“Entre cravos e cardos” (Edições 70) é um livro muito bem escrito e consubstancia um olhar que dificilmente poderia ter partido dum nativo.
Embora Thomas Fischer já tenha obtido a nacionalidade portuguesa, a sua visão é a de alguém com alguma distância, o que tem a vantagem de ser muito mais independente e desapaixonada do que se fossemos nós, os aqui nascidos e criados, a escrevê-lo.
Uns de nós acentuaríamos inevitavelmente os aspectos positivos do ser português, e outros haveríamos de insuflar o negativo. Porém, Fischer não esconde nada dos defeitos nem das virtudes lusas. Este é um exercício de comparação entre a mentalidade latina, especificamente a portuguesa, e a alemã. Numa União Europeia tendencialmente integrativa dos povos do continente, o autor ajuda-nos a entender como o norte europeu nos vê, e descortina a nossa mentalidade e idiossincrasias.
Fischer surpreende-se frequentemente perante as nossas contradições como, por exemplo, a constatação de um estado bipolar que oscila entre a “santa burocracia e o Simplex”.
Mas há um descuido gritante e imperdoável quando compara a lei da liberdade religiosa à do casamento gay e à da eutanásia: “Seguiram-se temas, alguns fraturantes, como a nova lei da liberdade religiosa, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a eutanásia”. A sério? E nem o editor se apercebeu deste descuido (só posso chamá-lo assim)?
Compreende-se a razão de considerar o casamento gay (Lei n.º 9/2010) e a eutanásia (Lei n.º 22/2023) como matérias bastante controversas na
sociedade portuguesa, de resto é assim que políticos e comunicação social as têm definido.
Já a Lei de Liberdade Religiosa (Nº 16/2001), em vigor há 23 anos, veio muito antes destas temáticas às quais o autor a compara e nunca foi considerado tema fracturante, nem por políticos, nem pela sociedade portuguesa em geral, nem sequer pela igreja católica. Lei fracturante porquê? Vindo o autor dum país metade protestante e metade católico não se compreende a questão.
O processo de elaboração da lei que consagra a liberdade religiosa em Portugal foi longo e meticuloso, e eu próprio tive oportunidade de o acompanhar em parte.
O legislador recebeu inspiração de legislação idêntica vigente noutros países europeus, e teve sempre a preocupação de ouvir a igreja católica, que já dispunha dum documento legal concordatário assinado em 1940 entre Portugal e a Santa Sé, e entretanto revisto em 2004, mas nunca as esqueceu de ouvir também as comunidades religiosas implantadas no país.
É sabido que esta lei gerou um amplo consenso no meio religioso, político e social, tendo funcionado bem até agora, cumprindo assim os objectivos pretendidos pelo governo que desencadeou o processo, sendo então primeiro-ministro António Guterres e ministro da Justiça José Vera Jardim, actual presidente da Comissão da Liberdade Religiosa.
O verdadeiro problema da liberdade religiosa em Portugal não é a lei – embora persista a iniquidade entre a igreja católica e as demais confissões, devido à existência duma concordata – mas sim a aplicação da mesma por parte dos poderes públicos, seja a nível governativo ou autárquico. Mas este assunto exige explicação mais detalhada, pois a generalidade da população nem sequer tem consciência do problema.
O facto de o jornalista alemão que viajou para Portugal no Verão Quente de 1975, em pleno PREC, e que acabou por se apaixonar pelo país e ficar por cá, nos brindar agora com esta obra tão especialmente saborosa de reflexões sobre a sociedade portuguesa e sua evolução, merece que se lhe releve esta gafe imperdoável.
Afinal não é por isso que “Entre cravos e cardos” deixa de ser um retrato tão fiel que provavelmente nenhum nativo português saberia traçar, porque nunca é fácil falar de si mesmo.
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