Depois de ter afirmado repetidamente aos quatro ventos que tinha ganho as eleições de 2020 e que as mesmas lhe tinham sido roubadas pelo adversário a quem insultou reiteradamente, depois de ter promovido uma tentativa violenta de golpe de estado no Capitólio, do qual resultaram mortos, depois de se ter recusado a estar presente na passagem de testemunho ao sucessor (coisa nunca vista nos EUA), Trump volta a candidatar-se à Casa Branca e com hipóteses de vencer.
Afinal parece que os americanos não são assim tão diferentes do povo russo. Ambos procuram um homem forte para governar o seu país, que consideram o maior e mais importante do mundo, mesmo que a ética pessoal e política desse homem seja uma batata. Para isso estão dispostos a suportar perseguição e censura (no caso do Kremlin) ou promover a mentira e as fake news (na América), a manter um sistema judicial mais político do que imparcial, e a conviver com um simulacro de democracia.
Se Putin manda atirar da janela abaixo, abater a tiro e envenenar os opositores, Washington promove golpes de estado em países estrangeiros e mantém vivo Guantánamo que é uma ferida aberta nos direitos humanos. Apesar de tudo os Estados Unidos ainda simulam um sistema democrático, embora não seja universal nem directo como seria normal, enquanto na Rússia não existem sequer verdadeiras liberdades políticas.
Então por que razão o populismo de direita gosta tanto de ditadores como Putin? Porque comungam da mesma ideia de que a democracia é fraca, as instituições democráticas são uma perda de tempo, que as elites só interessam se e enquanto apoiarem cegamente os autocratas que governam, que o povo tem que ser dominado pela manipulação constante e, se necessário, pela força.
Nestes contextos políticos a religião torna-se um campo excelente para a mobilização contra inimigos inventados. Curiosamente este fenómeno verifica-se mais à direita, mas também à esquerda, senão veja-se o grupo de líderes religiosos que foram em peregrinação aos pés do ditador venezuelano Nicolas Maduro para lhe jurar submissão e assegurar as boas graças dos céus.
É mais do que óbvio que depois do atentado a Trump tinham que surgir imediatamente manifestações de religiosos a clamar por milagre e a reivindicar a intervenção divina a favor deste candidato, arregimentando assim o apoio de Deus para o acto eleitoral. Mas estes são os mesmos que tentaram um golpe de estado através do assalto ao Capitólio, instigados pelo antigo presidente, não faltando faixas identificativas da sua fé, como “Jesus saves” entre outras, e que se recusaram a aceitar a vitória de Biden, por isso tinham uma forca preparada para o vice Pence (curiosamente um religioso), caso certificasse a vitória democrata, como lhe competia e fez, com risco da própria vida.
Esta gente é perigosa, alucinada. Não são realmente cristãos mas adeptos da religião civil americana, que é uma forma espúria de religião autocentrada, carregada de racismo e supremacia branca, intolerante, amiga das armas de fogo, machista e misógina, que despreza tudo que não seja o judaico-cristianismo e considera os EUA uma espécie de Israel espiritual que tem o direito divino de reinar sobre as nações da terra pela força.
Ora, Trump – um “narcisista patológico” segundo José Pacheco Pereira – assenta que nem uma luva a este imaginário sócio-cultural norte-americano, no qual grande massa dos cidadãos tende a anular-se para se projectar numa figura providencial que represente força, masculinidade e violência, mas que dispensa qualquer espécie de ética pessoal, social ou política.
Nada mais estranho num país cujo discurso puxa pelas suas tradições cristãs, mas que talvez não vá além da velha mentalidade WASP (branco, anglo-saxónico e protestante). Segundo pesquisa do Pew Research Center cerca de oito em cada dez eleitores republicanos (79%) são brancos não hispânicos e mais velhos do que os eleitores em geral, e cerca de oito em cada dez eleitores republicanos (81%) identificam-se com uma denominação cristã, em comparação com 67% de todos os eleitores registados.
Os protestantes evangélicos brancos são 30% dos eleitores registados e o maior grupo religioso no Partido Republicano. O mais espantoso é que desta gente, são mais os que aprovam o comportamento pessoal de Trump (26%), que é deplorável, do que aqueles que desaprovam a sua conduta (21%).
Portanto, estamos conversados sobre a ética de vastos sectores religiosos americanos nos dias que correm.
PS – O falso penso na orelha dos apoiantes trumpistas é terrivelmente ridículo. Se o homem tivesse ficado com o nariz vermelho, resultante dum qualquer acidente, será que passavam a colocar um nariz vermelho de palhaço?
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR:
+ O descuido imperdoável de Fischer
+ O cristianismo do Oriente que o Ocidente (quase) desconhece
+ Triste arremedo de portuguesismo
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.