o, como era corrente, para uma prostituta.
O bando dos quatro Durante uma temporada nas masmorras da ditadura, os quatro jovens prometeram só cortar o bigode quando fossem libertados. Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Alarcão e Manuel Mendes, depois de saírem do Aljube, a 12 de abril de 1949
A partir de 1940, ecoam por essa Europa os canhões da blitzkrieg alemã, e espraia-se Lisboa na Exposição do Mundo Português. Mário frequentará o Colégio Moderno, mas não faz figura de filho do papá. Pelo contrário, mostra-se irreverente, choca contra a disciplina, revela-se solidário para com os colegas a quem encobre sempre que é preciso. Contestatário, começa a revelar o seu dom para fazer amizades e para liderar pessoas.
Aos 15 anos, apaixona-se por uma tal Judite, dois anos mais nova, o que não contribui para melhorar as perfomances escolares, bastante aquém do desejado. O que ele quer é discutir política, conspirar, derrubar o salazarismo, como o pai. No 3º ano (atual 7º), como conta ao seu biógrafo não oficial, Joaquim Vieira (Mário Soares, Uma Vida, D. Quixote – edição atualizada, 2024) brinca aos “governos”, no Colégio, nomeando ministros e colocando-se ele como primeiro-ministro. Mas continua a ser um aluno medíocre. O pai, um pedagogo com ideias fora da caixa, resolve apostar num esquema de formação paralelo aos programas oficiais, só para “abrir a cabeça” ao rapaz. E contrata três mestres que, por assim dizer, lhe ministram “cultura geral”: o poeta, ensaísta e filósofo Agostinho da Silva, o professor de Filosofia Álvaro Salema e… Álvaro Cunhal, que o pai tinha brevemente contratado como regente de estudos. Cunhal, em 1941, tinha saído da prisão e, ainda nesse ano, regressaria à clandestinidade. O dirigente comunista estava impedido de ensinar, mas foi contratado para dar explicações a alunos do Colégio Moderno, mais necessitados. Também Salema era próximo do PCP e Soares começa a levar o ativismo político para um lado mais orgânico: os comumistas eram a única oposição organizada.
Em 1942, Soares tem a primeira confrontação com a polícia (mas ainda não a PVDE, antecessora da PIDE). Durante um evento musical, com a presença de Fernando Lopes-Graça, ex-professor de canto coral de Soares, no Colégio Moderno, e figura próxima do PCP e do grupo dos neorrealistas, houve um tumulto iniciado por provocadores da Mocidade Portuguesa (organização criada pelo regime de Salazar, inspirada na Juventude Hitleriana) e a polícia interveio, prendendo alguns dos jovens “oposicionistas”. Mário Soares foi parar com os costados a uma esquadra, sendo libertado, pouco depois, e após ter levado um raspanete – uma foma benigna do que, eufemisticamente, Salazar designava como “um safanão”.
Na hora de escolher um curso superior, Mário Soares foi contra a vontade do pai – que aconselhava Direito, por perceber que o filho tinha um talento raro para a oratória e podia dar um bom causídico, em tribunal – e optou pela Faculdade de Letras, em Ciências Histórico-Filosóficas onde, na admissão, passou com 10 valores a História, 12 a Filosofia e 14 a Português. Na altura, porém, e durante décadas, até depois do 25 de Abril, a licenciatura em Direito era a forma instrumental mais eficaz para singrar na política. Soares acabou por perder dez anos da sua vida entre cursos, acabando por tirar Direito, depois de Letras. O estudante medíocre – também na universidade se formou com notas bastante baixas – acabou por obter, assim, duas licenciaturas…
As férias de verão de 1942, passadas na Foz do Arelho, hão de mudar a sua vida. Conheceu o comunista Humberto Carvalho, impressionado por Soares ter conhecido Cunhal tão de perto – o futuro líder histórico do PCP ainda não era o secretário-geral, mas já detinha a sua aura de herói… – que o recrutou. Regressado a Lisboa, com uma espécie de carta de recomendação para Jorge Borges de Macedo, entra no MUNAF (Movimento Nacional de Unidade Anti-Fascista) que, como todas as frentes unitárias do século XX, estaria controlado pelo PCP. No final de 1942, adere ao partido. Ainda estávamos longe do tempo em que Soares consideraria o comunismo “um dos grandes embustes do século XX”… O PCP garantia as ligações entre os estudantes de vários estabelecimentos universitários (um trabalho de sapa iniciado pouco antes pelos comunistas, devido ao facto de Cunhal ter inovado, com o setor intelectual, num partido anteriormente apenas aperto a operários). E a resistência dos soviéticos, sobretudo, na Batalha de Estalinegrado, contra a Wehrmacht nazi, terá incutido em Soares um suplemento de admiração pelos comunistas. Por essa altura, e como “TPC”, Soares foi mesmo obrigado a estudar, lendo várias obras indicadas pelo partido, de Marx a Engels e Lenine, de Estaline a Dimitrov ou a Bukarine – este, aliás, uma das vítimas dos Processos de Moscovo, que inicaram as purgas estalinistas…
Pioneiros Com Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais, fundou aqui, em 1964, em Genebra, a Associação Socialista Portuguesa (ASP) precursora do PS
Do seu trabalho revolucionário fazia parte a tradução, a partir do Francês, de alguns textos doutrinários, como a Constituião Soviética, para camaradas menos letrados lerem – e para Soares, que considerou a tarefa “uma seca” e nunca teve jeito para línguas, até o Francês era penoso… Em 1942, o futuro líder do PCP fez uma visita clandestina e noturna a casa dos Soares, o que elevou a sua aura romântica. Só que ao contrário de Cunhal, que tinha abandonado a sua vida burguesa para se tornar um monge da causa, Soares não estava disposto a tanto. Não lhe entravam na cabeça as regras conspirativas, como o tratamento pelos pseudónimos, no partido, quando todos se conheciam pelo próprio nome, nem ia à bola com as regras da disciplina partidária, logo ele que sempre fora, naturalmente, individualista e indisciplinado. Soares queria verdadeira ação e foi, aliás, dos primeiros a perceber que o Estado Novo só cairia com um golpe militar. Por acaso, num tempo de serviço militar obrigatório, escapou da tropa com a ajuda da sua bronquite mas também por cunha do seu meio irmão mais velho Tertuliano, médico do hospital do Exército.
Mário Soares, por via das juventudes comunistas, começa a construir a sua rede de contactos entre colegas universitários de várias faculdades (muitos acabaram, também, por não continuar no PCP). Foi o caso de Coimbra Martins, que será, no futuro, um dos seus mais próximos. Conta o futuro embaixador ao biógrafo Joaquim Vieira que viu Soares, pela primeira vez, num ajuntamento estudantil no Instituto Superior Técnico, quando o reitor ameaçava chamar a polícia. Soares, imperturbável, contestaria: “Bom, senhor reitor, isso são métodos muito correntes, hoje, na Europa, nos países chamados fascistas…” – a frase tem tanto mais peso quanto era certo que a guerra começava a correr francamente mal ao Eixo.
Por esses anos, o responsável do PCP Fernando Piteira Santos, mais tarde um dos mais proeminentes exilados de Argel, desempenha papel fundamental na sua promoção no partido, que ainda não tinha desistido de o converter às suas regras. A responsabilidade aumentava e, embora ainda não tivesse sido instituído o cartão partidário, Soares começava a ser um verdadeiro militante. No espírito, porém, surgem-lhe dúvidas sobre a necessidade de uma fase intermédia no socialismo, chamada “ditadura do proletariado” – ele que era contra qualquer ditadura, que diabo! – e a repressão do que os comumistas chamavam as “liberdades burguesas” – ele que era a favor da liberdade! Não tardará que o partido exija dele que abandone tudo e entre na clandestinidade. A resistência – e posterior desobediência – do nóvel militante “Fontes” (pseudónimo de Soares no PCP) conduziria à degradação das relações com o partido, e com Álvaro Cunhal, e ao processo tipicamente estalinista que levou à sua expulsão. Mas já lá vamos.
No final de maio, a vitória dos Aliados consuma-se, na frente europeia. Soares, de imediato, encabeça uma marcha estudantil até ao Rossio, descendo o Chiado, no prenúncio do que seriam as célebres arruadas das campanhas eleitorais, muitas décadas mais tarde. No dia seguinte, estudantes universitários de toda a capital arregimentam-se para uma grande manifestação de regozijo pela vitória aliada. Soares faz um dos seus primeiros discursos com grande audiência, de uma janela da faculdade de Ciências, a pedido do futuro amigo (para a vida) Mário Ruivo, que viria a ser um proeminente biólogo. A população adere e já são aos milhares quando chegam à zona das embaixadas, na Lapa. A polícia tem ordem para não intervir. Os embaixadores “vitoriosos”, o norte-americano, o inglês e o francês, recebem um “petit comité”, mas pedem aos manifestantes para refrearem o entusiasmo e respeitarem a ordem estabelecida, enquanto estes gritam por “liberdade, democracia e morte ao fascismo”. Um alerta para o que se seguiria, ou seja, a integração das ditaduras ibéricas na nova ordem internacional, no quadro da guerra fria… A manifestação continuou, descendo à zona ribeirinha, por Alcântara, Avenida 24 de Julho e Praça do Comércio (Terreiro do Paço). Com bandeiras das potências aliadas, exceto a soviética – a foice e o martelo estavam proibidas… – os manifestantes gritam vivas à América, à Inglaterra, à França e… à outra. Testemunhas oculares contariam, depois, que a bandeira da URSS fora substituída por bandeiras vermelhas… do Sport Lisboa e Benfica.
Campanha de Humberto Delgado Ao lado do general, candidato apoiado pela oposição às eleições presidenciais, em 1958
Pouco depois, e em vésperas de eleições para a Assembleia Nacional, então apenas ocupada por deputados do partido único, a União Nacional, Salazar, promete “eleições tão livres como na livre Inglaterra”. Emerge, então, com grande entusiasmo, o MUD (Movimento de Unidade Democrática) que rapidamente se afirma como uma grande frente unitária da oposição – infiltrada, claro está, pelo clandestino PCP… – para disputar tais eleições. Os signatários de listas de apoio ao MUD, aos milhares, serão vítimas de prolongadas represálias, exonerações da administração pública e do ensino, prisões e deportações. A 18 de novembro de 1945, de facto, o MUD prescinde de ir às urnas, por falta de condições. Ainda assim, o movimento continua ativo e prossegue as suas atividades oposicionistas – Salazar guarda o golpe final para mais tarde, deixando “os coelhos sairem da toca”. Soares é escolhido como um dos 12 membros da comissão Central do MUD, presidida por Mário de Azevedo Gomes, grande figura da oposição democrática. Do MUD emerge, na Universidade, o MAUD (Movimento Académico de Unidade Democrática), onde Soares é figura de destaque. E é neste quadro que se desloca a Coimbra e conhece Francisco Salgado Zenha, o companheiro político e amigo íntimo de 40 anos – até que, já nos anos 80, a política os separa. O brilhante estudante de Direito ficara célebre ao recusar, como presidente eleito da Associação Académica, integrar uma delegação para agradecer a Salazar ter evitado a participação de Portugal na guerra. O gesto valer-lhe-ia a demissão compulsiva de presidente da Académica.
O MUD Juvenil era dominado pelo PCP: Mário Soares, Salgado Zenha, Octávio Pato, António Abreu (futuro vereador da Câmara de Lisboa, nº 2 na coligação PS/PCP de Jorge Sampaio, em 1989), Mário Sacramento e até o pintor Júlio Pomar, que Soares conhece nessa altura. Na formação do MUDJ, foi apresentado um relatório de 330 páginas, sobre a atividade estudantil, elaborado por Mário Soares e convenientemente “corrigido” (contra a vontade de um então ainda disciplinado “camarada Fontes”…) pelo escritor neorrealista, autor de obras como Esteiros, Soeiro Pereira Gomes, seu controleiro no PCP, nessa altura. Soares começava a ser pressionado para entrar na clandestinidade, mas tinha outros planos. A sua heterodoxia revela-se numa confissão a Joaquim Vieira, na obra já citada: quando o amigo Octávio Pato, consumido pela dúvida, lhe pergunta se frequentar prostitutas violaria a moral comunista, Mário Soares responde pragmaticamente: “Acho que sim, mas, se estiveres muito aflito, vai.”
Batismo na PIDE
A sua assinatura nas listas de apoio ao MUD leva-o ao seu primeiro interrogatório na PIDE, no início de 1946. Mais tarde ainda nesse ano, é preso por ter subscrito um docmento do MUD exigindo a não aceitação de Portugal na NATO, por ser uma organização que só devia admitir países democráticos. Foi libertado depois do pagamento de uma fiança de 100 contos, emprestados pelo industrial Amadeu Gaudêncio, amigo do pai. No mesmo ano, começa a ser solicitado para intervenções públicas como no 5 de Outubro, estando presentes grandes figuras da I República, que o apadrinham. São eles, entre outros, Mendes Cabeçadas, Mário de Azevedo Gomes ou António Maria da Silva. Noutra reunião do MUD, falará, estando presentes o futuro candidato da oposição democrática às eleições de 1949, general Norton de Matos, Bento de Jesus Caraça ou Francisco Ramos da Costa – que há-de, com ele, ser fundador do PS, em 1973. Soares começa a destacar-se como um eficaz agitador, bom tribuno, e a figura, de longe, mais conhecida do MUD Juvenil. Beneficiando dos contactos do pai, é facilmente reconhecido e aceite, em tertúlias que contam com grandes “tubarões” oposicionistas da intelectualidade, como Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Abel Manta, ou Bento de Jesus Caraça. Outros jovens tinham a família à perna, se negligenciassem os estudos para se meterem em política. Mas, em casa de Mário Soares, era o contrário: o pai nutria um visível orgulho pelas atividades “extra-curriculares” do filho. Entretanto, conhecera, na Faculdade de Letras, uma jovem estudante, também já muito politizada, que acumulava com a carreira de atriz, no Teatro Nacional D. Maria II: chamava-se ela Maria de Jesus Barroso…
Em 1948, Soares volta a ser preso, com outros camaradas, passando por Caxias, Aljube e Penitenciária de Lisboa (onde chegou a estar em isolamento). Os jovens detidos foram libertados apenas ao fim de quatro meses. No Aljube, cruzou-se com o pai, João Soares, que, entretanto, aos 68 anos, se tinha envolvido numa conspiração. Nessa altura, chega também ao Aljube um novo preso, um jovem advogado que defendia um general detido no recaldo do episódio que também envolveu João Soares. Este causídico disponibilizara-se para depor a favor do seu cliente, por maus tratos na prisão. Por causa disso, fora mandado encarcerar, uma temporada, pelo ministro da Defesa, Santos Costa, “para aprender”. Chamava-se este advogado… Adriano Moreira. Viria a ser ministro do Ultramar de Salazar, demitir-se-ia em rutura com o ditador e assumiria, no regime democrático, um papel ativo, como dirigente, deputado e presidente do CDS. Seria pai da atual deputada do PS, Isabel Moreira.
Eleições de 1969 Liderou a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). As eleições não foram livres, nem justas, mas deu para perceber que, no confronto com a outra candidatura democrática, a CDE, Soares tinha perdido
Mário Soares teria um papel muito ativo na recolha de assinaturas para lançar, em 1949, a candidatura do general Norton de Matos, tendo depois assento, nas estruturas da candidatura, como secretário – uma espécie de chefe de gabinete do candidato. Foi Soares quem persuadiu Norton a ser retratado por Júlio Pomar, para efeitos de folhetos da candidatura. O general não acreditava na habilidade de desenhador daquele “rapazito”, mas, depois de ver concluído o trabalho, viria a ficar rendido ao seu talento: “É um génio!” Soares era o elemento infiltrado do PCP na candidatura e o partido obrigou-o, contra vontade, a dizer a Norton de Matos que estava ali nessa qualidade. Acabou por revelar a sua missão ao general, que, sumariamente, o expulsou da candidatura.
Pouco depois, Mário Soares era de novo detido pela PIDE e levado para o Aljube, ainda por envolvimento em atividades do MUD. Ainda na prisão, casou, por procuração, com Maria Barroso, a 22 de fevereiro de 1949, por imposição do velho João Soares ao tomar conhecimento de que o filho tinha engravidado a namorada (João Barroso Soares nasce em agosto do mesmo ano). Continua a desobedecer ao partido e recusa ir para a clandestinidade. Em outubro de 1950, toma conhecimento de um processo interno contra si. Estava lá toda a cartilha dos processos estalinistas de Moscovo, com a diferença de que era complicado dar-lhe um tiro na nuca… Alegadamente, o “camarada Fontes” “sabotara” reuniões, sendo acusado de “indisciplina” e “derrrotismo”. Juntando às alegações políticas a calúnia pessoal, o PCP juntava-lhe a acusação insólita de se ter apropriado de bens do partido. Se mais não convencesse os militantes, o assassínio de caráter valeria por si. O mesmo método fora metodicmente testado no estalinismo e fez a o seu caminho, no PCP, até à explulsão, por exemplo, de Zita Seabra, também falsamente acusada de comportamentos pessoais condenáveis. (A extrema-direita, quando colou rótulos de pedofilia a adversários políticos, também seguiu o mesmo caminho…) A tudo isto, o jovem Mário Soares reagia fleumaticamente: “Olha… Já não sou do PCP…”
No início dos anos 50, esperava a Mário Soares uma longa travessia do deserto político. Finalmente, podia concentrar-se nos estudos, preocupar-se com o sustento da família, mulher e dois filhos (o clã ainda vivia à custa do pai) e preparar-se para o relançamento da carreira política, na condição de advogado – curso escolhido explicitamente com esse propósito. A sua lenda estava, ainda, em construção.