O mundo está cada vez mais virado do avesso. A 23 de fevereiro, Alice Weidel será a cabeça de lista do seu partido, Alternativa para a Alemanha (AfD), nas eleições legislativas alemãs. No entanto, a líder dos nacional-populistas germânicos, uma das figuras mais populares e polarizadoras do país, embora se habilite a uma votação recorde e sem precedentes – a maioria das sondagens atribui-lhe intenções de voto acima dos 20% –, prefere não falar em vitória: “Se a comunicação social fosse imparcial, teríamos outros resultados.” Tradução, de acordo com a própria: a AfD poderia ganhar se houvesse um escrutínio livre – algo que inevitavelmente acabará por acontecer “nas próximas eleições federais [em 2029]”.
No início do mês passado, numa reportagem publicada no Neue Zürcher Zeitung, um dos mais antigos jornais do mundo (fundado em Zurique, em 1780), ficamos a saber que a dirigente ultranacionalista, de 45 anos, antiga economista do banco Goldman Sachs, tem também nacionalidade suíça e passa a maior parte do seu tempo disponível na pacata cidade helvética de Willerzell. Ou seja, a personagem que admira Donald Trump e recebe todo o tipo de elogios e apoios de Elon Musk tem domicílio fiscal em Überlingen, no Sudoeste da Alemanha, onde vivem os pais, mas prefere o recato dos Alpes suíços. As razões são muitas. Assim pode fazer caminhadas pela montanha Grosser Mythen, abraçar as árvores que lhe apetecer (é fã daquilo a que os japoneses chamam shinrin yoku, vulgo “banhos de floresta”) e sobretudo passear discretamente na companhia da mulher com quem é casada – a produtora de cinema Sarah Brossard, nascida no Sri Lanka – e os dois filhos adolescentes, adotados, do casal. Estranho? Sem dúvida. Afinal, Alice Weidel é uma acérrima defensora do encerramento de fronteiras, da “remigração” (conceito que prevê a expulsão de migrantes, requerentes de asilo e minorias étnicas) e ainda uma crítica feroz do euro, da União Europeia e das sociedades multiculturais. A somar a todas estas contradições à volta de Alice Weidel, que viveu meia dúzia de anos no Japão e na China (aparentemente, é até fluente em mandarim), convém também sublinhar que o programa eleitoral da AfD afirma que “a família, constituída pelo pai, pela mãe e pelos filhos, é a base da sociedade”.
INIMIGA NEGACIONISTA
A copresidente da AfD (partilha desde 2022 a liderança do partido com Tino Chrupalla, um velho amigo de André Ventura) tem demonstrado ser capaz de condicionar em larga medida a agenda política germânica. Além da cruzada antimigratória e dos apelos aos valores liberais e conservadores – Weidel diz-se grande admiradora de Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido –, a dirigente populista não receia invocar temas sensíveis como o Holocausto e o passado nazi. Na conversa que teve com o homem mais rico do mundo, retransmitida através da rede social X, chamou “comunista” a Adolf Hitler, pediu aos seus compatriotas para olharem para o futuro com “confiança e responsabilidade” e deixarem para trás o “culto da culpa”. Comentários que lhe valeram críticas de todos os seus adversários políticos: “Sois inimigos da nossa democracia; sois inimigos da Humanidade”, acusou Marco Wanderwitz, deputado cristão-democrata (CDU) e um defensor incondicional da ilegalização da AfD.

O ambiente de crispação agudizou-se na passada semana quando a câmara baixa do Parlamento federal (Bundestag) votou duas iniciativas legislativas para endurecer a política migratória e de asilo. Na quarta-feira, 29, a maioria dos representantes conservadores e da AfD votaram em sintonia e o candidato da CDU-CSU à chancelaria, Friedrich Merz, foi de imediato acusado de ter feito um pacto com o Diabo. Isto é, permitira que acabasse o cordão sanitário – literalmente “corta-fogos” (brandmauer, em alemão) – entre os partidos do sistema para isolar as forças extremistas. Merz negou qualquer acordo com Weidel (que recorreu às redes sociais para dizer o contrário e enaltecer a “coordenação” entre os respetivos partidos), mas o tabu estava quebrado e multiplicaram-se as reações.
Angela Merkel, antiga chanceler e rival de Merz na CDU desde o dealbar do século, suspendeu a sua reforma política para denunciar o “erro” e as “manobras táticas” do seu partido. Os representantes do centro-esquerda alemão no Parlamento Europeu divulgaram um comunicado a desancar Merz e a desmentir a necessidade de entendimentos contranatura em Berlim: “Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, os conservadores alemães adotaram uma moção antimigrantes com o apoio da extrema-direita. Friedrich Merz acaba de rasgar o cordão sanitário que tem 80 anos (…) para ter ganhos políticos mesquinhos.” O principal visado tentou defender-se nos últimos dias e, além de manifestar a sua disponibilidade para ouvir os sociais-democratas do SPD, os liberais do FDP e os Verdes, insiste na importância de alcançar maiorias parlamentares: “Não estou disposto a deixar uma minoria dissuadir-me de votar sobre algo que é justo. A nossa proposta é correta e necessária.”
TRUMP ALEMÃO
Um estudo de opinião da ZDF, a TV pública, indica que os alemães estão completamente divididos sobre o que aconteceu no Bundestag, embora dois terços se oponham a acordos de regime que incluam a AfD, por considerarem esta organização um perigo para democracia (41% consideram que deveria ser ilegalizada). Um reflexo disto mesmo aconteceu no último fim de semana, com centenas de manifestações nas principais cidades do país, em que se alertou para a “abertura das portas do Inferno” e para a urgência de não se cometerem erros semelhantes aos do passado, como o colapso da República de Weimar e a ascensão dos nacionais-socialistas ao poder, em 1933. Só em Berlim, no domingo, 2, organizou-se uma marcha sob o lema Despertar da Gente Decente. Nós Somos o Cordão Sanitário, em que terão participado 160 mil pessoas (segundo a polícia), muitas delas aos gritos de “Não permitiremos que Merz seja o Trump alemão!”, “Os fascistas serão sempre fascistas” ou “Não à normalização da AfD”. Os protestos na capital decorreram entre o Reichstag, o histórico edifício do Parlamento junto ao rio Spree, e a sede da CDU, a Konrad-Adenauer-Haus.
Qual o efeito deste ambiente no resultado eleitoral deste mês é a grande incógnita. Para já, todas as sondagens apontam para uma vitória dos cristãos-democratas, na ordem dos 30%, menos três do que as estimativas em novembro, quando se começou a dissolver a coligação liderada pelo social-democrata Olaf Scholz (que é novamente candidato a chanceler e tem fortes hipóteses de ser chamado para uma futura geringonça liderada por Merz). Quanto a Alice Weidel, cuja popularidade quase duplica a dos seus rivais diretos, surge num destacado segundo lugar, com 21%, com alguns analistas a acreditarem que ela pode ainda surpreender. É o caso de Max Krahé, diretor do centro de reflexão financeiro Dezernat Zukunft. Num artigo que escreveu para o Le Monde, este economista põe a hipótese de ser ela a grande beneficiada com o fim do wirtschaftswunder – o chamado “milagre económico” alemão: “A estagnação é mais do que uma mera estatística. É um verdadeiro veneno para a imagem que a Alemanha tem de si própria e uma ameaça para a identidade coletiva. Há o risco de as conceções reacionárias se propagarem. A extrema-direita pode muito bem atingir os 25% nas eleições de 23 de fevereiro. Que fazer? Como numa crise de quarentena, é essencial proceder a um diagnóstico honesto. É um processo doloroso que implica reconhecer erros passados e ajustar as expectativas à realidade. (…) É essencial que se realize um verdadeiro debate sobre o modelo de crescimento da Alemanha.”
PAXÁ GIGANTE
Com o país politicamente paralisado e sem Orçamento do Estado, a antiga locomotiva da Europa está há dois anos em recessão e o ainda vice-chanceler Robert Habeck, que tutela os assuntos económicos e da transição energética, já admitiu que o próximo executivo tem enormes desafios pela frente. O também cabeça de lista dos Verdes anunciou na passada semana que a situação é “grave” e que as perspetivas de crescimento do PIB para o presente ano foram revistas em baixa – de 1,1% para 0,3%. Neste momento, a Alemanha tem o pior desempenho do G7, as sete maiores economias do planeta, e as causas desta “estagnação estrutural” são conhecidas: quebra brutal da produção industrial, custos elevados da energia (agravados pelo conflito ucraniano e pelo fim do abastecimento de gás natural russo), perda de competitividade face à concorrência chinesa, em particular no setor automóvel, e crescente falta de mão de obra em áreas críticas, da saúde à tecnologia. Motivos de sobra para Michael Grömling, do instituto IW, com sede em Colónia, dizer que a Alemanha se encontra em “terreno desconhecido” e que tudo pode piorar com uma guerra comercial global, caso a Administração Trump cumpra as ameaças de impor tarifas aos produtos germânicos e da União Europeia. Monika Schnitzer, a presidente do prestigiado comité de (cinco) sábios que apresentam recomendações económicas ao Parlamento e ao governo de Berlim, está inteiramente de acordo. E, numa entrevista recente ao Le Monde, vai mais longe: “Em matéria de segurança, durante décadas, creio que fomos demasiado ingénuos e confiantes por acreditarmos que a poderíamos confiar aos americanos. (…) Agora não temos escolha. Se queremos ser soberanos nas nossas decisões e não depender de Washington, temos de desenvolver as nossas próprias forças.” A professora da Universidade Luis Maximiliano de Munique, sem se comprometer, está a dizer algo parecido com o que promete o homem que gosta de soletrar o seu apelido (Merz) para não haver confusões com o mês de março (märz). O líder da CDU quer que o seu país seja uma “potência média de primeiro plano” e contribua para uma “Europa soberana”. Como pretende fazê-lo ainda não se sabe porque o seu programa eleitoral promete, por exemplo, “apoiar a Ucrânia com todos os recursos diplomáticos, financeiros e humanitários necessários”, sem esclarecer se o país invadido pela Rússia em fevereiro de 2022 conta com o apoio de Berlim para entrar na UE ou na NATO.

Friedrich Merz já disse várias vezes que, com ele no poder, haverá “ruturas estruturais – epochenbruch – e não uma simples “viragem política” (zeitenwende), como a que anunciou Olaf Scholz após as tropas russas entrarem em Kiev, com um investimento de 100 mil milhões de euros nas Forças Armadas alemãs. O gigante democrata-cristão (tem 1,98 m) apresenta-se nestas eleições como um falcão em política externa e já garantiu que não será um “chanceler da paz” como Scholz. Quais as implicações desta postura? “Os europeus têm de construir um mercado de produtos militares suficientemente forte para reduzir a nossa dependência” [entenda-se dos EUA]. Uma frase batida que a maioria dos líderes da UE subscreve. Os detratores deste jurista católico que foi eurodeputado, deputado e administrador de 16 grandes empresas (BlackRock incluída, a multinacional que gere ativos superiores a dez biliões de euros e cujos interesses já se estendem à futura reconstrução da Ucrânia) não vão dar-lhe descanso. Quanto mais não seja porque Friedrich Merz é um poço de contradições equiparável a Alice Weidel. Filho e neto de nazis, acusam-no de ser arrogante, implacável, ambicioso e desbocado. Não é de estranhar. Este conservador já comparou a homossexualidade com a pedofilia, já acusou os refugiados de guerra ucranianos de serem “turistas das ajudas sociais” e já afirmou que os imigrantes em geral se comportam como “pequenos paxás” que merecem ser deportados para países como o Ruanda. No final de novembro, a Economist escreveu que a Alemanha iria “virar à direita”. Veremos até que ponto Friedrich Merz – ou Alice Weidel – lhe dará razão.