Salvador da Bahia, cidade orgulhosa da sua identidade e das suas heranças, do Samba de Roda, dos primeiros Terreiros organizados, do Carnaval único e do Axé, é uma cidade marcada pela presença de uma largamente maioritária população negra.
Pelo Censos de 2022, 79,5% da população do estado da Bahia se autodeclarada como negra, marcando a afirmação que diz que Salvador é a cidade mais negra do mundo fora da África.
Mas o caminho da afirmação desta identidade não tem sido um caminho fácil, em que as heranças coloniais se prolongaram num Brasil independente que manteve o funcionamento de cariz senhorial, a que se juntou um regime e uma economia escravocrata que perdurou até 1888, tendo sido o último país do chamado Ocidente a abolir a escravatura.
As religiões afro-brasileiras, Candomblé e Umbanda, são as que mais sofrem com ataques à sua liberdade religiosa, imagem consolidada de uma sociedade que ao longo do século XX sempre remeteu estas tradições para as margens da sociedade, apesar de todo um esforço imenso de muitos artistas e músicos na desconstrução dos preconceitos.
Neste contexto, à cor da pele não corresponde uma presença social e cultural que tenha no espaço público uma correspondência proporcional. O Brasil vive hoje, fruto de políticas, por exemplo, de fomento da entrada de jovens negros nas universidades, um tempo de valorização das heranças pré-coloniais e africanas. As artes e a literatura são talvez os campos mais dinâmicos e mais inovadores neste processo de resgate de uma identidade que durante séculos foi roubada e, por quem a tinha, teve de ser escondida, adulterada, ajustada para ser minimamente tolerada.
Na música, já muito foi feito com o uso de muitos ritmos, especialmente, no samba, que são oriundos do Candomblé. Na literatura, há um fortíssimo grupo de autores que que reflete sobre a identidade negra, hoje, cruzando-a com todas as marcas e máculas que socialmente são irreparáveis, como, por exemplo, Conceição Evaristo (Veja-se: “Os “Becos da Memória” que nos traz Conceição Evaristo”).
Nas artes, no campo do visual, joga-se, talvez, a partida mais desafiante, uma vez que nos transporta para o nível da pele, o centro mais forte das identidades individuais, naquilo em que elas se cruzam com o coletivo.
Vestir uma roupa é vestir uma pele. É assumir, no quotidiano, na imagem que outros têm de nós, e na imagem que construímos de nós mesmos, um grupo, uma coesão, uma identidade e, no limite, uma luta. Uma roupa é, queiramos, ou não, quase uma farda. Vestir, é gritar, é afirmar.
Goya Lopes, artista baiana consagrada na área do têxtil, é o rosto mais sólido do trabalho lento que procura cerzir a investigação com a criatividade, dando material contemporâneo a quem queira beber no leite materno da cultura africana que construiu o Brasil.
É uma carreira de mais de meio século, que é homenageada no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) com a exposição “Okòtò: Espiral da Evolução”. Esta mostra individual apresenta obras variadas (pinturas e gravuras), mas é nos tecidos que especialmente nos transmite o espantoso trabalho de Goya como referência no design e na arte têxtil brasileira.
Segundo o Museu de Arte Moderna da Bahia, “o conceito de Okòtò, termo iorubá que representa a espiral da evolução, conduz a narrativa da exposição: A ideia de um movimento contínuo, que une passado, presente e futuro, que revela tanto a potência criativa da artista quanto o impacto de sua obra no imaginário coletivo.”
Goya Lopes tem um trabalho que é verdadeiramente de laboratório, nesse cruzar o tempo, o passado e o presente, construindo novas formas das gerações sentirem a sua ancestralidade. E, essa relação, não apenas com o passado, mas com aquilo que nos é anterior, e do qual vimos, a dita ancestralidade, é o caminho que hoje cada vez mais pessoas fazem no Brasil, procurando as suas raízes, sem perder o seu lugar no presente.
Não é uma equação fácil, tanto mais que, além do preconceito e do racismo, há ciclos inquebráveis de pobreza que não encontram, numa sociedade quase de castas, formas eficazes de criar ascensores sociais.
Mas Goya faz um dos trabalhos mais difíceis e mais complexos deste processo. Ela cria os tais materiais para a pele. Veste, inspirando muitos mais artistas, uma população cada vez mais vasta de gente que ostenta orgulhosamente, através da roupa, a sua identidade. É orgulho, sim. E é beleza.
Obrigado, Goya.
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