Se formos a ver, dos 80% dos portugueses que se identificam como católicos nos censos, a esmagadora maioria não tem compromisso com a sua fé declarada. Isto é, não se confessa, não vai à missa nem comunga, não concorda com muitas das posições da sua igreja – nomeadamente em matéria de moral sexual – e nem sequer sabe nada de doutrina, como por exemplo, identificar quais são os sacramentos da fé católica. Em suma, são os chamados católicos não-praticantes, o que significa que não são nada do ponto de vista da identidade religiosa. Mesmo nos Estados Unidos, segundo pesquisa do Pew Research Center, “oito em cada dez norte-americanos dizem que a Igreja deveria permitir o uso de métodos contracetivos e a fertilização in vitro”.
Se na perspetiva teológica podemos fazer esta leitura, há outra perspetiva possível, de natureza muito mais pragmática, a considerar. Chamemos-lhe uma espécie de “teste do algodão” ético. É a leitura que propõe Miguel Silva Sanches, no jornal digital dos jesuítas portugueses: “O Papa Francisco foi, acima de tudo, um pastor profundamente político, no melhor e mais autêntico sentido da palavra. Não porque se envolvesse diretamente em partidarismos, mas por afirmar, sem rodeios, que o Evangelho tem implicações concretas na vida pública. Não se pode seguir Cristo e, ao mesmo tempo, ignorar os pobres, excluir migrantes, destruir a criação ou relativizar a dignidade humana.”
De acordo com este olhar, ser cristão, isto é, discípulo de Jesus Cristo, define-se de forma muito prática. De resto, foi o próprio Mestre que forneceu a chave para esta leitura: “Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E em teu nome não expulsamos demónios? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade” (Mateus 7:16-23).
No caso português, a igreja católica tem vivido uma ilusão persistente em matéria de contagem dos fiéis, ao considerar que os batizados são efetivamente católicos. A este respeito é sempre bom lembrar duas coisas. Primeiro, que o batismo católico é realizado em regra em crianças recém-nascidas que não puderam escolher submeter-se ao ato. E em segundo lugar, que até à implantação da república, em 1910, não existiam registos civis, isto é, os assentos de nascimento eram todos efetuados nas paróquias.
Daí resultou uma tradição – quase imposição cultural – reforçada por um regime autoritário de quase meio século, que levou a que, durante longas décadas, os portugueses procurassem realizar ritos de passagem como batismos, cerimónias de casamento e funerais, na tradição católica romana, mesmo que não mantivessem qualquer vínculo com a fé católica. E qualquer família que optasse por rejeitar tal tradição era vista como pouco fiável pela sociedade.
A democracia veio alterar este estado de coisas, começando logo pela possibilidade do divórcio, e a lei de 2001 consolidou esse caminho de liberdade religiosa, ainda em construção.
Concretamente, católico não é todo aquele que assinala essa opção no inquérito do INE-Instituto Nacional de Estatística (censo) mas sim o que pratica a fé católica. Do mesmo modo, cristão não é todo aquele que o diz ser, mas sim o que dá fruto da sua fé.
Bem dizia o apóstolo Tiago: “Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tiago 2:26). Um dia vamos todos entender que a identidade religiosa não é um pin na lapela.
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