O campo religioso exalta porventura de forma demasiado veemente a sua teologia. Este era o problema dos fariseus em Israel nos dias de Jesus. A opção por uma ênfase permanente e fanática no cumprimento da lei de Moisés, especialmente quando a cobrava aos outros, toldava-lhes o discernimento na vida quotidiana e nas relações humanas.
Jesus foi impiedoso com esta forma de estar e colocou-lhes reiteradamente o dedo na ferida. Por exemplo, quando os acusou de serem pedra de tropeço na vida espiritual das pessoas comuns: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mateus 23:13). Portanto, pode-se considerar esta gente como uns verdadeiros empatas.
Mas o Mestre da Galileia também os confrontou com a sua falsa moralidade, problema muito comum no mundo religioso: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo” (23:14). A velha estória “vícios privados, virtudes públicas”.
Jesus Cristo também não hesitou em lançar-lhes em rosto a prática farisaica de promover uma experiência religiosa abusiva e destrutiva: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós” (23:15).
Também os confrontou com o materialismo disfarçado: “Ai de vós, condutores cegos, pois que dizeis: Qualquer que jurar pelo templo, isso nada é; mas o que jurar pelo ouro do templo, esse é devedor. Insensatos e cegos! Pois qual é maior: o ouro, ou o templo, que santifica o ouro?” (16,17).
Foi extremamente duro com os preceitos religiosos desfocados da misericórdia: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. Condutores cegos, que coais um mosquito e engolis um camelo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e de intemperança. Fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo” (23-26).
E combateu frontalmente a hipocrisia religiosa: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (27,28).
Michel Foucault pensava que a heresia e a ortodoxia não decorriam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, mas antes que se inscreviam na sua essência. Afinal, o que é mais importante? A ortodoxia doutrinária ou a praxis? As crenças religiosas ou a forma de estar da pessoa religiosa face ao outro, à sociedade e ao mundo?
O evangelista Lucas relata um episódio passado com os próprios discípulos de Jesus, quando eles, acompanhando Mestre, viajavam em Israel. Jesus enviou mensageiros adiante do grupo a uma aldeia samaritana para preparar a pernoita antes de seguir caminho.
Sucedeu que os samaritanos recusaram recebê-los, desconfiando que iam a caminho de Jerusalém, com quem Samaria mantinha uma aguda rivalidade histórica. Os discípulos Tiago e João voltaram indignados e propuseram a Jesus: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?” (Lucas 9:54b). Mas Jesus repreendeu-os de imediato: “Vós não sabeis de que espírito sois.” (55).
Afinal, Tiago e João portaram-se como aqueles que hoje vivem a fé cristã de forma orgulhosa e equivocada. E são tantos por esse mundo fora. Pretendem condenar à morte quem tem uma religião diferente ou pior, quem vive a mesma religião mas de forma diferente. Mergulhados na mesquinhez, pensam que Deus é um criado às suas ordens para executar vingança. A verdade é que a ortodoxia quando não segue a par com a ortopraxia não passa dum mero embuste religioso.
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