No dia 21 de fevereiro de 1925, quando o primeiro número da The New Yorker chegou às bancas, ninguém seria capaz de imaginar que, um século depois, a revista, que pretendia ser um misto de humor, reportagem, ficção literária e crítica cultural, seria incensada como uma das publicações periódicas mais influentes do planeta. A verdade é que, como acontece com certos vinhos – bem como com algumas pessoas –, a publicação fundada por Harold Ross, em plenos “loucos anos 20”, com o objetivo de ser “um reflexo em palavras e imagens” da vida de Nova Iorque, foi melhorando com a idade.
Mas os tempos iniciais não foram nada fáceis. As primeiras edições venderam muito menos do que era a expetativa de Harold Ross, o filho de mineiro e de uma professora, do Colorado, que o atual diretor da The New Yorker, David Remnick, diz que podia ter saído das páginas de Mark Twain: fugiu de casa aos 14 anos, trabalhou numa série de jornais de que hoje ninguém recorda o nome, durante a I Guerra Mundial, esteve na Europa a descrever as batalhas de trincheiras para a Stars & Stripes, a publicação oficial do Exército dos EUA. Chegado a Nova Iorque, casou-se com Jane Grant, jornalista no The New York Times, que, embora o considerasse o “homem mais feio que já tinha conhecido”, estabeleceu com ele uma parceria, no trabalho e na vida, que marcou a imprensa americana.
A ideia da nova revista começou a germinar em longas noites de música e de jogo, em alguns dos locais mais vibrantes de Manhattan, depois de Ross ter pensado em lançar uma publicação sobre transporte marítimo ou, em alternativa, dedicar-se à edição de uma coleção de livros de bolso.

O dilema foi desbloqueado depois de, por sugestão da mulher, Ross ter conseguido convencer o milionário Raoul Fleischmann, herdeiro de um industrial da panificação, a investir 25 mil dólares na criação de uma revista de “humor e ilustrações”, após uma noitada de póquer e de muitos copos no Algonquin Hotel. O ambiente era propício à aposta: viviam-se anos de ouro na imprensa dos EUA, com mais de 2100 jornais a serem publicados, que tinham uma circulação conjunta próxima dos 40 milhões de leitores. Era a época em que se começava também a apostar em revistas semanais: o primeiro número da Vanity Fair saiu em 1913, a Time foi fundada em 1923 e, no início de 2025, foi a vez da The New Yorker – que Harold Ross, num prospeto para angariar anunciantes, prometia ser uma mistura de “alegria, sagacidade e sátira”. Só que esse era um equilíbrio difícil, e a “fórmula” da revista foi, também, difícil de encontrar.
“Não tenho orgulho nas primeiras edições”, admitiu Jane Grant, no seu livro de memórias publicado em 1968. “Esperávamos que fosse um êxito imediato, tanto em vendas como em termos literários, mas nada disso aconteceu”, lastimou. Ao fim de poucos meses, a revista esteve quase para ser suspensa, durante o verão, período em que havia menos anunciantes. Só que, aos poucos, com muita perseverança e um novo investimento de Fleischmann, a revista conseguiu encontrar o seu caminho, abandonando o estilo jocoso presente na maioria dos textos, e apostando antes numa escrita mais elegante, mas sempre incisiva, procurando encontrar ângulos novos e desconhecidos sobre a vida em Nova Iorque. Prova disso, é o título do ensaio que marcou o ponto de viragem: Porque vamos aos cabarés. O artigo era assinado por Ellin Mackay, uma socialite que viria a casar com o compositor Irving Berlin, e causou um enorme impacto, ao abordar várias questões polémicas para a época, como a preferência dos jovens das classes mais abastadas por se irem divertir em casas noturnas de alegada má fama, e o que isso significava para a libertação das mulheres e sobre a mistura entre “alta” e “baixa” sociedade. “As vendas dispararam”, recorda David Remnick, ao contar a história da revista. “A The New Yorker estava no mercado.”
Humor e rigor
O jornalismo sofisticado e as ilustrações humorísticas criaram uma mistura única, ao longo de anos, na revista. No entanto, sob a direção de Harold Ross, a política era considerada um tema “aborrecido”, que não merecia grande destaque. “Vamos deixar as outras revistas serem importantes”, terá ele proferido, segundo um dos seus biógrafos.
Essa postura começou a mudar com o eclodir da II Guerra Mundial, quando a The New Yorker começou a publicar trabalhos de grande impacto, e de irrepreensível elegância jornalística, sobre o que se estava a passar no mundo, desde os bombardeamentos sobre Londres até ao célebre relato de John Hersey acerca da vida de seis sobreviventes de Hiroxima (o mesmo autor que, anos antes, deu a conhecer aos americanos, nas páginas da revista, os atos de heroísmo praticados pelo então jovem tenente John F. Kennedy nos combates contra os japoneses no Pacífico Sul, que ajudaram a formar a lenda com que, anos mais tarde, conquistou a Casa Branca).
Nesses tempos, embora Harold Ross continuasse a ser o diretor, o comando da revista já estava muito nas mãos de William Shawn, que lhe sucedeu em 1951, após a morte do fundador ‒ vítima, segundo Redmick, de “uma dieta de excesso de trabalho e de nicotina”. A passagem de testemunho foi, por isso, pacífica. E a The New Yorker tinha já consolidado a fórmula aprimorada ao longo das primeiras duas décadas de existência: uma mistura de humor, arte, reportagens profundas, críticas, poesia e ficção, bem como uma extrema devoção ao rigor e à clareza.
A fórmula da The New Yorker, quando enunciada por aqueles princípios, pode até parecer fácil – mas é de uma extrema dificuldade. E se um dos pilares do seu êxito reside no facto de conseguir chamar para as suas páginas alguns dos maiores talentos do jornalismo, da literatura e da ilustração, a verdade é que a revista tem-se distinguido por algo absolutamente único, e que tem estado, desde há um século, impregnado na sua “máquina”: uma postura obsessiva com o rigor das informações que publica.
Factos a todo o custo
Essa obsessão pela veracidade dos factos era um dos mandamentos iniciais do casal Harold Ross e Jane Grant. Até porque, nos primórdios da revista, as regras sobre difamação ainda não estavam estabelecidas na legislação americana e, por tudo e por nada, era fácil alguém pôr uma ação em tribunal contra uma publicação, só porque não tinha gostado da forma como fora retratado.
Logo em dezembro de 1926, ainda antes de completar o seu segundo ano de história, a revista foi objeto de uma queixa por difamação por razões que, aos olhos de hoje, só apetecem fazer soltar uma gargalhada: o arquiteto responsável pelo emblemático Edifício Delmonico, na 5.ª Avenida, não gostou que o autor de uma crítica de arquitetura – uma secção muito popular nesses tempos – tivesse escrito que o prédio ostentava um “design defeituoso” e não possuía “as proporções adequadas”. O caso acabou por se resolver de forma civilizada, mas obrigou ao início de uma relação duradoura da revista com uma sociedade de advogados.
Fazenda no “Olimpo dos ilustradores”
João Fazenda – que durante anos assinou, na VISÃO, as ilustrações das crónicas de Ricardo Araújo Pereira – é, desde há sete anos, o autor dos desenhos da secção Talk of the Town, que abre cada edição da revista. Com as personagens e os temas do momento, desde Donald Trump aos incêndios na Califórnia, passando por Taylor Swift e a revolução na Síria.

Em 1927, no entanto, os editores da The New Yorker perceberam depressa que para se ser rigoroso é preciso muito mais do que atenção ou até uma infinita boa vontade. Nesse ano, a revista publicou um perfil, sobre uma poetisa, que começava da seguinte forma: “O pai de Edna Millay era um estivador no cais de Rockland, Maine.” Parecia um início prometedor para o texto que pretendia traçar o retrato daquela que a revista considerava ser, então, a “primeira estrela americana”. O problema é que o pai de Edna Millay nunca tinha sido estivador. Era, simplesmente, um professor que, a partir de certa altura da sua vida, se tinha transformado em agente de seguros.
Este tipo de imprecisões foi quase completamente eliminado, desde então, com a criação de um departamento de verificação de factos na revista. Os fact-checkers da The New Yorker tornaram-se, a partir dessa altura, um dos alicerces da publicação, deixando a sua marca em todas as páginas. Antes de ser publicado, qualquer artigo tem de passar por uma revisão completa, de forma que aquilo que transmite seja “preciso, equilibrado, justo e completo quanto possível”, segundo a definição de Fergus McIntosh, que dirige atualmente o departamento, com cerca de três dezenas de profissionais.
Ninguém escapa ao exame dos fact-checkers. Mesmo os autores mais consagrados sabem que têm de entregar os contactos de todas as fontes que citam, para que os verificadores de factos, caso considerem necessários, os contactem para confirmar as informações ou até a veracidade de uma frase. E também sabem que o artigo não sairá se não concordarem com as alterações que lhes forem propostas. Como também podem ser “convidados” a acrescentar mais pormenores, para fundamentarem uma conclusão.
O fact-checking é feito aos artigos principais, mas também às críticas de cultura ou de restaurantes, aos poemas e até às ilustrações, como bem sabe o português João Fazenda que há sete anos é um colaborador permanente da revista, assinando os desenhos de uma das suas secções mais emblemáticas: a Talk of the Town.
“Já me aconteceu ter de mudar o estilo das letras que desenhei na t-shirt de uma personalidade, porque os fact-checkers consideravam que a minha ilustração não estava factual”, diz João Fazenda, que não esconde o seu fascínio e admiração por essa obsessão dos editores da revista com a veracidade e o rigor. “Para desenhar as personagens de cada edição, recebo muitas vezes os artigos ainda com as anotações dos editores”, adianta. “E é impressionante ver a forma como eles vão a fundo em todos os pormenores, fazendo emendas, pedindo mais pormenores, alterando datas ou até a grafia de certos nomes. E, tantas vezes, estas emendas são feitas em artigos assinados por alguns dos autores mais ilustres da revista”, sublinha.
Olimpo da ilustração
A forma como João Fazenda foi “recrutado” pela publicação é, por si só, reveladora do grau de exigência da The New Yorker. “Primeiro, fui contactado por uma das várias diretoras de arte, que me pediu para eu lhe enviar algumas ilustrações, porque ela estava a pensar fazer alterações no desenho da revista”, conta. “Passados uns dois meses, ela voltou a contactar-me a dizer que os outros editores tinham ficado contentes com o meu estilo, mas que precisavam de saber como é que eu iria trabalhar sob pressão. Estive, então, uma semana a trabalhar com eles, como se fosse a sério, mas sem que nenhum dos meus desenhos fosse publicado.”
Sempre à distância, acabou por ser informado, semanas depois, que tinha sido aprovado. E, desde há sete anos, a sua rotina semanal mudou e tem, no mínimo, três dias intensos a trabalhar com os editores de Nova Iorque, como se não existisse diferença de fusos horários: “Eles enviam-me os textos ou, quando ainda não estão prontos, dão-me informações sobre o contexto em que cada personagem precisa de ser representada. Depois, envio dois a três esboços para cada, eles escolhem o que pretendem e, a partir daí, trabalho na versão final.”
O grau de exigência é sempre máximo. E as dificuldades são variadas. “Muitas vezes, tenho de fazer pesquisa sobre as personagens”, explica. “Até porque, por vezes, são pessoas de Nova Iorque que precisam de ser retratadas em certos locais da cidade. Acho que já percorri todas as ruas de Manhattan no Google Maps só para poder fazer as ilustrações o mais rigorosas possível.”
Capas portuguesas
O ilustrador, fotógrafo e designer gráfico Jorge Colombo, a residir nos EUA há vários anos, foi o autor de algumas das capas mais emblemáticas da longa história da The New Yorker. Com uma particularidade: em 2009, ele fez a primeira capa da revista desenhada inteiramente num iPhone.

“O mais interessante é que, mesmo à distância, acabo por participar na história americana e na vida de Nova Iorque”, diz João Fazenda, não escondendo a sua alegria por ver o alcance que as suas ilustrações ganham. “Quando foi da morte do George Floyd e do movimento Black Lives Matter percebi como algumas das minhas ilustrações ganham vida própria, e saltaram das páginas da revista para outros suportes.”
“A The New Yorker é o Olimpo dos ilustradores e poder trabalhar na revista é, para mim, a concretização de um sonho antigo”, afirma Fazenda, que destaca ainda o profissionalismo da revista, que celebra agora o seu centenário: “Percebe-se, em todos os pormenores, que tem uma direção editorial bem definida, na forma como discutem todos os pormenores e ângulos. Mas depois também dão uma liberdade criativa absoluta. Basta ver as suas capas, sempre feitas com uma ilustração que vale por si, pois não ilustra nenhum artigo que esteja no interior.”
Novos desafios
Ao longo dos últimos 100 anos, a The New Yorker conseguiu atrair para as suas páginas alguns dos mais ilustres autores mundiais. Obras marcantes como A Sangue-Frio, de Truman Capote, e A Banalidade do Mal, de Hannah Arendt, tiveram as suas primeiras versões nas páginas da revista, que acolheu ainda artigos assinados por figuras como E. B. White , J. D. Salinger , John Updike , Alice Munro , Woody Allen, John McPhee e Milan Kundera, entre tantos outros.
Atualmente, a revista é propriedade da outrora poderosa editora Condé Nast, que tem lutado nos últimos anos para manter o negócio ativo, apesar da fuga da publicidade para as grandes plataformas tecnológicas.
Com 1,2 milhões de assinantes, a The New Yorker é, juntamente com a Vogue, uma das joias da coroa da empresa, que já foi a maior editora de revistas do planeta. Apesar disso, a revista não foi poupada aos vários cortes de custos impostos pela administração. Mas está a aproveitar a celebração do seu centenário para reforçar a sua posição singular no panorama mediático global. Ao longo do ano, vai publicar várias edições especiais de aniversário, bem como diversos livros com os melhores textos publicados, além de exposições com as ilustrações mais marcantes. Isto, num momento particularmente difícil para os órgãos de comunicação social americanos, depois de Donald Trump ter prometido que iria “endireitar” a Imprensa, à sua maneira. Em resposta, o homem que dirige a The New Yorker há mais de três décadas, David Remnick, quis lançar uma mensagem de tranquilidade aos seus leitores: “Não nos vergaremos à vontade do governo, seja ele qual for.”
Em entrevista à CBC, do Canadá, Remnick garantiu que a The New Yorker vai continuar fiel à sua história: “A nossa missão é a de escrever artigos elegantes, claros e factuais, que possam fazer a diferença. E quero acreditar que continuam a existir pessoas no mundo que querem ter informação mais profunda sobre a vida e o mundo à sua volta.” Mesmo em tempos de penumbra nos EUA, pode sempre existir uma luz de esperança em Nova Iorque – com uma elegância centenária.