A sua obra tem alternado entre a ficção – mas sempre com um pé em realidades históricas – e os ensaios. O percurso de vida de Amin Maalouf, nascido em 1949, em Beirute, Líbano, presta-se bem a essas duas vertentes. Quando era criança passou muito tempo no Egito, com os pais, num momento esse país, e a região do Levante, brilhavam entre o cosmopolitismo e a diversidade multicultural e os movimentos de afirmação nacionalistas, patrióticos e libertadores em relação aos velhos impérios europeus. Foi acumulando muitas histórias e História viva. Há meio século foi viver para Paris, onde ainda hoje vive. Começou por se dedicar ao jornalismo, foi editor da revista Jeune Afrique, mas desde cedo sentiu o apelo da literatura e de abordagens mais aprofundadas à História. Notabilizou-se, em 1983, com aquela que é, ainda hoje, uma das suas obras mais conhecidas e que pôs muitos europeus a olharem para si próprios de um ponto de vista a que não estavam habituados: As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Entre os romances, destaquem-se, por exemplo, Leão, o Africano (1986), Samarcanda (de 1988), O Rochedo de Tanios (1993, que lhe valeu o Prémio Goncourt) ou o mais recente A Odisseia de Baldassare (2020).
Com O Naufrágio das Civilizações (2019) fez, ao mesmo tempo, uma autobiografia dos seus primeiros anos e uma apaixonante análise a um mundo em mudança acelerada, visto sobretudo a partir do “universo levantino”. Começava assim: “Nasci saudável nos braços de uma civilização moribunda e, ao longo de toda a minha existência, tive a sensação de sobreviver, sem mérito nem culpabilidade, enquanto tantas coisas, à minha volta, se transformavam em ruínas.(…) Foi este o meu triste privilégio, desde o primeiro suspiro.”
Amin Maalouf esteve no passado fim de semana em Lisboa para participar no festival literário 5L. Encontrámo-lo numa das enormes salas do hub criativo do Beato. Por vezes, fizemos-lhe perguntas sobre o mundo como se estivéssemos perante um oráculo. Mas ficámos a pensar numa frase, escrita por Bertrand Russell em 1933, muito partilhada nas redes sociais por estes dias: “No mundo moderno, os estúpidos estão cheios de certezas, enquanto que os inteligentes estão cheios de dúvidas.”

Abre o epílogo d’O Naufrágio das Civilizações, de 2019, com uma citação de Pedro Calderón: “O pior nem sempre é certo.” E esforça-se por fechar o livro com algum otimismo. Hoje, seis anos depois, tê-lo-ia feito de outra maneira?
Não me considero um pessimista. Mas sinto que neste momento o mundo pode ir na direção do melhor ou do pior. É difícil de prever. Há muito tempo que se fala de aceleração tecnológica, mas neste momento vivemos uma aceleração da técnica e da ciência inédita, ainda mais intensa, difícil de acompanhar, talvez incontrolável. Mesmo quem trabalha nessas áreas e está implicado nessa aceleração não consegue perceber bem para onde tudo se encaminha, o que vem a seguir…
O caso da Inteligência Artificial,por exemplo…
Exatamente. Estamos num momento da História em que tanto podemos conseguir feitos notáveis como ir na direção de um grande desastre… Temos que perceber onde estamos e tentar evitar esse último caminho. Julgo que escreveria esse epílogo da mesma maneira, acreditando que o pior possível não é uma certeza. Há muitas coisas inquietantes, é verdade, mas as novas tecnologias abrem possibilidades de resolver problemas e desenvolver o mundo de formas novas, que nunca experimentámos. Hoje, há, por exemplo, uma difusão do conhecimento impressionante. A partir do nosso quarto conseguimos aceder a todos os saberes do universo… Acho que podemos imaginar um mundo que encontra uma forma de reconciliação, apesar das difíceis situações atuais. É possível.
A metáfora do Titanic e do naufrágio que usa nesse livro já é, por si, bastante assustadora…
Estamos próximos do iceberg, mas ainda é possível evitar o pior. Uma questão urgente que se coloca agora é que assistimos a um esgotamento da ordem mundial que conhecíamos. Conseguiremos reconstruir uma nova ordem mundial?
Na sua obra e pensamento há sempre a ideia de que a diversidade, o cruzamento de culturas e identidades diferentes, é uma energia muito positiva de desenvolvimento. Hoje isso não parece claro para todos… E nas eleições vemos muita gente com medo precisamente do “outro”, dessa diversidade.
A diversidade é positiva se a soubermos gerir. Se não soubermos pode tornar-se um problema, pode ser destrutiva. E é difícil tratar das relações entre pessoas e comunidades de origens diferentes. Infelizmente, não conheço muitos casos no mundo de grande sucesso quanto a isso
Fala do caso de Mandela, na África do Sul, como um bom exemplo…
Sim. A atitude pessoal de Nelson Mandela foi um bom exemplo dessa defesa prática da diversidade, o que não quer dizer que a África do Sul se tenha tornado num país idílico nessa matéria. Não vejo, nem no hemisfério sul nem no hemisfério norte, hoje, lugares onde essa questão seja bem gerida, com eficácia.
Isso não quererá dizer que, afinal, essa grande diversidade nos põe, sobretudo, problemas?
É difícil de gerir… A marcha do mundo levou-nos para aqui, para uma sociedade fundamentalmente diversa, um pouco por todo o planeta, ou seja: não podemos escolher se queremos ou não essa diversidade, ela existe, está aí. O que precisamos é de a gerir de forma a que se preservem os valores essenciais e o progresso da sociedade.
O medo do “outro” condiciona muito, atualmente, esse progresso, sobretudo devido aos grandes fluxos de migrações
Se existe mesmo medo, ele não pode ser desvalorizado. É preciso ouvir as pessoas que dizem que têm medo, tentar entender as suas razões. O que não se deve mesmo fazer é dizer-lhes: “Não há razão nenhuma para sentires medo, és um xenófobo, um racista…”. Se uma comunidade sente medo é preciso fazer um esforço para compreender esse medo.
Esse medo pode levar, nas democracias, os eleitores a votarem em forças que se opõem, de facto, à diversidade, e que até podem ser mesmo xenófobas. Isso não é um problema?
Sim, é um problema dos nossos dias.
A ideia do protecionismo, que parece ter regressado em força com Trump na presidência dos EUA, será uma tendência duradoura para os próximos tempos, em oposição a um mundo globalizado?
Não consigo ter certezas nessa matéria. Mas julgo que esse é um movimento contracorrente na História e que dificilmente pode impor-se. Parece-me extremamente improvável, e difícil, haver um recuo na globalização. Até porque a força e o poder dos EUA vem, sobretudo, desse movimento, de que eles foram, em boa parte, criadores. A ideia de que ele podem ser ainda mais poderosos optando pelo caminho do protecionismo parece-me irrealista e até paradoxal. Não sendo especialista na matéria, não me parece que essa seja a direção em que vamos avançar nos próximos tempos…
Falando de Trump. Como escritor, parece-lhe uma boa personagem de ficção, apesar de ser bem real?
Totalmente. Podemos imaginar na ficção uma personagem que, rapidamente, muda a realidade no mundo inteiro. Mas é muito raro que isso aconteça na vida real… E, de algum modo, estamos a assistir a isso. Um mundo distorcido em relação ao que era antes de Trump ter chegado de novo ao poder. Meramente como observador é fascinante assistir a tudo isto, independentemente de simpatizarmos ou não com a personagem. Mas ainda estamos demasiado próximos do que está a acontecer para conseguirmos antecipar o que significará Trump daqui a 20 anos. Será uma espécie de parênteses estranho na História? Ou o início de algo realmente novo e marcante no mundo? É muito difícil fazer esse exercício agora… Houve casos parecidos, com impacto por muitos anos, que ainda sentimos: Thatcher, em Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA… Donald Trump será alguém com esse poder? Não sei. Para alguém que tem a minha visão do mundo, não é, certamente, uma personagem a que eu adira espontaneamente. Muitas coisas que ele faz e diz são estranhas para mim… E devo dizer que das duas vezes em que ele se candidatou à Casa Branca, dois meses antes das eleições, em 2016 e 2024, eu estava convencido de que ele não iria ganhar. Só uns dias antes é que senti que isso era possível… Ainda vamos perceber se este aumento do populismo na Europa, e noutros países, como a Argentina, se vai instalar mesmo como uma tendência mundial, com grandes mudanças associadas, ou se é como um momento febre súbita, que vai baixar rapidamente. Poderá ser visto como o tal parênteses na História que vamos esquecer mais ou menos rapidamente…

Outra personagem que marca fortemente o nosso tempo é Benjamin Netanyahu, que tanto é visto como um criminoso ou como um pragmático, cumprindo os objetivos de Israel. Como olha para ele?
Não me parece comparável a Trump, como fenómeno que, a partir dos EUA, deixa uma marca no mundo de hoje. Netanyahu está há muito no poder em Israel, é o governante que liderou o país durante mais tempo, mais ainda que os históricos, como Ben-Gurion… O que é novo ali, neste momento, é o poder militar de Israel, extremamente forte. Eu que nasci nessa região [no Líbano] nunca assisti a isso. Neste momento intervém no Líbano, na Síria, no Iémen, às vezes no Irão e no Iraque. Com a ajuda dos EUA, claro… Netanyahu tem uma oposição interna muito forte, que aumentou com o modo como lidou com a questão dos reféns raptados pelo Hamas, mas ao mesmo tempo parece ter um grande apoio no modo como lida com os países vizinhos. Chega a ser paradoxal… Às vezes parece que vai cair de um dia para o outro, mas logo a seguir surge como a figura mais forte e poderosa daquela região.
Acha que Israel está em risco de sobrevivência nas próximas décadas? A narrativa israelita para justificar o seu poderio bélico e as suas ações militares passa por aí, como se estivesse sempre em causa a sua existência…
Não sinto que Israel esteja ameaçado a esse ponto. É, aliás, uma grande potência regional e mundial. Num futuro próximo não vejo essa ameaça existencial, mas talvez a longo prazo essa questão se possa pôr.
E o seu Líbano? Vai lá muitas vezes?
Não, não tenho ido… Poderia ir, mas não tenho essa necessidade. Começa a sair da sua crise profunda, as coisas estão a melhorar um pouco. Sinto alguma nostalgia do Líbano que conheci, mas não tenho ilusões, sei que não vai voltar ao mesmo nível de coexistência de comunidades, cosmopolitismo e de prosperidade que já teve. A violência vai imperar naquela região tumultuosa durante anos, décadas. Todas essas cidades do Levante, Alexandria, o Cairo, Beirute já não são cosmopolitas como um dia foram. Hoje as cidades cosmopolitas, nesse sentido, são Marselha, Londres, Lisboa…
Falando da União Europeia, a realidade onde vive. Sente que há o risco de colapsar quando se veem tantos partidos antieuropeístas a ganharem força em eleições?
Essa é uma questão que me preocupa muito. E sinto que, também neste caso, há vários caminhos possíveis. Há a grande oportunidade, agora, de a União Europeia se afirmar, se fortalecer. Mas também há o risco de se fragilizar, com a afirmação desses partidos populistas… São duas forças que se desenvolvem em paralelo por estes dias. Tenho esperança de que a União Europeia ganhe consciência do seu lugar e papel no mundo, do nível de vida que conseguiu proporcionar, e que isso leve a uma maior integração.
Não parece ser isso que está a acontecer neste momento…
Eu defendo mesmo o federalismo, uma federação parecida à dos EUA.
A 27?
Com a maioria… Hoje parece uma utopia, eu sei, mas olhando para os outros cenários possíveis, parece-me uma utopia possível de concretizar e desejável. E julgo que o mundo precisa desta força, desta união na Europa.
Em França, e antes dessa utopia se concretizar, vamos chegar a ver o Rassemblement National [antes Front National, o partido de Le Pen] no poder?
É uma possibilidade… Se me fizer essa questão um mês antes das eleições de 2027 penso que darei a mesma resposta que hoje. Vai ser uma decisão nos últimos momentos… Seja com Marine le Pen ou com Bardella, julgo que o resultado do partido não estará muito longe de 50% dos votos.
Essa divisão de eleitorado não parece muito promissora para uma Europa forte…
É muito importante que nos próximos tempos se faça uma reflexão a sério sobre o papel da Europa, em todos os países europeus.
Inglaterra também?
Neste momento tanto parece que se aproxima da América de Trump como, logo a seguir, parece que está arrependida de se ter afastado da União Europeia… São, talvez, só peripécias destes momentos que vivemos, mas julgo que esse movimento de reflexão europeu poderá incluir a Inglaterra. Devia-se ter feito tudo para evitar o Brexit. Em vez de encolhermos os ombros e termos aceitado facilmente que eles poderiam deixar a União Europeia, devíamos ter ouvido com atenção as suas recriminações, as suas razões. É um país com uma grande tradição democrática. Julgo que a UE devia ter tentado perceber o que nos levou a essa situação e tentar pensar em soluções, em vez de dizer simplesmente “ah, é o populismo…”.
Como observador tão atento do mundo, e ligado a vários contextos geográficos, nunca teve a tentação de seguir uma carreira política?
Não, de modo nenhum. Sinto-me muito mais à vontade no papel de observador. Não me vejo a envolver-me num combate em particular, e até receio que isso toldasse a minha objetividade. O meu temperamento é mesmo o de observar e escrever… No Líbano pertencia a uma comunidade muito restrita, muito pequena [greco-católicos melquitas]; quando cheguei a França era um emigrante sem nenhumas ambições políticas. Escolhi a literatura…
E o jornalismo. Que hoje parece estar tão frágil…
O papel dos jornalistas é extremamente importante hoje, e faz-se muito bom jornalismo. É fundamental organizar a informação no meio de tanto ruído do mundo, distinguir o verdadeiro do falso, o que é credível e não é, o que é importante e não é. Estamos claramente num período de transição, entre velhos modelos e novos, também no jornalismo. Tenho ouvido, por exemplo, podcasts notáveis, muito interessantes. É um combate que deve ser feito, o de reconquistar espaço para o jornalismo de qualidade, que existe.
Labirintos

Os dois mais recentes ensaios de Amin Maalouf, ambos publicado em Portugal na Marcador (uma chancela da Presença). O Labirinto dos Perdidos, o Ocidente e os Seus Adversários (368 págs., €20,90), de 2023, e O Naufrágio das Civilizações (240 págs., €17,90), de 2019, procuram sinais de uma nova ordem mundial a partir da História





