O Papa da esperança e da misericórdia, Francisco foi um homem que gostava genuinamente do contacto com as pessoas. Detinha-se para as escutar, enternecia-se com elas, sofria a sua dor, indignava-se com a sua marginalização, e para todos tinha palavras de alento. Tinha um olhar que via profundamente o ser individual de cada um, sem olhar aos seus defeitos. Era na fragilidade humana que reconhecia o rosto de Cristo e nos espaços das periferias que melhor encontrava os grandes desafios de transformação que o Evangelho coloca às sociedades desenvolvidas.

Mas o Papa Francisco foi também o Papa do sorriso e do humor. Na sua autobiografia refere-se justamente a um Deus que sorri, e encontra no humor qualidades verdadeiramente evangélicas. Ao contrário do ditado inglês que diz que “o diabo se encontra nos detalhes”, para o Papa Francisco é no pormenor que se manifesta Deus. E esse pormenor alarga-se do cuidado pelo outro ao ridículo de uma situação e, afinal, à alegria que dá sentido à vida. O olhar do Papa era um olhar de constante encantamento pela maravilha do mundo e pela diversidade das pessoas. Um episódio divertido que se passou comigo durante a Jornada Mundial da Juventude demonstra-o à abundância.

O dia era 3 de agosto, na Universidade Católica. Após uma sessão empolgante e emotiva, o Papa dirige-se para a saída e eu acompanho-o. O dia estava quente e, como é habitual na presença do Papa, vestia um fato preto discreto. Mas, apesar de tudo, era verão e o agosto de Lisboa é inclemente. Por isso, calçava umas sandálias coloridas, que cortavam a formalidade. Ao chegar ao carro, o Papa abre a janela e chama-me e, com aquele seu humor terno e desarmante, comenta com um sorriso: “Fiquei encantado por ver uma reitora com sapatos tão juvenis!” Quem estava à volta não pode conter o riso franco.

A frase, dita com leveza, carregava no fundo o espírito da JMJ: juventude, liberdade, autenticidade. E era também uma síntese perfeita do próprio Papa Francisco ‒ um homem que nunca deixou de se surpreender com o inusitado, que encontrava beleza onde outros veriam irreverência, e que valorizava mais o gesto espontâneo do que qualquer pose ensaiada. O Papa que elogia sandálias coloridas não fala de moda, mas de atenção ao outro e empatia. Diz talvez que há sempre espaço para a alegria e para o humor e que o Evangelho é também juventude do coração.

O Papa Francisco é amplamente reconhecido pela sua profunda sensibilidade humana e espiritual, mas algo igualmente importante é o seu apurado humanismo estético ‒ uma capacidade rara de perceber a beleza como uma via privilegiada para a verdade e a esperança. Para ele, o belo não era um luxo, mas uma necessidade da alma. Desde a sua juventude que Jorge Mario Bergoglio encontrava na literatura um refúgio e, mais ainda, um terreno fértil para cultivar a fé e desenvolver a empatia.

Inspirado por autores como Dostoievski, Borges e Hölderlin, o Papa Francisco via na palavra escrita não apenas uma forma de arte, mas uma ponte entre o humano e o divino. Mergulhava nos dramas, nas contradições e nas pequenas epifanias que os livros oferecem, como quem busca, nas entrelinhas, sinais de esperança. Porque o futuro tem de ser imaginado, como bem disse no seu discurso aos estudantes da Universidade Católica, e para tal o cultivo da ficção é determinante.

No fim das contas, as sandálias coloridas inspiram a caminhar com esperança. E o Papa Francisco sabia bem que a Igreja precisa disso ‒ de passos leves, coloridos e verdadeiros.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Talvez o Papa Francisco seja das poucas pessoas que mereceu um reconhecimento alargado em vida, porque somos sempre melhores no elogio póstumo do que no agradecimento aos vivos. Escrever este texto no momento da sua partida é, pois, este misto de tristeza pela perda e de enorme felicidade pelo seu contributo para um despertar das consciências e para um abrir continuado de portas de esperança numa Igreja que tantas vezes, ao longo da história, mesmo da mais recente, não quis olhar para fora e se calou perante o absurdo da exclusão.

Na sequência de um texto que escrevi a pedido do jornal Expresso nas primeiras horas da notícia da sua morte, tive duas conversas interessantes com bons amigos. Um, timidamente, sugeria que o Papa Francisco não foi assim tão diferente de outros e que eu elogiava por uma diferença hiperbolizada (marcada pelo meu lugar de observação à esquerda). Outro, mais abertamente, dizia que sim, que as suas palavras foram inspiradoras, mas que, na essência, nada se alterou e que são muitas as portas que continuam fechadas. Entusiasmante este Papa que não deixou ninguém indiferente! Uns porque o acharam de mais, outros porque o acharam de menos. Lembro-me de, no dia da sua eleição, ter sentido uma simpatia clara que começou na escolha do nome. Francisco, que assumi ser o de Assis, na sua relação com a natureza, enquanto criação, na escolha da simplicidade e na rejeição da pobreza como desígnio para os outros.

Agradecer ao Papa Francisco pela esperança com que alimentou os cristãos, católicos e não católicos, os de outros credos, os agnósticos e os ateus, é justo e necessário.

Justo, porque implica perceber a universalidade da sua mensagem e o regresso à essência do cristianismo, que, como já escrevi em livro, sinto traída por movimentos conservadores emergentes que, em nome de Deus, advogam a exclusão e a rejeição da diferença e da diversidade. Não será por acaso que foi entre os maiores populistas e sectaristas, dentro e fora da Igreja, que se quebrou a unanimidade da apreciação positiva. Aqui, em Portugal, foi o líder do partido de extrema-direita que afirmou que o Papa Francisco prestava um mau serviço ao cristianismo. E porquê? Por ser inequivocamente cristão.

Necessário, pela urgência e consciência das suas palavras, sempre pautadas pela coragem. Este Papa não teve medo e instou os jovens a não ter medo. Não teve medo de se posicionar ao lado dos ecologistas e ambientalistas e a instar à preservação do planeta, a tal “casa comum”. Não teve medo de combater o clericalismo que convida à exclusão da participação inscrita desde o Concílio Vaticano II, pisado mais ou menos explicitamente por alguns agentes valorizados pelos seus antecessores. Não teve medo de denunciar a iniquidade do capitalismo selvagem e de expor a matança promovida pela economia radicalmente neoliberal. Não teve medo de dizer que não é ninguém para julgar um homossexual. Não teve medo de expor o genocídio em curso em Gaza, de apelar à libertação de presos políticos. Não teve medo de apontar o dedo à crescente xenofobia e aos discursos anti-imigração. Não teve medo de chamar as mulheres para a governação da Igreja. Não teve medo de criticar severamente o populismo, a corrupção e os nacionalismos. Não teve medo de agir, com dureza, sem desistir e virar costas, perante os abusos sexuais praticados na Igreja. Não teve medo de reconhecer o valor de sacerdotes que tinham sido afastados por terem posições políticas e sociais mais próximas dos trabalhadores. Não teve, pois, medo de começar a construir uma Igreja que abriu as portas para entrarem mais lá para dentro porque se predispunha a sair de lá de dentro e, nas suas palavras, procurar as periferias. O caminho sinodal proposto terá sido uma expressão muito clara da sua coragem interna. Levar o debate e o questionamento para as bases, propor a interrogação, ouvir as comunidades, sem critérios apriorísticos e sem receio das conclusões.

Para alguns foi de menos, porque houve passos atrás quando parecia que se avançava. Uma abertura discursiva ao acolhimento das diferentes orientações sexuais não foi coerente com as suas afirmações, à porta fechada, que apontavam para a menorização dos homossexuais ou para o ataque à igualdade de género. A abertura às mulheres terá sido tímida na persistente recusa da abertura do diaconado e outras funções ao sexo feminino. A abertura sinodal terá sido barrada pela oposição ao caminho que está a ser trilhado na Alemanha. Entendo estas opiniões, mas contraponho-lhes a irritação causada – e até presente, de forma dissimulada, em textos e palavras de alguns por cá – pela coragem das suas palavras. O seu papel foi abrir portas, construir futuros com mais esperança, não ter medo de se posicionar, numa gestão de uma dificuldade que nenhum de nós consegue entrever.

Não hesito em dizer que o Papa Francisco foi radical, no sentido etimológico desta palavra. Atirou-se à raiz da mensagem cristã e ao caráter revolucionário da proposta de um amor incondicional. Foi à essência, repito, à raiz, de uma abertura universalista e rejeitou o moralismo que todos os dias continua a fechar portas. Colocou-se no papel do abraço que acolhe e longe do julgador e castigador. Foi mais Evangelho do que Antigo Testamento. E é por isso que, ainda que compreendendo tudo o que está por fazer, não acompanho a visão “de menos” e agradeço, continuadamente, a esperança que semeou de uma transformação futura, que poderá e deverá ser necessariamente inquietante e fraturante. Revolucionou pela palavra e pela consciência para que os processos se possam iniciar e continuar.

Recordo o dia em que tive a oportunidade de o cumprimentar pessoalmente aquando da sua vinda a Portugal, na Jornada Mundial da Juventude. Trocámos brevíssimas palavras sussurradas sobre um tema em particular. Mais do que me disse, houve um apertar do braço e da mão que se fez abraço e esperança. Um momento que nunca esquecerei.

Aos que nos revimos neste Papa inquieta-nos o futuro. Apesar de otimista, o estado do mundo aconselha cautela. À lufada de ar fresco de um Obama sucedeu-se um Trump inimigo da diversidade e da inclusão. Aos anos de paz da Europa sucedem-se guerras, nacionalismos e discursos xenófobos. Também ao Papa Francisco, de luz e esperança, podem seguir-se anos de escuridão e retrocesso. Tenho consciência de que há um caminho iniciado que pode ser travado. Mas as suas palavras ficarão para sempre. O seu legado ecoará na consciência coletiva e animará os que não desistem desta transformação.

Não posso terminar sem comentar a sua crença forte no valor da educação. Recordo um painel em que participei há uns anos no qual pude comentar como os seus escritos e palavras sobre educação, colocando-a como fator de construção de um mundo pautado pela justiça social e pela inclusão humanista, ecoam tantos valores fundamentais dos sistemas educativos nas sociedades verdadeiramente democráticas. Inspirado e inspirador, como sempre. E com um olhar de futuro e esperança.

Um legado que permanece em todos. Nas suas últimas mensagens, esteve com Gaza, com o fim da guerra comercial, com a libertação de prisioneiros políticos. Celebrou a Páscoa, porque a alegria da vida que se renova esteve sempre no seu sorriso. Acarinhou crianças, porque a simplicidade e a recusa da exuberância foi marca da sua coerência.

Aos que dizem que fez de menos, recordo a frase atribuída a São Francisco de Assis, cujo nome escolheu: “Comece por fazer o que é necessário, depois o que é possível, e de repente estará a fazer o impossível!”

Obrigado, Papa Francisco, por nos despertar para novos impossíveis.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Filhosdumagrandessíssima. Não, o que se segue não é sobre Trump nem Putin nem personagens portuguesas ou estrangeiras do género. Foi o que disse o Lituma, logo no início do Quem Matou Palomino Molero? Foram as palavrinhas que me ocorreram quando soube da morte dele. Nem sei bem porquê, talvez chateado com os deuses ou simplesmente por ser a primeira coisa que me ocorreu quando olhei para a estante onde estão os livros do Mario Vargas Llosa, o meu querido Varguitas.

Sei que não o trataria assim se tivesse tido a sorte de poder ter-lhe dirigido um bom-dia que fosse, mas para mim será sempre o Varguitas, o pouco mais do que adolescente escrevedor apaixonado pela tia Júlia.

Foi esse o primeiro romance que li dele, o que usei para que as mulheres que desejei me achassem piada, o que mais vezes serviu para mostrar a alguém que gostava dessa pessoa, o que obriguei os meus filhos a ler e, mais do que tudo, o que me fez entrar no seu mundo.

Olho para a lombada do livro, ali à esquerda do sítio onde estou agora a escrever e onde me sento todos os dias para trabalhar. Está no meio de todos os livros que tenho do Varguitas. É, creio eu, o terceiro autor de quem tenho mais livros.

Pois, não será o escritor de quem tenho mais livros, mas é ele que mais amo. Voltei atrás, cem vezes escrevi a última frase e outras tantas a apaguei. Fica assim porque é verdade. Não é que a verdade seja assim tão importante, as raparigas da Casa Verde ou as visitadoras do Pantaleão não davam aqueles gritos de amor cheios de sentida paixão e, mesmo assim, são as mulheres as mais sinceras e fortes personagens do Varguitas. Mas isto não interessa nada. Não sou crítico literário, não me interessa fazer uma análise da obra dele, nem sequer seria capaz.

Sou capaz de contar histórias da maior parte dos livros dele. Mais dos que li primeiro, e li-os todos.

A memória é assim, vamos envelhecendo e lembramo-nos mais do que lemos quando éramos novos do que do que lemos ontem. Pouco importa. Sei o que ele fez por mim, como sei que o que conta nos livros não é o que recordamos deles, mas o que nos molda.

Ensinou-me muito sobre mim e sobre o mundo. Que o mal existe mesmo e está dentro de nós, que o bem não ganha sempre, que somos bichos mais erotizados do que pensamos, que os sonhos são tão fortes que nos transformam, que não há nada mais forte do que a beleza, que são as coisas que pensamos pequenas (gestos, música, amores) e não as grandes ideias e feitos que mudam o mundo, que só existimos verdadeiramente se formos livres, e milhares de outras coisas que me formaram e me encantaram.

E como o que importa não é o que o autor escreve, mas o que o leitor lê, foi o poço de contradições que somos que o Varguitas me explicou em cada livro que escreveu para mim. É assim mesmo, os grandes escrevem para cada pessoa que os lê.

Talvez se tivesse inspirado nele próprio para me explicar a quantidade de pessoas diferentes que somos – não é em vão que o Chibo é um chibo. O mesmo homem que conseguia descrever toda a gentileza, toda a bondade, todo o altruísmo, toda a beleza e a graça, que nas suas obras inspirava a lutar contra todas as injustiças, todas as discriminações, era o mesmo que, não poucas vezes, desdizia parte disso em entrevistas e textos de opinião.

Muita calma, o meu querido Varguitas era um democrata convicto, mas deu-me algumas facadas. Mas, lá está, os livros dele fizeram-me amá-lo e o amor tudo perdoa.

Perdoa tanto que lhe desculpo ter-me feito ir a Lima. Queria ver a Catedral, visitar Miraflores, olhar para o mar dele, perceber o que havia naquela terra que o tinha feito assim. Sacana. Bem me enganou. Mas lembrou-me de que é quase sempre melhor vermos pelos olhos dos escritores do que pelos nossos – eu bem percorro a álea do Cemitério dos Prazeres que o Saramago pôs o Ricardo Reis a descer e não encontro nenhum sentido para a vida, só vejo campas.

A verdade é que a viagem serviu para ouvir umas huaynitas daquelas de que ele fala no último romance que escreveu e que podem salvar o mundo, porque Miraflores ou a Amazónia é ali na Graça. Tal como os espíritos que o Lituma sabe estarem nos Andes são os mesmos a que a minha mãe reza na Igreja de Santa Isabel. Sim, críticos estúpidos, o Varguitas não era um escritor latino-americano, era um escritor. E sim, o rio da aldeia dele é o rio de todas as aldeias do mundo.

Agora vou fazer como ele, misturar histórias, trocar fins por princípios.

Entusiasmo-me a falar de livros de que gosto muito, e estando em casa, dá-me para dizer às pessoas para levarem este ou aquele. Ou seja, desapareceram-me muitos livros do Varguitas. Muitos recomprei (várias vezes), outros continuo à espera que mos devolvam.

Daí e com todo o carinho (sou um rapaz de origens nortenhas): filhosdumagrandessíssima, devolvam-me os livrinhos do rapaz de Arequipa. Quero-os todos à minha beira. Quero que continuem a embalar-me, que me façam companhia. Ter sempre o Varguitas comigo.

Esta crónica vai de férias e regressa dia 15 de maio. 

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Sempre se pagou um preço altíssimo pela paz e o exemplo maior que perdura no imaginário coletivo europeu ainda é o de uma Alemanha retalhada e servida a quatro potências mundiais, humilhada e envergonhada depois das suas tentativas imperialistas que mergulharam a Europa nos tempos mais sombrios da modernidade.

Mas isso era numa época em que, de facto, se perdiam as guerras e os livros de História nos ensinavam que os maus tinham castigos à medida das suas grandes perversidades. Como parece simples o mundo assim explicado! Tal como num filme maniqueísta, de um lado os bons, do outro os maus, o herói e o vilão, e no fim tudo se resolve, o bem triunfa sobre o mal, varre-se a casa e o normal volta a ocupar-nos os dias.

Não iremos ver nada disto na atual guerra em solo europeu, desenrolada na Ucrânia. Aqui o filme é mais parecido com a vida real, em que se perde sempre num jogo viciado e à partida ganho por quem domina a corrente ordem mundial.

Donald Trump anunciou na segunda-feira que esta semana apresenta o seu plano de paz para a Ucrânia. Segundo o que tem sido noticiado, o plano inclui a perda do território da Crimeia, com os Estados Unidos da América a reconhecerem a anexação russa de 2014. Inclui, também, segundo o The Wall Street Journal, o impedimento da Ucrânia se juntar à NATO, que foi, desde logo, o principal motivo da invasão russa de fevereiro de 2022. Sob este ponto de vista, a Ucrânia perde a guerra, não consegue o que sempre desejou. É o preço a pagar pela paz.

A questão agora é esta: será assim tão relevante para um país juntar-se à NATO? A aliança atlântica já estava em crise há alguns anos, mas com a tomada de posse da administração Trump parece agora à beira da insignificância total. Aliança com a Europa? Donald Trump parece bem mais interessado em parceiros de outras latitudes.

“Os Estados Unidos estão a divorciar-se dos valores europeus”, escreve Ed Arnold, especialista em segurança europeia do Royal United Services Institute. Com a aproximação à Rússia e os danos infligidos à aliança atlântica (pondo em causa o artigo 5, segundo o qual um ataque a um país da NATO é considerado um ataque a todos), a tal ordem mundial saída da II Guerra Guerra está a ruir.

Para a Ucrânia irão tropas europeias, diz a proposta de paz norte-americana, garantir que o cessar-fogo existe de facto. Só a Rússia não dá sinais de qualquer seriedade nestas negociações – o cessar-fogo de 30 horas que o próprio Vladimir Putin declarou durante o fim de semana, numa trégua pascal, foi violado mais de 2 900 vezes, segundo Zelensky.

Putin quer Zelensky fora da presidência, defendendo uma “administração de transição” na Ucrânia. Apesar disso, admitiu esta segunda-feira, pela primeira vez, estar aberto a negociações de paz diretas com Kiev. Alguém ainda consegue ver aqui algum empenho?

Donald Trump acredita ter em mãos a grande solução para a paz. E acena com a cenoura, escrevendo na sua plataforma Truth Social, em letras capitais: “Esperemos que a Rússia e a Ucrânia cheguem a acordo esta semana. Ambas começarão então a fazer grandes negócios com os Estados Unidos, que estão a prosperar, e farão uma fortuna.” A paz por um punhado de dólares.

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Parece que o luto nacional, decretado pelo Governo entre hoje e sábado, pela morte do Papa Francisco, é incompatível com a presença de ministros e secretários de Estado em atividades festivas por estes dias, incluindo as relacionadas com as comemorações de mais um aniversário do 25 de Abril. A lei obriga a restringir celebrações, além do uso da bandeira a meia haste, e assim justifica o Executivo de Luís Montenegro a contenção a adotar por governantes na evocação daquela que é a data mais importante da História recente de Portugal

Amanhã, portanto, dia 25 de abril de 2025, os nossos representantes, eleitos democraticamente, não festejam.

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Se olharmos para o mundo numa lógica de equilíbrios noticiosos, podemos dizer que a morte do Papa Francisco veio permitir que, pelo menos nas próximas semanas, as euforias e as medidas erráticas de Donald Trump ocupem menos espaço mediático. Depois do velório e do funeral destes próximos dias, seguir-se-á a escolha de um Papa num novo conclave – a qual, como é sabido, pode prolongar-se durante dias, dando sempre pano para mangas em matéria de conspirações e especulações.

Por natureza, a eleição de um novo pontífice é não só a eleição menos previsível como também a menos transparente de todas. Quem entra Papa, diz um velho ditado italiano, sai cardeal, ou seja, não vale a pena lançar nomes para o terreno nem fazer grandes apostas, apesar das inúmeras listas de papabili, mais ou menos fundamentadas, que por estes dias se publicam um pouco por todo o lado. A classificação é sempre redutora, mas é mais do que natural que as divisões entre cardeais progressistas e conservadores venham ao de cima.

Há quem diga que, depois dos dois passos à frente dados por Francisco, a Igreja Católica dará um passo atrás, de maneira a aliviar conflitos e tensões, e escolherá um Papa mais conciliador e, digamos, menos confrontacional. Uma coisa é certa: a sucessão de Jorge Bergoglio será sempre complicada. Mesmo não tendo formalizado grandes mudanças, alterações ao nível da doutrina, Francisco foi um Papa extraordinariamente carismático, próximo dos crentes e dos não crentes. Com uma “presença ativa na geopolítica mundial”, como sublinha Anselmo Borges, professor de Filosofia da Universidade de Coimbra.

Tolentino Em Portugal, há quem suspire pela eleição do cardeal-poeta. É pouco provável: tem 59 anos, o que em princípio significaria um longo papado Foto: Cláudio Peri/ LUSA

Na ala mais tradicionalista, já em 2013, foi considerado o nome do húngaro Peter Erdo, atualmente com 72 anos, por causa das suas ligações europeias e africanas. Do lado oposto, também Mario Grech, 68 anos, o maltês a quem Francisco entregou o cargo de secretário-geral do Sínodo dos Bispos, é visto com bons olhos. Já Pietro Parolin, 70 anos, seria uma solução de compromisso entre conservadores e progressistas. Na linha do perfil de Francisco, os vaticanistas acreditam ainda haver duas possibilidades: uma linha italiana, na figura de Matteo Maria Zuppi, 69 anos, arcebispo de Bolonha; outra asiática, na figura de Luis Antonio Gokim Tagle, 67 anos, natural de Manila, nas Filipinas. 

Entre os portugueses, fala-se em José Tolentino Mendonça, responsável pelo Dicastério para a Cultural e Educação e figura querida entre nós. Nasceu no Machico há 59 anos e, por isso, seria um Papa das “periferias” que Francisco tanto acarinhou, mas na verdade a sua idade poderia (em princípio) indiciar um longo papado, o que faz com que o seu nome seja posto de lado pelos principais apostadores. Cardeais portugueses com direito de voto, neste momento, contam-se quatro: além do poeta madeirense, Américo Aguiar, bispo de Setúbal e cardeal desde a Jornada Mundial da Juventude que ocorreu em Lisboa, em agosto de 2023; António Marto, antigo bispo de Leiria-Fátima; e José Manuel Clemente, antigo patriarca de Lisboa. 

A sucessão de Francisco vai dar que falar por vários motivos. Desde logo, por Jorge Bergoglio ter escolhido a maioria dos cardeais que, neste momento, têm direito de voto. Dos 135 eleitores do novo colégio cardinalício, 108 foram selecionados por Francisco. Só no último consistório ordinário, em dezembro de 2024, elevou a cardeal 21 prelados, alguns provenientes de regiões distantes – as tais “periferias”. Destes, só um não é eleitor, o italiano Angelo Acerbi, que atinge os 100 anos em setembro próximo. Francisco rompeu com a prática de destacar bispos de grandes dioceses, escolhendo, por exemplo, figuras de Teerão (Dominique Joseph Mathieu), Argel (Jean-Paul Vesco), Tóquio (Tarcisius Isao Kikuchi) e Abidjan (Ignace Bessi Dogbo). 

Influenciáveis e influenciadores

Ao fazê-lo, o Papa Francisco tinha um objetivo nobre, a abertura ao mundo, a “internacionalização”. Pretendia, sobretudo, acabar com o perfil eurocêntrico do conclave que elege o Papa. Quando Jorge Bergoglio foi escolhido, em 2013, os cardeais europeus representavam 56% do total. Entretanto, essa percentagem já baixou para 39%, com 53 eleitores europeus, 18 africanos, 23 asiáticos e quatro originários da Oceânia. Da América do Norte, fazem-se representar 16, da América Central são 4 e da América do Sul são 17.

Quem entra Papa, diz um velho ditado
italiano, sai cardeal, ou seja, não vale
a pena lançar nomes para o terreno
nem fazer grandes apostas, apesar
das inúmeras listas de papabili

Os seus detratores não lhe perdoaram, claro. Por outro lado, também é preciso ter em conta que o facto de um número significativo ser inexperiente e não conhecer os meandros da Cúria Romana poderá torná-lo mais vulnerável a eventuais grupos de pressão. Mais: muitos desses novos cardeais provêm de locais onde a Igreja ainda é encarada de forma tradicional, podendo por isso estar mais alinhados com tendências ditas conservadoras. Terá sido, aliás, a pensar nisto que, a 6 de fevereiro, dias antes de ser internado, Francisco prolongou o mandato de Giovanni Battista Re à frente do Colégio Cardinalício. Re já não tem idade para votar no conclave, mas de acordo com alguns vaticanistas poderá vir a ser uma figura determinante no pré-conclave, quando muitas vezes ficam definidas as grandes tendências. Acredita-se que Re será a garantia de que o legado de Francisco será respeitado. 

Recorde-se que, pouco antes de entrar no Hospital Gemelli, Francisco também não poupou o programa de deportações em massa de Donald Trump e de J. D. Vance, que se converteu ao catolicismo já adulto e que, por ironia do destino, esteve em Roma no último fim de semana. Numa carta enviada aos bispos norte-americanos, pediu nomeadamente que fossem rejeitadas as “narrativas que discriminam e causam sofrimentos desnecessários aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”. 

Quando a saúde de Francisco começou a piorar, fontes bem informadas do Vaticano alertaram para a questão dos perigos da desinformação durante a eleição do novo líder da Igreja Católica. Ao jornal Politico, chegaram mesmo a dizer que a nova administração norte-americana poderia já estar com os olhos postos no próximo conclave. “Já influenciaram a política europeia, não teriam problema em influenciar o conclave. Podem andar à procura de alguém menos confrontacional”, afirmaram ao Politico. Se o caso é motivo para preocupação ou não, é difícil dizer. Mas se há matéria propícia a teorias da conspiração é, precisamente, a eleição de um novo Papa.

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Existem informações contraditórias, mas só o facto de estar a decorrer uma «negociação» em que dois se unem contra um terceiro não parece um modelo destinado ao sucesso. A Europa e outros países aliados terão de continuar a apoiar e proteger a Ucrânia.

  1. O irmão gémeo de Putin, o senhor Trump, ainda não deixou de ameaçar diretamente Kiev e Zelensky, usando sempre o mesmo argumento: se Zelensky não ceder, os EUA deixarão de fornecer apoio militar e financeiro. Uma autêntica tramóia.
  2. O outro, vindo de mães diferentes, tem uma posição há muito definida. Acordos para tréguas ou cessar-fogo só acontecerão com o congelamento das «fronteiras» atuais da frente de batalha. Donbas e Crimeia estão fora da mesa negocial. Sendo muito ardiloso, faz circular notícias que sugerem a sua vontade em devolver à Ucrânia as suas fronteiras originais. É um típico truque de roleta russa.
  3. Zelensky está sujeito à máxima pressão possível: precisa de proteger os cidadãos ucranianos e o seu território. Obviamente que deseja pôr fim ao conflito para construir uma solução sustentável, mas tem consciência clara de que qualquer decisão precipitada poderá levar ao fracasso interno e externo da sua presidência.

Falta ainda um elemento-chave, talvez decisivo, nestas «negociações»: a presença da Europa, em igualdade de condições, para discutir e eventualmente chegar a um acordo. Se tudo avançar num bom sentido, e essa possibilidade existe, chegará o momento em que António Costa e Ursula von der Leyen terão de se sentar numa mesa negocial ao mais alto nível. Cresce na Europa um sentimento claro: todos querem colocar Trump na ordem! E, caso isso seja impossível, deixem-no a falar sozinho. É possível, é viável e desejável.

1 – APROXIMOU-SE DAS PESSOAS

É verdade que o jesuíta Francisco foi o primeiro Papa da América Latina, nascido e criado no centro histórico de Buenos Aires, e só isso já bastaria para o fazer ficar na História. Mas a força com que a figura de Jorge Bergoglio – que morreu, aos 88 anos, na última segunda-feira, 21, após ter estado internado com uma infeção respiratória – sempre se impôs também vem de algo muito pouco concreto e difícil de sintetizar: do seu estilo. Na maneira como cultivou a simplicidade, como rejeitou viver no Palácio Apostólico e preferiu ficar na Casa de Santa Marta, por exemplo. Ou na forma como se dirigiu aos outros, privilegiando os mais excluídos dos excluídos (os presos, a quem lavou os pés, no ritual litúrgico da Quinta-Feira Santa). Num mundo sem grandes referências morais, políticas ou espirituais, Francisco foi um líder carismático e fez questão de se aproximar das pessoas, de falar com todos – crentes e não crentes. 

Foto: Fabio Frusta/ LUSA

O professor Paulo Mendes Pinto, da Universidade Lusófona, costuma dizer que o Papa Francisco se transformou na “caixa de ressonância do mundo”. É irónico, mas, não raras vezes, até foi mais acarinhado pelos não crentes do que pelos crentes. Na opinião do teólogo Juan Ambrósio, da Universidade Católica, todos “sentem necessidade de vozes lúcidas, capazes de abrir caminhos de esperança”. Conta-se que, quando Bento XVI resignou, Bergoglio chegou a Roma para participar no conclave apenas com uma pequena mala de viagem. Já havia enviado a renúncia do arcebispado para Roma, obrigatória após os 75 anos, tencionava reformar-se e viver o resto dos seus dias em Flores, o bairro onde nasceu. Hoje, é mais ou menos consensual que começou a ganhar a eleição quando fez uma curta intervenção, com críticas dirigidas ao interior da instituição. Revelou depois o cardeal Jaime Alamino, arcebispo de Havana, que Francisco criticou a Igreja “autorreferencial, doente do narcisismo, que dá lugar a esse mal que é a mundanidade espiritual, esse viver para dar glória uns aos outros”. 

Já eleito, “o Papa do fim do mundo” não vergou nas opiniões. Continuou a ser duro nas críticas dirigidas à Igreja (envelhecida e, pior do que isso, empedernida), à Cúria e, sobretudo, àquilo que designou como “a peste do clericalismo”. A postura valeu-lhe inúmeras oposições, acusaram-no de ser marxista e, quando a saúde o debilitou, as alas mais conservadoras alimentaram rios de tinta sobre uma eventual resignação. Fez o que se deve fazer às provocações: ignorou e, por vezes, usou o humor. Respondeu: “O Papa não governa com as pernas, governa com a cabeça.” Não se sabe ao certo se esta frase foi alguma vez efetivamente proferida, mas, como manda o “velho” John Ford, na dúvida, imprima-se a lenda. 

2 – OLHOU PARA “AS PERIFERIAS”

Francisco foi eleito a 13 de março de 2013. Pouco tempo depois, logo a 8 de julho, realizou a primeira viagem do seu pontificado. Havia ficado impressionado com um naufrágio no canal da Sicília e, por isso, dirigiu-se para a ilha de Lampedusa, no Sul de Itália, para se encontrar com migrantes que tinham acabado de atravessar o Mediterrâneo. Quando uma parte significativa do mundo começava a fechar-se ao outro, a atenção dada por Francisco aos migrantes é um dos seus maiores legados. Três anos depois, em 2016, voltou a marcar a agenda mediática com os seus gestos simbólicos contra a “indiferença” e visitou também os refugiados na ilha grega de Lesbos. Saiu de lá com 12 sírios e levou-os para Roma.  

Em 2023, dez anos após a primeira viagem ao Mediterrâneo, continuou sem esquecer da tragédia às portas da Europa e escreveu uma carta ao bispo de Lampedusa na qual diz que “a morte de inocentes, principalmente crianças, em busca de uma existência pacífica, longe das guerras e da violência, é um grito doloroso e ensurdecedor que não nos pode deixar indiferentes”. “É a vergonha de uma sociedade que já não sabe chorar nem ter pena do outro”, sustenta. Mais recentemente, durante o internamento no Hospital de Gemelli, conta-se que telefonava todos os dias para a paróquia de Gaza. No Domingo de Páscoa, numa breve aparição na Praça de São Pedro, voltou a apelar ao cessar-fogo: “Libertem os reféns e venham em auxílio de um povo faminto que aspira a um futuro de paz.”   

Foto: L’ Oserva Torre Romano/ Handout/ LUSA

As periferias a que se refere Francisco são “geográficas”, mas também são “existenciais”. Recorde-se, a este propósito, uma das frases mais fortes da Fratelli Tutti, “a encíclica da pandemia”, publicada em 2020 e dedicada à fraternidade e à amizade social: “Ninguém se salva sozinho, só é possível salvarmo-nos juntos.” Nos últimos 12 anos, numa altura em que muitos dos líderes do chamado mundo ocidental exploram medos e ressentimentos em relação à diferença, a voz contrastante de Francisco fez-se ouvir de forma bastante audível. Em fevereiro, três dias antes de ser internado, também se revelou preocupado com o programa de deportações de Donald Trump e voltou a escrever uma carta, desta vez, aos bispos católicos dos EUA: “Tenho acompanhado de perto a grande crise que está a acontecer nos EUA, com o início de um programa de deportações em massa. A consciência retamente formada não pode deixar de fazer um juízo crítico e de manifestar o seu desacordo com qualquer medida que identifica, tácita ou explicitamente, o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade.” 

Nessa carta, pediu ainda aos bispos norte-americanos que rejeitassem as “narrativas que discriminam e causam sofrimentos desnecessários aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados” e apelou ao “rigoroso respeito pelos direitos de todos”. Uma política que regule a migração “ordenada e legal” não pode ser feita, argumentou na missiva, “com o privilégio de uns e o sacrifício de outros”. E concluiu: “O que se constrói com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e acabará mal.” 

3 – CUIDOU DA “CASA COMUM”

Do ponto de vista do estilo, da empatia e da proximidade, até é possível dizer que Francisco tinha a vida facilitada ao suceder a Bento XVI. Do ponto de vista teórico, porém, não é possível dizer o mesmo, uma vez que o alemão foi, por excelência, “o Papa intelectual”. Estas circunstâncias conferem ainda mais significado à encíclica Laudato Si’, publicada no princípio do pontificado de Francisco, em 2015. 

Nessa encíclica exemplar, o Papa Francisco demonstra estar a par dos debates contemporâneos e dos maiores desafios da Humanidade. Mais: ao defender que as alterações climáticas são provocadas pela ação humana, está alinhado com a Ciência e com o melhor conhecimento. Criticou diretamente as razões que conduziram ao atual paradigma de desenvolvimento – “o paradigma tecnoeconómico” – e advogou uma “ecologia integral”, para a qual são necessários pequenos gestos do quotidiano que nos “libertam da lógica da violência, da exploração e do egoísmo”.

Foto: Luís Barra

Na encíclica Laudato Si’, Francisco segue, assim, o exemplo dos movimentos climáticos e das gerações mais novas. “Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos”, escreve. E exorta tudo e todos em redor da causa ambientalista: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no projeto do amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A Humanidade possui ainda a possibilidade de colaborar na construção da nossa casa comum.”   

Há pouco mais de um ano, em outubro de 2023, dois meses antes da COP28, no Dubai, o Papa voltou ao tema, numa nova exortação apostólica, a Laudate Deum, que o próprio disse ser a segunda parte de Laudato Si’. O mundo, alerta, está a “desmoronar-se” e “aproxima-se de um ponto de rutura”. O documento termina de forma lapidar: “Laudate Deum é o título desta carta. Porque um ser humano que pretende tomar o lugar de Deus torna-se o pior inimigo para si mesmo.”

4 – ACOLHEU “TODOS, TODOS, TODOS”

São muitos os que comparam a figura de Francisco a João XXIII, o Papa que promoveu o Concílio Vaticano II, o maior acontecimento da Igreja Católica do século XX, cujas resoluções ainda estão, em muitos casos, por concretizar. Francisco não convocou um concílio, mas convocou um sínodo – a palavra tem origem no grego e significa “caminhar juntos”. Entre outubro de 2023 e outubro de 2024, decorreram as duas assembleias do Sínodo dos Bispos, que reuniram os contributos das comunidades e que, na verdade, deixou de integrar apenas bispos – e só isso já constituiu uma novidade. 

O secretário-geral do Sínodo, o cardeal Mario Grech, conhecido pelas suas posições progressistas, justificou então: “A participação dos novos membros não só assegura o diálogo que existe entre a profecia do povo de Deus e o discernimento dos pastores, mas assegura também a memória.” Para o teólogo Juan Ambrósio, a ideia primordial do processo sinodal é a de ouvir as comunidades. E, independentemente do perfil do sucessor de Francisco, essa dinâmica não terá retrocesso: “O Papa impôs a ideia de uma Igreja que se renova a partir daqueles a quem ela é enviada.” 

Autobiografia antecipada

No princípio deste ano, o Papa Francisco permitiu que o livro fosse publicado. Inicialmente, estava previsto só sair após a sua morte

A autobiografia do Papa argentino chama-se Esperança e o título do livro não podia ser mais feliz. Francisco foi, de facto, o Papa da alegria e da esperança. “Nós, cristãos, devemos saber que a esperança não ilude nem desilude: tudo nasce para florir numa eterna primavera. No final, diremos apenas: não recordo nada em que Tu não estejas”, escreve na introdução do volume, lançado no princípio deste ano em todo o mundo (em Portugal, foi publicado pela Nascente, uma das chancelas da Penguin Random House).

Por vontade do Papa, o livro só deveria ser publicado agora, após a sua morte. Porém, o novo Jubileu e, diz a editora, “as necessidades do tempo” fizeram com que o autor se decidisse a antecipar o lançamento para janeiro de 2025. Com fotografias do arquivo pessoal a acompanhar, Esperança recua ao início do século XX, às raízes italianas e à emigração dos antepassados de Jorge Bergoglio, passa pela infância e juventude e chega até ao pontificado e ao tempo presente. E é um livro muito feliz porque conta uma história que merece ser contada, a história da vida de um homem simples. E porque nele também está presente um certo modo – alegre e verdadeiramente iluminado – de olhar os outros e o mundo que nos rodeia.

Nos 12 anos de Francisco, a presença de mulheres no Vaticano aumentou de forma significativa. No princípio de 2025, o Papa nomeou uma mulher para dirigir um dicastério: a irmã Simona Brambilla assumiu o cargo de prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, uma posição até agora reservada a cardeais e arcebispos. Em 2022, a irmã Raffaella Petrini também já havia sido nomeada para secretária-geral do Governatorato e, em janeiro de 2025, para presidente. 

Algumas das questões mais polémicas – como a da inclusão das mulheres, a do celibato, dos divorciados e das pessoas LGBTI – estiveram sempre em cima da mesa durante o pontificado. Não se avançou muito na doutrina, o que valeu a Jorge Bergoglio algumas críticas entre os setores mais progressistas. Mas avançou-se na prática, no exemplo, se quisermos. O Papa argentino teve a coragem de falar com os jovens sobre sexualidade e amor. Em 2023, em Lisboa, durante a Jornada Mundial da Juventude, evitou as partes mais aborrecidas do discurso que levava escrito para o Parque Eduardo VII e proferiu palavras que vão ficar para a História em forma de slogan: “Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: ‘Todos, todos, todos’. Não se ouve: outra vez! ‘Todos, todos, todos’.” 

5 – CRITICOU “A ECONOMIA QUE MATA”

Num mundo demasiado ruidoso, é natural que se saliente o papel do Papa Francisco nos abusos sexuais contra crianças no seio da Igreja Católica. É justo, mas também é justo dizer-se que esse foi um caminho que começou a ser traçado por Bento XVI (tal como o do diálogo inter-religioso com os muçulmanos começou a ser traçado por João Paulo II e, depois, prosseguido por Bento XVI). O argentino foi, isso sim, absolutamente assertivo na forma como condenou os abusos: “tolerância zero”. “Encobrir é acrescentar vergonha à vergonha”, disse, na sua autobiografia. Porém, no fim do seu pontificado, não é possível esconder uma certa deceção do lado das vítimas (incluindo em Portugal, onde o processo das indemnizações ainda está por concluir). 

Na própria Igreja, esse sentimento de desilusão também existe. A demissão do jesuíta Hans Zollner, o rosto visível do combate contra os abusos sexuais, é disso exemplo. Ao abandonar o cargo, Zollner foi muito duro nas críticas à Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores. “Tem havido falta de clareza quanto ao processo de seleção de membros e funcionários e quanto às suas funções e responsabilidades”, justificou o padre alemão.  

Foto: Ettore Ferrari/ LUSA

Logo em 2013, foi publicado um que acabou por ser uma espécie de programa oficial do papado: na exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), Francisco entrou nas questões económico-sociais, referindo-se, pela primeira vez, à “economia que mata”: “Tal como o mandamento ‘Não matarás’ impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer ‘Tu não’ a uma economia da exclusão e desigualdade. Esta economia mata.” 

Curiosamente, coincidência ou talvez não, ainda na última Sexta-Feira Santa, nas meditações que redigiu para serem lidas durante a Via Sacra do Coliseu, em Roma, Francisco voltou a falar nessa “economia que mata”. “Construímos um mundo que funciona assim: um mundo de cálculos e algoritmos, de lógicas frias e interesses implacáveis. A lei da vossa casa, Senhor, a economia divina é outra coisa. A economia de Deus não mata, nem descarta, nem esmaga. É humilde, fiel à terra. O vosso caminho, Senhor Jesus, é a via das bem-aventuranças. Não destrói, mas cultiva, repara, guarda.”

Não sendo propriamente um testamento, acaba por ser uma boa síntese do legado de Francisco. E, sobretudo, uma chamada de atenção de que a sua voz vai fazer muita falta ao mundo.

As quatro encíclicas de Francisco

As encíclicas são os documentos de caráter social, exortatório ou disciplinar que os Papas dirigem aos bispos e, através deles, aos fiéis da Igreja

Lumen fidei
Sobre a Fé


29 de junho de 2013

Na sua primeira encíclica (intitulada Luz da Fé, em português), publicada poucos meses após o início do pontificado, Francisco continuou o trabalho do antecessor, Bento XVI, que antes da renúncia tinha concluído um rascunho deste texto sobre a fé. O documento, dividido em quatro capítulos, uma introdução e uma conclusão, traça a história da fé, aborda a relação entre razão e fé, o papel da Igreja na transmissão da fé e o seu efeito nas sociedades. É considerada como sendo a primeira encíclica redigida por dois Papas.

Laudato Si’
Sobre o Cuidado da Casa Comum


24 de maio de 2015

Nesta comunicação (com o título em português Louvado sejas), o Papa Francisco critica o consumismo e a má utilização dos recursos do planeta. Com a publicação, o pontífice tenta influenciar a transição energética e promover o combate às alterações climáticas, ao mesmo tempo que defende a reforma do capitalismo económico desenfreado, que tantas vezes condenou. Dirigindo-se “a cada pessoa que habita neste planeta”, Francisco apela aos cidadãos para que pressionem os políticos a mudar.

Fratelli Tutti
Sobre a Fraternidade e a Amizade Social


3 de outubro de 2020

O Documento da Fraternidade Humana para a Paz e Coexistência Mundial, também conhecido como Declaração de Abu Dhabi, assinado em fevereiro de 2019 entre o Papa Francisco e o xeque Ahmed el-Tayeb, grande imã de Al-Azhar, influenciou esta encíclica papal que recebeu o título em português de Todos Irmãos. No texto, Francisco critica a indiferença e a desigualdade que gera pobreza e exclusão, e exorta os cristãos a construírem um mundo melhor, mais unido e mais justo, assente nos princípios da compaixão, da fraternidade, da solidariedade e da amizade social entre os homens.

­Dilexit nos
Sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus


24 de outubro de 2024

Escrita no décimo segundo ano do pontificado, a última carta encíclica do Papa Francisco (com o título em português Amou-nos) propõe o amor misericordioso de Cristo como resposta para as crises atuais resultantes das guerras, das desigualdades, do consumismo e das novas tecnologias que ameaçam a essência do ser humano. Depois de uma encíclica sobre a fé, e de outras duas de teor mais social, este quarto texto é um convite à espiritualidade e à devoção ao Coração de Jesus, por ser “essencial para a nossa vida cristã”.

C.T.

A simplicidade de Francisco

No dia 13 de março de 2013, o cardeal argentino Jorge Bergoglio é eleito líder máximo da Igreja Católica, tornando-se o primeiro Papa jesuíta e não europeu em séculos. Desde logo, dá sinais da mudança que viria a imprimir. Recusa-se a viver no Palácio Apostólico e muda-se para a Casa de Santa Marta, cultivando um estilo de vida mais simples. O seu pontificado durará 12 anos

2013

março

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Na primeira missa, Francisco percorre a Praça de São Pedro num carro descapotável, desce para cumprimentar os fiéis e alerta os políticos presentes para as desigualdades e as alterações climáticas

abril

Cria o Conselho de Cardeais para iniciar a reforma da Cúria Romana, o órgão que assegura o governo da Igreja

junho

É publicada a primeira encíclica Lumen fidei (“Luz da fé”), iniciada pelo antecessor, Bento XVI, e terminada pelo novo papa

julho

Na primeira viagem oficial, Francisco encontra-se com migrantes africanos na ilha de Lampedusa e denuncia a “globalização da indiferença”

De visita ao Brasil, para participar na Jornada Mundial da Juventude, o Papa celebra uma missa para 3,5 milhões de fiéis na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A sua passagem por território brasileiro é marcada por tumultos, numa altura em que as denúncias de abusos sexuais e desvio de recursos estão na ordem do dia

agosto

O arcebispo Pietro Parolin é indigitado como secretário de Estado do Vaticano, substituindo Tarcisio Bertone, um cardeal nomeado por Bento XVI ligado ao escândalo de corrupção Vatileaks

outubro

O Vaticano aprova legislação para combater a lavagem de dinheiro e pede ajuda às autoridades italianas para investigar o escândalo financeiro do Banco do Vaticano, que promete transformar numa instituição “honesta e transparente”

2014

novembro

Discursando no Parlamento Europeu, o Papa pede o tratamento digno dos migrantes que chegam à Europa

2015

maio

Produz a segunda encíclica, Laudato Si (“Louvados sejas”), onde critica o consumismo e a má utilização dos recursos do planeta

setembro

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Numa histórica deslocação a Cuba e aos Estados Unidos, dois países em conflito, o pontífice saúda a retoma das relações diplomáticas bilaterais suspensas desde há décadas

dezembro

Têm início as comemorações do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, uma iniciativa de Francisco para assinalar o apoio os mais pobres

2016

julho

Na Jornada Mundial da Juventude de Cracóvia, o chefe da Igreja visita o campo de concentração de Auschwitz e reúne-se com sobreviventes do Holocausto

novembro

Autoriza os sacerdotes católicos a concederem a absolvição a pessoas envolvidas na prática do aborto, incluindo mulheres, médicos e outros profissionais de saúde

2017

maio

O Papa assinala em Portugal o centenário das aparições marianas na Cova da Iria e preside à canonização de Francisco e Jacinta Marto

novembro

Visita Mianmar e Bangladesh, denunciando a crise dos refugiados muçulmanos rohingya

2018

agosto

Na Irlanda, onde o Papa se encontra para presidir ao Encontro Mundial das Famílias, os abusos sexuais por membros do clero na Pensilvânia, e não só, estão na agenda. Francisco escreve uma carta aos fiéis pedindo perdão em nome da Igreja e também uma atuação firme das autoridades competentes

2019

setembro

Moçambique é um dos países incluídos na viagem apostólica pela África Oriental

2020

março

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Francisco reza sozinho na imensa praça de São Pedro, e concede a benção “Urbi et orbi” à cidade de Roma e ao mundo

outubro

Publicação da terceira encíclica Fratelli tutti (“Todos irmãos”) dedicada à fraternidade e à amizade entre povos

2021

março

Pela primeira vez, um chefe da Igreja visita o Iraque. Francisco reúne-se com al-Sistani, líder dos xiitas iraquianos, e desloca-se a Mossul, cidade que esteve durante anos sob controlo do Estado Islâmico

2022

fevereiro

Francisco condena com veemência a invasão russa da Ucrânia e apela ao acolhimento dos refugiados

junho

É promulgada a constituição apostólica Praedicate evangelium, que reforma a Cúria Romana. O português José Tolentino de Mendonça assume funções de prefeito do novo Dicastério para a Cultura e Educação

2023

janeiro

Francisco preside ao funeral de Bento XVI, o papa emérito. Foi a primeira vez que um pontífice em exercício celebrou as exéquias do antecessor

março

Admite que o voto de celibato clerical, que obriga os padres a serem castos, pode ser revisto pela Igreja, causando o desconforto dos membros mais conservadores

abril

Autoriza o direto ao voto de mulheres e leigos no Sínodo dos Bispos. A medida é vista como um avanço em direção a uma Igreja mais inclusiva


agosto

Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, com a presença do Papa, que se desloca também ao santuário de Fátima

dezembro

É publicada a declaração Fiducia supplicans (“Suplicando a Confiança”), autorizando a benção (mas apenas isso) a casais homossexuais e a casais heterossexuais em “situação irregular” — que não são casados. A decisão foi uma das mais polémicas do pontificado de Francisco

2024

junho

Francisco participa na cimeira do G7 e recebe, no mesmo dia, mais de uma centena de humoristas, entre os quais os portugueses Maria Rueff, Ricardo Araújo Pereira e Joana Marques

setembro

O Papa inicia a viagem mais longa do seu pontificado, pelo Sudeste Asiático e Oceânia. Em Timor-Leste, celebra uma missa para mais de meio milhão de pessoas

outubro

É divulgada a quarta e última encíclica, Dilexit nos (“Amou-nos”), sobre a espiritualidade e a devoção ao Coração de Jesus. É também publicado o primeiro relatório da Comissão de Proteção de Menores sobre os abusos sexuais na Igreja

dezembro

Início formal do Jubileu de 2025, com a abertura da porta santa da Basílica de São Pedro

2025

janeiro

A freira Simona Brambilla, 59 anos, nomeada prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, torna-se a primeira mulher à frente de um dos mais altos postos da Cúria Romana

abril

O Papa Francisco morre aos 88 anos em Roma, após doze anos como líder da Igreja Católica.

Por estes dias, um fragmento do tempo aparece em várias publicações e nas redes sociais. Numa carruagem de metro, em Buenos Aires, um sacerdote católico, reconhecível, como tal, pela roupa negra e o cabeção, interpela-nos com um olhar sereno, pacífico, levemente interrogativo, como se nos estivesse a perguntar: “E tu? Já fizeste alguma coisa, hoje, que mereça ser recordada?” Sentado num dos bancos da carruagem, o prelado segue, anónimo, entre outros passageiros. A carruagem vai quase cheia, mas, além do padre, apenas mais cinco pessoas, quatro homens e uma mulher, poderiam ser imediatamente identificadas pelos rostos, bem visíveis, fotografados praticamente de frente. O clérigo sentado e um homem que viaja de pé, em segundo plano, e que usa boné, são os únicos que olham para a objetiva. A foto parece uma pintura, lembra os jogos de luz e sombras ao estilo de Velázquez (As Meninas? A Refeição?), e, se fosse, bem poderia estar emoldurada numa das paredes mais nobres de qualquer museu do mundo ou no Vaticano (ver pág. 42, neste caso, em versão a preto-e-branco). Poderíamos dar-lhe um nome provisório: A Carruagem. Ou O Passageiro.

A foto é uma metáfora da vida de Jorge Bergoglio. Misturado na multidão, em hora de ponta, ele vai daqui para ali. Um viajante que segue junto dos simples, talvez tenha tirado passe, é visto como um igual. Ninguém mostra especial deferência, mas todos o reconhecem, pelo seu mediatismo. Estão habituados à sua presença. O arcebispo de Buenos Aires terá de mostrar o título de transporte a qualquer revisor, ou ultrapassar as cancelas da estação depois de encostar o bilhete ao sensor que as abre. A foto é de 2008, apenas cinco anos antes de ser eleito Papa. Jorge ainda não é Francisco, mas ninguém o obrigará a largar a simplicidade do santo de Assis. Nenhum daqueles passageiros lhe agradece o que já fez naquele dia, nos dias e nos anos anteriores, que mereça ser recordado. Entre os outros é um deles. Tudo corre naturalmente, como o Sol que nasce e se põe, nas várias longitudes deste mundo de Cristo.

Já hoje temos a noção. Aliás, tivemos a noção desde o primeiro dia: Francisco é um corte, uma rutura, uma trepidação telúrica que não vai deixar nada como era antes. Tivemos Sumos Pontífices dos mais variados perfis. Estes foram apenas católicos, aqueles foram burocratas, muitos foram administradores, outros grandes estadistas. Alguns, genuinamente bondosos e preocupados com o próximo. Outros, políticos argutos ou personalidades influentes. Houve pecadores corrosivos, dissolutos e tóxicos, mas também houve santos. Francisco será recordado como o primeiro Papa cristão dos últimos mil anos. Disso, talvez não tenhamos a noção.

Francisco não aspirava à santidade, essa que os critérios terrenos definem como a dos impolutos. Não escondia as suas fraquezas. Era Papa, era pecador e procurava melhorar. A sua principal característica era a da identificação imediata, a empatia radical, o carisma inexplicável. E, num mundo dominado pela comunicação de massas, a telegenia triunfante. Era humano, em vez de santo. E, sim, era um político arguto, influente e, se preciso fosse, calculista, pragmático e implacável, na recomposição do xadrez de poder no interior da instituição. A força da Igreja, onde não existe democracia, é o seu paradoxal pluralismo. Jogando com isso, soube sempre mover as peças, entre rasgares de vestes, rangeres de dentes e missas em latim.

Com efeito, uma certa igreja conservadora, ultramontana, viúva do reacionarismo de João Paulo II – mas também da sua santidade sobre-humana – ou da exegese conservadora de Bento XVI, que não percebe que Francisco era o seu único verdadeiro ativo, nunca lhe perdoou. Nunca lhe perdoou a agitação. Nunca lhe perdoou a heresia. Nunca lhe perdoou a simplicidade, quase exibicionista. Nunca lhe perdoou a piedade (por exemplo, para com homossexuais ou divorciados que tornaram a casar). Nunca lhe perdoou o diálogo ecuménico ou o desprezo pelos ritos vazios. Nunca lhe perdoou os sapatos não vermelhos nem a mudança para a Casa de Santa Marta. Talvez não lhe perdoe o testamento para que possa ter um funeral comum.

Hipócritas de várias latitudes vertem, agora, lágrimas de crocodilo, tentando aproveitar de forma “abutreana” a onda de comoção provocada pela sua morte. Entre nós, o “católico convicto” André Ventura prestou-lhe a sua homenagem, depois de, como Pedro, “três vezes o ter negado”. Ressalvou que nem sempre concordou com Francisco, como se um “católico convicto”, para quem a infalibilidade do Papa é inquestionável, pudesse, sequer, discordar. Uns e outros, os seguidores, os críticos ou os convertidos de última hora perderam um ente querido. O mundo perdeu um amigo. Nós perdemos um amigo.

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